Edição 344 | 21 Setembro 2010

Carlos Lessa

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Graziela Wolfart, Greyce Vargas e Rafaela Kley

“Eu sou oligarca de família tradicional”. Assim se define o professor Carlos Lessa. Na entrevista que segue, concedida pessoalmente, ele conta à IHU On-Line os aspectos mais marcantes de sua trajetória pessoal e profissional. E admite: “Eu nasci em berço de ouro”. Lessa considera sua mãe “uma pessoa absurdamente deslumbrante”. E relata que cresceu no meio da elite, mas em contato com o povo. Na adolescência, seus heróis eram “os garotos da favela que eram vizinhos nossos”. Lessa se considera uma pessoa profundamente politizada, pois seu interesse intelectual “está todo a serviço de um sonho, que é o da civilização brasileira”. Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas – Unicamp. Em 2002, foi reitor da UFRJ e, de janeiro a novembro de 2003, foi presidente do BNDES. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor poderia nos contar um pouco da suas trajetórias acadêmica, militante e política?

Carlos Lessa – Uma vez eu disse para alguém, de brincadeira, que eu sempre fui candidato, sempre estive em campanha. No entanto, nunca me apresentei como candidato a nada, mas fui militante de campanhas o tempo todo. Até não é bem verdade assim, porque eu fui obrigado a ser candidato a deputado federal, mas substituindo um candidato nosso para que a chapa não ficasse incompleta. Mas nunca tive pretensões neste sentido. Cada pessoa tem a sua verdade e a minha é muito singela: eu sou oligarca de família tradicional. Meus antecedentes fazem parte da família que trouxe os açorianos para o Brasil.
Eu nasci em berço de ouro, sou carioca e filho de cariocas. Eu tenho muito carinho pelo Rio de Janeiro. Estudei num colégio considerado o mais sofisticado do estado, mas eu tinha minha mãe, que era uma pessoa absurdamente deslumbrante. Ela sempre dizia que as pessoas tinham que se empenhar e se interessar pelo próximo, pelo outro. Mamãe trabalhava de graça para os pobres. Ela tinha seus pobres que almoçavam conosco. Eles tinham regras, cada um tinha seu prato, seu copo, seus talhares, tinham que devolver limpos. Eles comiam em uma mesinha no jardim. Eu estou contando isso para dizer o seguinte: minha mãe me fez ter um contato, desde cedo, muito próximo com o chamado povão brasileiro, que era um povo feliz. Minha família contava histórias muito bonitas da nossa relação com os pobres. O primeiro general totalmente negro do exército brasileiro, João Batista de Matos, por exemplo, é irmão de leite da minha avó. Se a senhora tinha pouco leite e se tinha uma escrava que tinha muito leite dava o filho para a escrava amamentar e aqui havia, querendo ou não, o espírito de que esse irmão de leite deveria ser o primeiro a ser libertado. Outra regra é que ele deveria ser tratado como se fosse da família. Eu cresci no meio da elite, mas em contato com o povo e segui nessa postura quando adolescente. Quando eu estava nessa fase, meus heróis eram os garotos da favela que eram vizinhos nossos.

IHU On-Line – Por que eles eram seus heróis?

Carlos Lessa – Primeiro porque eles jogavam futebol muito melhor do que eu, que era um “perna de pau”. Segundo, pelo menos em nível de papo, eles tinham sexo e eu não tinha, porque as minhas gerações viviam essas privações. Então, eles eram meus heróis no esporte e nas aventuras sexuais. Eu nunca tive, na minha cabeça, que a pobreza fosse uma condição degradante da pessoa. Lá no colégio em que eu estudava havia uma política muito interessante de dar bolsas de estudos aos populares. E eu fui para a faculdade de Economia, onde “engolia” tudo o que me diziam. Eu nunca tinha me metido em políticas estudantis. Mas, no terceiro ano, fui a Recife onde visitei as favelas e tive um choque brutal. Não é possível deixar as pessoas nas condições em que elas estavam. As favelas de Recife se estendiam por trás da principal avenida da cidade. As pessoas viviam em condições subumanas, no meio do lixo e da lama. Foi conhecendo essas populações que percebi a mentira na qual acreditava.
Eu sou uma pessoa que conheceu o povo muito de perto, que tinha pelo povo um carinho que não era abstrato, mas sim pessoal. Inclusive eu batia papo com alguns dos pobres de minha mãe. Tinha a Carmelita, que era filha da antiga ama, e o marido dela, que me ensinou a lutar capoeira. Eu tinha pelo povo uma relação afetiva emocional próxima e achava que o povo era pobre e ponto. Eu não tinha as dimensões do que era a pobreza. E os economistas, aqueles que me ensinaram, diziam que tudo isso era assim mesmo.

