Edição 342 | 06 Setembro 2010

A importância da Escolástica para a paleografia

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Márcia Junges e Alfredo Culleton | Tradução Benno Dischinger

Jacqueline Hamesse acentua a importância do estudo da filosofia escolástica na América Latina, e lamenta por essa ter sido considerada, durante muito tempo, como colonial e “importada” pelos jesuítas

“De maneira geral, as notas deixadas pelos eruditos da Segunda Escolástica nas margens dos manuscritos da Idade Média, sobre as quais eles trabalhavam, são com frequência mais difíceis de ler do que a escritura dos medievais”. A revelação é da paleógrafa francesa Jacqueline Hamesse, na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Em sua opinião, a América Latina é o lugar ideal para se empreender estudos sobre a Escolástica. “A Segunda Escolástica permaneceu por demasiado tempo ignorada dos pesquisadores. Considerada como filosofia colonial importada principalmente pelos jesuítas, ela não tem sido estudada por ela mesma durante séculos”, assinalou. Ela contou, também, sobre os projetos de digitalização dos manuscritos e impressos na Europa e Estados Unidos, que podem inspirar projetos de conservação dos textos deste período.

Jacqueline Hamesse é paleógrafa, professora emérita da Universitè Catholique de Louvain. De sua produção intelectual, salientamos La vie culturelle, intellectuelle et scientifique à la cour des papes d'Avignon (Turnhout: Brepols, 2006) e Repertorium initiorum manuscriptorum latinorum medii aevi (Turnhout: Brepols, 2009).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual é a importância da Segunda Escolástica para a paleografia?

Jacqueline Hamesse -
Antes de poder responder a esta questão, seria necessário ter previamente um recenseamento de todos os textos conservados, que foram escritos durante este período. A maioria deles deve ser a obra de eruditos que provavelmente redigiram em latim. Em sua época os diversos tipos de escritura, em vigor durante o período medieval, não eram mais utilizados. Redigiam-se então os textos de maneira mais cursiva e as escrituras eram, consequentemente, mais personalizadas e menos padronizadas que antes. Esses textos serão, pois, de maneira geral, menos fáceis de ler e decifrar.
Já que este período ainda é mal conhecido e que numerosos textos ainda não foram editados, a análise desses documentos permitirá compreender melhor os métodos utilizados para compô-los. Dever-se-ia, então, poder obter informações novas a propósito do ensino da escritura, das abreviações ainda em vigor, bem como novas maneiras de abreviar certas palavras, o que permitirá, no final, reunir esse novo material paleográfico para elaborar um dicionário de abreviações utilizadas na época. Este servirá, em seguida, a todos aqueles que abordarão a leitura dessa literatura e lhes fará ganhar tempo, propondo-lhes soluções adequadas para resolver bom número de problemas de leitura.

De maneira geral, as notas deixadas pelos eruditos da segunda escolástica nas margens dos manuscritos da Idade Média, sobre as quais eles trabalhavam, são, com frequência, mais difíceis de ler do que a escritura dos medievais. Haverá, pois, lá todo um material novo disponível que deverá ser posto à disposição dos pesquisadores para ajudá-los a ler mais facilmente certas escrituras mais individuais da época.


IHU On-Line - Que sentido tem em estudar a Segunda Escolástica na América Latina?

Jacqueline Hamesse -
A América Latina é o lugar ideal para se fazer este estudo. Com efeito, a Segunda Escolástica permaneceu por demasiado tempo ignorada dos pesquisadores. Considerada como filosofia colonial importada principalmente pelos jesuítas, ela não tem sido estudada por ela mesma durante séculos. Os pesquisadores não viam o papel desempenhado pelos escritos deste período que, de fato, permitem compreender melhor a Idade Média e a passagem à época moderna. Vítima deste preconceito, a importância das doutrinas filosóficas originais que ela ilustra ainda não teve muito impacto sobre os estudos filosóficos. E, no entanto, numerosos documentos que datam deste período estão reunidos nas bibliotecas deste continente e deveriam ser conservadas em condições ótimas, já que eles são os principais testemunhos desta evolução.

Os espanhóis e os portugueses que vieram a esta parte do mundo nos séculos XVI e XVII trouxeram com eles textos importantes da Segunda Escolástica, obras devidas notadamente a professores de Salamanca e de Coimbra. Eles continuaram a ensinar na América latina com a ajuda dos mesmos a fim de transmitir as doutrinas mais representativas deste movimento e continuar a desenvolvê-las. A Segunda Escolástica deu nascimento a novos escritos que merecem ser tomados em consideração e que estão na linha dos ensinamentos da Escola de Salamanca ou de Coimbra, para citar apenas dois exemplos entre outros. Eles constituem uma transição essencial entre a época medieval e a filosofia moderna e contribuem amplamente para melhor compreender a continuidade e as diferenças existentes entre as doutrinas medievais e a filosofia moderna.

A contribuição da América Latina ao estudo deste movimento é, pois, fundamental e esta parte do mundo, que foi o lugar privilegiado para a constituição de doutrinas novas. Não é por acaso que numerosos pesquisadores, que são daqui originários, escolheram concentrar seus estudos sobre este período que ainda tem muitos segredos a revelar. A Segunda Escolástica ainda é demasiado pouco estudada e mal conhecida no mundo. É, pois, tempo de remediar esta lacuna e é aos pesquisadores deste continente que cabe fazer frutificar a herança intelectual que eles recolheram. Existe aí um campo de estudos totalmente original que pode revelar-se muito rico em descobertas e abrir novas pistas de investigação.


