Edição 340 | 23 Agosto 2010

A relação entre o Reino pregado por Jesus e o conceito de Vida Boa dos povos indígenas

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Moisés Sbardelotto

Para Quinto Regazzoni, teólogo italiano residente no Paraguai, a ética do Bem Viver pressupõe uma base teológica, já que toda essa concepção de vida está impregnada com o transcendente e com a presença do Pai-Mãe supremo: uma teko-logia

Os povos originários da América Latina falavam em viver bem. Jesus falava em viver em plenitude. Os índios buscavam a terra sem males. Jesus anunciava a vinda do Reino. É possível estabelecer algum tipo de aproximação entre essas duas perspectivas teológicas?

Para Quinto Regazzoni, teólogo italiano e padre dehoniano, que trabalhou muitos anos no Uruguai e hoje reside no Paraguai, isso é possível, desde que se traduza em “uma atitude fundamental para o diálogo: a escuta atenta e a humilde e constante capacidade de aprender com os demais”.

Os povos indígenas do continente, defende, propuseram uma filosofia ancestral de vida, o Sumak-Kawsay, isto é, a Vida Boa: “um dom compartilhado que gera bem-estar para todos, e não apenas para alguns”, explica. E isso traz novas perspectivas para as dimensões social, econômica cultural e religioso-transcendental das nossas sociedades contemporâneas.

O Bem Viver também está em direta relação com a busca da Ivy marãne'y, a terra sem males sonhada pelos guarani. “A busca de uma terra sem males não é um sonho distante, inalcançável, mas sim uma tarefa cotidiana que encarna o projeto de Vida Boa nessa sociedade da reciprocidade”, afirma Regazzoni, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. “A itinerância física desses povos seminômades indica uma itinerância espiritual, uma busca perene, uma constante transitoriedade”, diz.

O conceito do Bem Viver, segundo o teólogo, também propõe outra relação do ser humano com a natureza. O cosmos dos guarani está ordenado com base em um contexto festivo que celebra a gratuidade e a reciprocidade.

Tudo isso manifesta uma concepção de vida que está impregnada com o transcendente e com a presença do Pai-Mãe supremo: nas palavras de Bartomeu Meliá, uma teko-logia, que, segundo Regazzoni, “tem muito a ver com toda a teologia que fala de um Deus da Vida e, especialmente, a teologia de Jesus de Nazaré”.

Jesus, por exemplo, é visto por seus contemporâneos como um profeta apaixonado por uma vida mais digna (teko marangatu, em guarani) para todos, uma vida boa (teko porã). “Ele proclama o Reinado de justiça e misericórdia de Deus, isto é, sua maneira de ser, cheia de bondade, que instaura a ansiada ‘Shalóm’, que pode ser traduzida como bem-estar, uma vida plena, cheia de prosperidade”, afirma.

Quinto Regazzoni, teólogo e sacerdote dehoniano, nasceu em Bérgamo (Itália). É licenciado em Disciplina das Artes pela Università di Bologna e tem pós-graduação em Comunicação pela Universidad Católica del Uruguai. Foi fundador e diretor da revista Umbrales, de Montevidéu. Morou por muitos anos no Uruguai e, neste ano, mudou-se para Assunção, no Paraguai.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Sumak Kawsay (quéchua equatoriano) ou Suma qamaña (aimará boliviano) expressam a ideia de Bem Viver. Quais são os aspectos centrais desse conceito indígena?

Quinto Regazzoni –
O conceito de crescimento econômico como base do desenvolvimento social é um conceito feito à medida das ilusões e das utopias do neoliberalismo e do capitalismo tardio. É como um dogma religioso, em que o economista coloca toda a sua confiança, proclamando soluções “científicas” que supostamente tirariam a humanidade da barbárie do subdesenvolvimento.

Essa noção de crescimento econômico nasce do conceito iluminista de progresso e das promessas emancipatórias da modernidade. Essa política do progresso ilimitado e do crescimento global deu, nos últimos anos, trágicas provas de produzir mais pobreza e mais desigualdade. Frente a isso, os povos indígenas do continente conseguiram fazer ouvir sua voz e propuseram a sua ancestral filosofia de vida, o Sumak-Kawsay, isto é, o Bem-Viver, ou, melhor traduzido, a Vida Boa.