Esquerda política

Nunca fui contra partido de esquerda nenhum. Tenho muitos amigos de partidos de esquerda, mas nunca aceitei a proposta comunista, muito comum na minha juventude, pois acreditava que ela produziria uma sociedade com patologias terríveis. Havia, na época da minha juventude universitária, uma série de movimentos progressistas. Escolhi a Economia para me converter em um economista e ajudar a todos aqueles que nada têm, ou seja, o grupo que não está no poder. Quando estava terminando a faculdade, fui convidado a fazer parte das Nações Unidas, que abriu um escritório no Brasil. Lá tinha um grupo de pensadores economistas muito interessantes, liderados por um argentino. Eles haviam feito uma revisão profunda da economia política clássica, fazendo uma releitura do mundo em termos de centro e periferia. Isso me parecia verdadeiro e realista e eu fui para lá trabalhar. Acredito que já tinha talento para ser professor. Eu me considero uma pessoa profundamente politizada, pois o meu interesse intelectual está todo a serviço de um sonho que é o da civilização brasileira.

Eu entendo que o povo continua sendo uma paixão, mas também comecei a me apaixonar pelo Brasil, enquanto um espaço que tinha, em função de suas potencialidades e até mesmo de seus defeitos, a possibilidade de ser um espaço de civilização. O que mais me impressiona no brasileiro é exatamente o fato dele ser mulato. Eu achava fascinante a ideia de que nós seríamos a única civilização mestiça nos trópicos. E, então, fui me apaixonando pelo Brasil, pelas potencialidades brasileiras, fui me convertendo muito rapidamente como um macroeconomista e um sucesso como professor, e comecei a ser chamado por todos os veículos de comunicação. Fui assessor da Comissão de Assuntos Territoriais do Ministério da Justiça e fiz o primeiro Plano de Desenvolvimento Territorial sobre onde hoje é Roraima. Quando veio o golpe, resolvi fazer um contragolpe sozinho e saí denunciando o golpe. Com isso, foram expedidos mandatos de prisão contra mim. Como sempre tive condições excepcionais em função do salário que recebia em dólar das Nações Unidas, fui para o Chile, onde dei aula na Universidad de Chile. Por um período relativamente longo, pensei que o choque autoritário iria nos fazer um mal. Na primeira brecha que deu, pedi demissão das Nações Unidas, onde, modéstia à parte, eu havia feito uma carreira brilhante. Assim, voltei para o Brasil em condições complicadas, porque pouco tempo depois aconteceu o AI-5 . Com isso, fui um dos fundadores do Movimento Democrático Brasileiro – MDB, buscando tentar reagir ao golpe militar. Não foi fácil.
Fui ser professor na Fundação Getúlio Vargas. Daí, resolvi retornar à Universidade Federal Fluminense. Mas minha vida virou um inferno, tanto que cheguei ao ponto de pedir demissão da universidade e fui trabalhar como consultor. Depois disso, em função dessa experiência, cheguei até a ser presidente de uma empresa petrolífera, de novo ganhando em dólar. Sempre tive sorte. Mais tarde, em São Paulo, resolvemos fazer uma nova universidade, que hoje é a Unicamp, uma universidade que ganhou muito prestígio porque, no departamento de Economia, houve uma concentração de pessoas que tinham repensado o Brasil, principalmente a partir do exílio, e que não eram nem reprodutores do que se pensava fora do país, nem do que se dizia antes. Então, surgiu uma espécie de núcleo intelectual muito ativo. Éramos eu, Maria da Conceição Tavares, José Serra, que tinha sido discípulo meu no Chile e que também foi professor na Unicamp, entre outros.