IHU On-Line - Como podemos compreender a necessidade da manutenção e preservação deste material bibliográfico antigo, já que os custos de conservação serão muito elevados?

Jacqueline Hamesse -
Os colegas da América Latina têm neste nível uma responsabilidade muito grande. Eles detêm toda uma parte do patrimônio mundial que pertence à história cultural da humanidade. Esta riqueza não pode ser perdida por falta de conservação adequada ou de meios financeiros suficientes. Depositária de uma herança insubstituível, a América Latina tem o dever de velar sobre esta herança. Conscientes deste problema, os pesquisadores devem unir-se para trabalhar em equipe, cada um trazendo sua pedra ao edifício graças a suas competências e a uma interdisciplinaridade indispensável. Os professores atualmente em atividade devem preparar jovens para sua sucessão, a fim de que eles possam assumir a tarefa de substituí-los. O trabalho será longo e uma geração não será suficiente para realizar todos os trabalhos inerentes a esta conservação.

Parece-me que estudantes de valor devem ser formados prioritariamente, desde hoje, para poderem ajudar de maneira adequada para o êxito deste empreendimento. A primeira exigência é a de terem um bom conhecimento do latim. Seus professores deveriam, além disso, encorajá-los a completarem sua formação estudando de maneira aprofundada as ciências auxiliares da história (paleografia, codigologia, diplomática, crítica textual etc.), a fim de que possam primeiramente compreender o conteúdo exato dos documentos que têm sob seus olhos e, a seguir, descrevê-los, a fim, igualmente, de poder fazer relatos exaustivos de tudo o que eles contêm. A conservação adequada dos documentos da época, conservados nas bibliotecas dos diversos países da América Latina, constituirá um trabalho de longo hálito que durará anos e necessitará da ajuda de numerosos colaboradores. Para serem eficazes, os mesmos devem ter a possibilidade de ir completar sua formação em outros países mais avançados nestes trabalhos de conservação e que tenham longa tradição de catalogação dos manuscritos. Existem atualmente estudos especializados destinados a formar futuros catalogadores: são summer schools, que dão cursos intensivos para essas diferentes matérias cujo conhecimento é indispensável para levar a bom termo o trabalho. Especialistas de outros continentes poderiam também vir dispensar aqui cursos intensivos e guiar os jovens pesquisadores em suas pesquisas, a fim de lhes dar os rudimentos indispensáveis para efetuar as diversas etapas de conservação e catalogação dos documentos originais.

O trabalho em equipe se comprova indispensável para o êxito de tal projeto. Um instituto ou um centro de pesquisa deveria ser fundado para coordenar o conjunto do material recolhido e ser uma equipe da tecnologia moderna indispensável para aí chegar. Os esforços não devem ser dispersos, mas uma estreita colaboração deve existir entre todos com o intuito de nada se perder dos resultados já obtidos e se otimizar as informações disponíveis. Cada um, ao seu modo, poderá ser útil e trazer sua pedra ao novo edifício.


IHU On-Line - Existem ajudas internacionais para preservar estes patrimônios da Segunda Escolástica?

Jacqueline Hamesse -
Já existem grandes projetos de digitalização dos manuscritos e de impressos na Europa e nos Estados Unidos que poderiam servir de modelo para a conservação dos textos da Segunda Escolástica. Certas etapas poderiam ser financiadas para permitir aos pesquisadores da América Latina aprender a tarefa neste terreno, sendo enquadrados por especialistas. Uma colaboração internacional deveria ser organizada a seguir. Financiamentos de grandes projetos já existem na Europa e nos Estados Unidos. A América Latina poderia certamente ser associada aos mesmos.


IHU On-Line - Qual é seu ponto de vista a propósito da realização do 17º Colóquio anual da Sociedade Internacional para Estudos da Filosofia Medieval – SIEPM no Brasil?

Jacqueline Hamesse -
Trata-se de uma excelente iniciativa desejada pelos membros do conselho da SIEPM a fim de fazer conhecer melhor as realizações aí concretas já existentes no domínio filosófico. Seria indispensável hospedar um evento científico desta dimensão para sensibilizar os pesquisadores dos outros países sobe as potencialidades presentes neste país. Este evento também permitirá pôr em contato os participantes europeus e americanos com seus colegas dos diversos países da América Latina, intensificando os elos que, em certos casos, já existem e permitindo a todos de melhor se conhecerem. Depois de 2007, pela primeira vez na história da SIEPM (fundada em 1958), um brasileiro foi eleito membro do bureau (conselho) da Sociedade. Isto é um reconhecimento importante da Comunidade internacional para o trabalho já concluído e a qualidade dos trabalhos realizados por certos pesquisadores da América Latina. Graças a este encontro, a SIEPM poderá sensibilizar de maneira mais eficaz a comunidade internacional e conduzir, deste modo, seu padroado aos projetos futuros concernentes à Segunda Escolástica. A obtenção de subsídios e de créditos de pesquisa locais será facilitada pela presença da SIEPM no Brasil e valorizará os esforços já realizados por nossos colegas deste país.

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