Os aspectos centrais dessa concepção ancestral são:

1 - Uma dimensão social – Propõem-se medidas de equilíbrio e de reciprocidade entre os seres humanos, abrindo caminhos de solidariedade. O exercício dos direitos das pessoas, das comunidades e dos povos se dá em um equilíbrio entre sociedade e natureza, e entre os seres humanos. Para isso, cada um está disposto a receber e a dar em reciprocidade, em uma sociedade em que se prima pela solidariedade. A Vida Boa é, então, um dom compartilhado que gera bem-estar para todos, e não apenas para alguns. Nesse sentido, essa meta não é alcançável em termos individuais. Trata-se de uma meta que abrange a todos, respeitando a diversidade que se apresenta em cada sociedade.

2 - Uma dimensão econômica – A sociedade deve medir seu bem-estar não tanto pelas cifras macroeconômicas, mas sim pela qualidade de vida de todos os seus integrantes. A Vida Boa também considera a questão dos recursos naturais não com fins de exploração, mas sim em um contexto de conservação e de convivência mútua entre natureza e o ser humano.

3 - Uma dimensão cultural – O conceito indígena de Vida Boa propõe que se considere cada país ou nação como uma cultura e sociedade plurais, atentas ao particular e reconhecendo a contribuição de todas as minorias. O conceito de Sumak Kawsay se apresenta então como uma proposta alternativa ao estilo de vida materialista, centrado em um progresso econômico social que privilegia uma produção orientada ao consumo, à acumulação de capitais, em detrimento, muitas vezes, dos bens culturais.

4. Uma dimensão religioso-transcendental – O bem produzido pela sociedade, além de visar aumentar o nível de vida, com critérios ecológicos e de justiça social, também propõe e inclui um critério de transcendência e de bem-estar espiritual (cf. Umbrales, nº. 198, p. 3).

Essas quatro dimensões fundem-se e interagem em um único sistema harmonioso de convivência e de reciprocidade.

IHU On-Line – O Sumak Kawsay é também o caminho para a Ivy marãne'y (terra sem males), sonhada pelos guarani? Nesse sentido, como entender o progresso e o desenvolvimento?

Quinto Regazzoni –
Agora que estou vivendo no Paraguai, um pouco mais perto do mundo e da cultura guarani, fico ainda mais fascinado pelo seu teko (= modo de ser) . Os significados de reko são múltiplos, como já assinalava em 1639 o grande estudioso da língua guarani, o jesuíta Antonio Ruiz Montoya . Ela significa: maneira de ser, de pensar e de agir, hábito e costumes, norma e comportamento, sistema de vida e cultura. É mais do que evidente que os guarani estavam satisfeitos com esse modo de viver que definiam como ñande reko katu (nosso modo de ser autêntico e bom) ou ñande reko marangatu (nosso modo de ser santo, virtuoso e digno). Já nisso temos uma similitude surpreendente com o Sumak Kawsay dos povos andinos. No entanto, há algo mais específico: os povos guarani têm claro seu horizonte, sua vocação e missão, quando falam da Ivy marãne'y (a terra sem males).

Embora seja muito conhecida a expressão terra sem males”, que os guarani puseram como fundamento de sua constante busca por um mundo melhor, convém aprofundar o sentido desse horizonte utópico que marcou a vida daqueles que povoaram o Cone Sul do continente.

A busca de uma terra sem males não é um sonho distante, inalcançável, mas uma tarefa cotidiana que encarna o projeto de Vida Boa nessa sociedade da reciprocidade. O estudioso da cultura guarani Bartomeu Meliá  afirma que “o Guarani é um povo em Êxodo” . A itinerância física desses povos seminômades indica uma itinerância espiritual, uma busca perene, uma constante transitoriedade. Entretanto, há também um espaço de estabilidade que fixa e sacramentaliza essa busca: é a festa (arete), considerada como o tempo (ara), verdadeiro (ete). É o tempo autêntico, o tempo da Vida Boa, que é um sacramento da terra sem males e da felicidade plena.

“Na dança, revela-se o xamã, que é ‘Nosso Pai’, o caminho. Esse caminho conduz à casa de Nossa Mãe, onde não faltam frutas, nem chicha  para beber. É a festa" (MELIÁ, 1991, p.52).

Os bailes, os cantos, a chicha tomada até a embriaguez, o fumo ritual do tabaco que envolve todos os presentes não são só parte de um cerimonial, mas sim a expressão dessa terra sem males que estava na origem e estará no fim.

Deve-se destacar que a arete dos guarani era um tempo autêntico porque recolhia e repartia os frutos do seu tempo cotidiano. Na festa, os frutos da terra e do trabalho são oferecidos como dom e graça (aguyje). Por meio dessa graça, a pessoa alcança o desejado bem-estar e tem a virtude do bem-viver, que tem muitas manifestações: teko porã (ser bom), teko joja (ser igual, ser justo); teko ñemboro'y (ser sereno), teko marangatu (ser santo, bom)...