Vida de professor universitário

Trabalhar na Unicamp era muito cansativo, porque eu morava no Rio de Janeiro e dava aula em Campinas-SP, indo e vindo toda a semana. Aí tanto eu quanto a Maria da Conceição Tavares resolvemos fazer um concurso no Rio de Janeiro. Havia duas únicas vagas e as conquistamos. Nesta universidade eu continuei sendo o que sempre fui como pessoa. Houve um momento de tensão onde os alunos invadiram o prédio da reitoria, que chamou a polícia. Eu fui até lá para defender os alunos e virei herói na universidade. Com isso, acabaram me fazendo reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro; tive uma votação espetacular. Aí cheguei aos 70 anos e me deram um pontapé na bunda, porque é a idade limite para ser reitor.
Desde que entrei no MDB, para mim, o sonho era a democracia brasileira, mas uma democracia que passasse a limpo o nosso autoritarismo. Eu realmente achava que isso ia acontecer, mas não aconteceu porque as chamadas eleições indiretas impediram qualquer discussão em profundidade. Por que o Brasil era autoritário? Nós do MDB dizíamos que o Brasil era autoritário e que o autoritarismo era o responsável por todas as mazelas brasileiras. Agora, por que razão o Brasil era autoritário ninguém dizia e eu achava que esta era a questão que ia entrar em discussão se houvesse uma campanha após a queda dos militares. Eu acreditava que o próximo presidente da República teria nas mãos uma nação com a democracia passada a limpo. Ao invés disso, houve um acordo e Tancredo  foi eleito presidente. Depois dessa trapalhada toda, não vejo surgir uma democracia profunda no Brasil, estou assistindo coisas assustadoras.

O povo brasileiro

Enfim, sou um velho muito triste com o resultado da campanha eleitoral até agora, mas se há sociedade com capacidade de construir uma civilização única no mundo é o Brasil. Por razões muito importantes, a primeira é óbvia: de certa maneira, nós não temos preconceito. O povão brasileiro é de uma criatividade espetacular, por uma razão muito simples: sobrevive. O simples fato é o de conseguir sobreviver à elite brasileira (e a pior elite do planeta é a brasileira, porque não pensa no futuro, no filho, no neto, é uma elite irracional, muitas vezes, desnacionalizante). O nosso povo sobrevive nestas condições, por isso é um herói, porque desenvolveu qualidades curiosas. Ele é absolutamente conservador, é tradicionalista, e, por outro lado, também é um povo aberto a tudo de novo que aparece, se adapta em velocidade enorme a novas condições. Nenhum povo do mundo faz isso.

Segundo: nosso povo só tem orgulho mesmo é do futebol, não tem mais orgulho nenhum, não tem orgulho de nada, não tem orgulho de si mesmo, não é arrogante com terceiros, acolhe qualquer um com sorrisos. Nosso povo ama muito o Brasil. Tem uma teoria que ajudei a desenvolver que é a teoria do lugar. Ela diz que o povo brasileiro não tem cidadania, pois ela não é garantida ao povo brasileiro. Dessa forma, nosso povo sobrevive no lugar onde é conhecido, porque se diz que “nascido e criado em tal lugar, lá todo mundo me conhece, eu conheço todo mundo”. Assim, ele está dizendo que lá ele tem carteira de identidade. E isso apareceu até na letra de um funk: “eu só quero é ser feliz na favela onde eu nasci”. Isso acontece porque o lugar é sempre característico, o lugar tem uma referência territorial, não é uma ação da bolsa, não é uma aplicação financeira. O lugar é uma realidade física. E quem ama o lugar, ama o lugar maior que é o país.
Eu sou muito esperto, mas sou analfabeto digital, não lido com computador nem com celular, nada. Porque ele inferniza a vida das pessoas que possuem, sempre dão problemas. Tenho um pequeno problema: não aceito erro; se eu erro quero saber por que razão errei e onde errei e se eu me enfiasse nisso eu iria acabar estudante de Engenharia de Sistemas. Faço parte da última geração de intelectuais bem sucedidos que é analfabeto digital. Vou fazer um manifesto para o povão: não lutem pela digitalização do ensino primário, porque nós mal e porcamente superamos o analfabetismo. A qualidade de ensino está péssima, e não podemos reproduzir analfabetismo na área digital.

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