Edição 341 | 30 Agosto 2010

Raimon Panikkar, buscador do Mistério

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Faustino Teixeira

Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), recorda a vida e a obra de Raimon Panikkar, falecido na semana passada. Ele será sepultado no dia 3 de setembro, no Mosteiro de Montserrat, próximo de Barcelona. Eis o artigo.

Os místicos dizem que a morte mais difícil não é a morte física, essa morte pequena, mas aquela que acontece com o desapego radical e o mergulho na profundidade da alma. A expressão utilizada é “morrer antes de morrer”. Assim aconteceu com Raimon Panikkar , que nos deixou nesse agosto de 2010. Talvez tenha sido um dos Buscadores do Mistério mais ousados e provocadores. Sua vida foi toda tecida pela dinâmica da relação. De mãe católica e pai hindu, traz em sua vida esse traço de dialogação.

Uma vez perguntado sobre o seu itinerário pessoal respondeu que partiu cristão, descobriu-se hindu e retornou budista, sem ter jamais cessado de ser cristão. E anos depois, acrescentou que no seu retorno, descobriu-se um cristão melhor. Esse é Panikkar, referência singular para o diálogo das religiões e a reflexão sobre a espiritualidade. A perspectiva dialogal estava envolvida em sua vida como o musgo na pedra. Não via futuro nas religiões a não ser no intercâmbio criativo entre elas. Dizia que sem a interlocução externa as religiões não poderiam senão afogar-se. Propunha um “diálogo dialógico”, mais existencial, de “fecundação mútua”, que pudesse de fato envolver os parceiros numa busca comum do mistério. O diálogo para ele era, antes de tudo, um ato espiritual, que implicava uma profunda consciência da humildade e vulnerabilidade dos interlocutores diante do Mistério sempre maior e adiante. Mesmo reconhecendo todas as dificuldades que acompanham a abertura e o êxodo para o mundo do outro, acreditava que esse era o caminho seguro para a construção da identidade. Tornava-se necessário conhecer e dialogar com uma outra tradição religiosa para poder situar verdadeiramente a própria tradição. Em frase lapidar, assinalava que “aqueles que não conhecem senão sua própria religião não a conhecem verdadeiramente”.

Na visão de Panikkar, o diálogo interreligioso requer como condição fundamental a atitude de “uma busca profunda, uma convicção de que estamos caminhando sobre um solo sagrado”. Há que se despir de preconceitos para acessar o mundo do outro. E essa viagem não é fácil. Mas há que sair do “esplêndido isolamento”. O encontro com o outro torna-se hoje “inevitável, importante e urgente”. Mas alongar as cordas é sempre muito difícil. Exige um questionamento profundo às nossas convicções e a disposição de deixar-se transformar pelo outro. Como indica Panikkar, é também um encontro “perigoso e desconcertante”, mas certamente purificador. É a condição indispensável para nos darmos conta da profundidade inexaurível da experiência humana e dos limites precisos de nossos vínculos contingenciais e limitados. Para Panikkar, o salto desarmado na realidade é “audacioso e mortal”, e esse foi o exemplo deixado por peregrinos como Buda e Jesus. No horizonte dessa busca o que existe é algo encantadoramente simples, como destaca Mestre Eckhart: algo que é “florescente e verdejante”. Panikkar indica que o verdadeiro buscador deve voltar-se para o que é simples por excelência: o Mistério que nos habita e que também brilha no mundo do outro. Na verdade, o diálogo é uma viagem novidadeira que toca de perto nossa própria peregrinação pessoal, no sentido do encontro com a plenitude de nós mesmos. Há que jogar-se com liberdade nessa água, nos diz Panikkar, ainda que nossas pernas vacilem e nosso coração titubeie. Mesmo sabendo que há o risco de nele nos perdermos e afogar, é o caminho essencial para tocar o fundo.
No último período de sua jornada, Panikkar dedicou-se ao tema da mística e da espiritualidade. Para ele, a mística vem entendida como a “experiência integral da vida” ou “experiência da Realidade última”. E a categoria Realidade assumia para ele uma importância única, de densidade mais ecumênica para expressar o significado profundo da experiência do Mistério sempre maior. Enquanto a mística traduz para ele essa “experiência suprema da realidade”, a espiritualidade vem entendida como o caminho para alcançar essa experiência. É ela que faculta o essencial fermento para a qualidade da vida e para o encontro autêntico com o outro.

Em bela iniciativa da editora italiana Jaca Book, toda a obra de Panikkar está sendo recolhida e organizada e vários volumes, divididos por temas, entre os quais: mística e espiritualidade, religião e religiões, cristianismo, hinduísmo, budismo, cultura e religiões em diálogo, hinduísmo e cristianismo, visão trinitária e cosmoteândrica, mistério e hermenêutica, filosofia e teologia, secularidade sagrada, espaço tempo e ciência (Opera Omnia).

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>> Confira outros artigos sobre Raimon Panikkar no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU:

* Ícone da Unidade, Raimon Panikkar. Publicado nas Notícias do Dia em 28-08-2010;
* Raimon Panikkar, teólogo da dissidência. Publicado nas Notícias do Dia em 28-08-2010;
* Panikkar, uma visão oriental do catolicismo. Publicado nas Notícias do Dia em 14-06-2010;
* Raimond Panikkar: felicidade no momento presente. Publicado nas Notícias do Dia em 20-05-2010; 
* Crer com o corpo: a lição de Raimon Panikkar. Publicado nas Notícias do Dia em 13-04-2010;
* O tempo do perdão e a lógica do inimigo. Artigo de Raimon Panikkar. Publicado nas Notícias do Dia em 25-10-2007;
* O grande desafio do terceiro milênio para o cristianismo é tornar-se realmente católico" Entrevista com Raimon Panikkar. Publicado nas Notícias do Dia em 04-01-2007;
* Por uma teologia pós-religião: sem dogmas nem doutrinas. Publicado nas Notícias do Dia em 18-03-2010;
* ''Deus está além das religiões''. Publicado nas Notícias do Dia em 29-08-2010;
* Pannikar, pensador único e irrepetível. Publicado nas Notícias do Dia em 29-08-2010;
* Raimon Panikkar: diálogo e interculturalidade. Publicado nas Notícias do Dia em 29-08-2010;
* Unir céu e terra serve para restituir um sentido ao mundo. Publicado nas Notícias do Dia em 29-08-2010.

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