Esse bem-viver não era algo teórico. Traduzia-se em bondade e sabedoria prática. Vemos isso por exemplo na sua arte de cultivar a terra, conhecendo e classificando perfeitamente todas as espécies vegetais e animais, as características ecológicas dos diversos lugares. O grande botânico suíço-paraguaio Moisés S. Bertoni dá testemunho disso em sua obra de classificação das plantas (depois do grego, o guarani é o idioma que mais contribuiu com terminologia para a nomenclatura botânica).

Os bons conhecimentos práticos dos guarani tornavam-nos hábeis “agrônomos”. E, em vez de explorar a natureza, preferiam emigrar: nunca deixaram desertos atrás de si. O colono europeu acabou pedindo emprestado esses conhecimentos aos guarani (MELIÁ, 2004, p.20).

IHU On-Line – Que tipo de relação entre o ser humano e a natureza nos é proposta pelo Bem-Viver? A partir disso, como podemos compreender a ordem dada por Deus de “dominar” ou “submeter” a terra, segundo o livro do Gênesis (1,28)?

Quinto Regazzoni –
Hoje todos somos conscientes de que a salvaguarda da criação é um imperativo urgente. Fenômenos como o aquecimento global ou a extinção dos recursos e das espécies são uma ameaça real e iminente. A sociedade moderna com o seu discurso de desenvolvimento ilimitado, ao instrumentalizar a natureza, rompeu a unidade do homem com seu entorno e provocou uma das crises mais graves e profundas, que põe em perigo toda a existência humana sobre a Terra.

O conceito de bem-viver propõe outra relação do ser humano com a natureza. Entre os povos guarani, por exemplo, a boa terra recebe a sua formosura e plenitude de uma relação festiva com seu fundamento original, Nosso Primeiro Pai. O cosmos (ordem) dos guarani não é ordenado com base em um interesse de utilidade ou, pior, de exploração, mas sim em um contexto festivo que celebra a gratuidade e a reciprocidade. Instauram-se assim uma relação íntima com o princípio transcendente e, ao mesmo tempo, uma relação solidária com o próximo.

Um belo texto mítico dos mbya-guarani do Guairá diz:

“Tendo conseguido a plenitude dos frutos, deles darás de comer a todos teus próximos, sem exceção. Os frutos perfeitos são produzidos para que deles comam todos, e não para que sejam objeto de avareza. Dando de comer a todos, só assim, só vendo nosso amor a todos, Nosso Pai Primeiro prolongará nossos dias para que possamos semear repetidas vezes” (MELIÁ, 1991, p. 68).

Nessa festa da reciprocidade, o guarani se faz “senhor” da terra não para explorá-la, mas sim para transformá-la em um fruto de amor e unidade. Com o trabalho de muitos, unidos em mutirão (potirõ), obtiveram-se os frutos; com uma festa (arete) de muitos faz-se a redistribuição. Ali, na festa guarani, se obtém a centralização do cosmos, ali está o centro da terra, essa terra sem males à qual se aspira.

Temos aqui um paralelo significativo com o relato bíblico da criação, em que o ser humano é posto no centro do jardim da criação. A ele corresponde dar o nome (dar identidade e plenitude) às criaturas; não para explorá-las, mas sim para relacioná-las ao seu centro.

Quando Deus lhe faz guardião e continuador seu no desenvolvimento e cuidado da criação, aparecem as discutidas palavras “Submetam a terra e dominem...” (Gen 1, 28). No entanto, esse senhorio delegado por Deus deve ser entendido em sua própria perspectiva criadora, de serviço e cuidado amoroso, como muito bem especifica o segundo relato da criação (Gen 2, 15): “Javé pôs o ser humano no jardim do Éden para que o cultivasse e o cuidasse” (o verbo original é servir).

Nada mais e nada menos do que o trabalho, por humilde e simples que seja, é parte desse “senhorio-serviço” que Deus nos encomendou. Continuar o desenvolvimento, vencer os mistérios da natureza, tornar possível  vida, buscar e produzir o alimento, criar beleza, pôr ordem e beleza no mundo. Tudo deve ser, para o crente em Deus, uma tarefa divina, uma tarefa entendida como um dom, encomendada pelo próprio Deus. Até o trabalho se transforma em graça, em gratuidade recebida e dada; em uma vida gastada, mas ao mesmo tempo fecunda. Novamente, os povos guarani nos ajudam a compreender essa verdade com a sua filosofia de vida, seu teko marangatu, teko porã.

 

 

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