Edição 339 | 16 Agosto 2010

“O melhor da minha vida vivi com os índios”

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Graziela Wolfart

O jesuíta mexicano jXel narra a experiência de tentar viver a partir do modo de vida dos povos indígenas, desde sua cosmovisão, seu modo de pensar, de viver, de sentir, de se relacionar com a terra, com a natureza, com Deus, com a comunidade

No último dia 5 de agosto aconteceu na Unisinos o encontro dos coordenadores do Apostolado Social da Companhia de Jesus na América Latina e dos diretores dos Centros de Pesquisa e Ação Social da Companhia de Jesus na América Latina. Jesuítas de diversos países latino-americanos estiveram presentes no intuito de refletir sobre a ação social da Companhia de Jesus. Um deles foi o mexicano Gerónimo Hernández, mais conhecido como jXel. Este é seu nome indígena, escolhido com base no tseltal, idioma ameríndio. Há mais de 25 anos jXel vive na selva mexicana, entre os povos indígenas. E num dia de frio típico do Rio Grande do Sul, comum no mês de agosto, foi inevitável o choque com a pouca roupa e com os pés descalços de jXel. Mas ele explica que o frio está na cabeça e o calor no coração. Como o coração manda mais, ele não sente frio, não sabe nem o que é. Antes de iniciar a entrevista que segue à IHU On-Line, em que ele conta um pouco de sua experiência e sobre como é viver entre os índios, ele explica que a letra “j” na frente de Xel serve para indicar que se trata de um nome masculino. E Xel é Gerónimo na língua tseltal.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor pode nos contar um pouco de sua história pessoal?

jXel – Sou um jesuíta mexicano. Estou há mais de 25 anos morando na selva, onde vivem comunidades indígenas. Vivo e trabalho com eles. Conheci o mundo e a realidade a partir da experiência de viver, a princípio, com eles, tratando de levar algum aporte, alguma ideia, algum recurso. Com o tempo, fui me dando conta de que é muito pouco o que eu levava em relação ao que eu aprendia com eles. Então, pouco a pouco, comecei a passar de viver com eles para viver como eles, o que não é fácil, porque, a cada vez que achamos que estamos nos aproximando, percebemos que estamos cada vez mais longe. E quanto mais tento entrar na sua cultura, mais me impressiono o quão longe estou dela. Mas tento viver não só como eles, mas a partir de seu modo de vida, de sua cosmovisão, de seu modo de pensar, de viver, de sentir, de se relacionar com a terra, com a natureza, com Deus, com a comunidade. Minha experiência mais forte nestes 25 anos de vida com eles é que me transformam profundamente, em meu coração. É claro que às vezes me sinto mal, pois descubro tantos limites, tantas “pedras”, tantas dificuldades, mas acredito que o melhor da minha vida vivi com eles, para eles, na tentativa de viver um pouco a partir do seu mundo, sua perspectiva. Finalmente digo que não somos nós que evangelizamos; são eles que nos fazem viver o evangelho e dão sentido à nossa vida.  

IHU On-Line – Qual é a novidade que os povos indígenas trazem para a América Latina hoje?

jXel – Acredito que a novidade seja para nós ou para o mundo ocidental. A novidade consiste em nos darmos conta de que, em primeiro lugar, eles existem. Para muitos grupos ou setores eles são invisíveis. Muita gente não sabia sequer de sua existência, muito menos se dão conta da profundidade de sua vida, seus valores, suas experiências. Então, a novidade para alguns é descobri-los, entendê-los, nas suas formas de vida, que levam a uma harmonia com a natureza, com o ser humano e com Deus. Eles oferecem uma contribuição muito importante para a cultura ocidental, que realmente perdeu os valores. Uma cultura que pretende ser bem desenvolvida, com muitas tecnologias, na verdade está destruindo o planeta; uma cultura que pretende desenvolver uma civilização, na verdade está matando o ser humano e isolando-se cada vez mais; uma cultura que se diz possuidora de valores espirituais e morais se esqueceu de Deus. Ao contrário, as culturas indígenas também têm problemas, dificuldades, crises, mas a sua chave é que são comunidades, vivem comunitariamente, diferente dos ocidentais que vivem como indivíduos. Todas as constituições dos Estados valorizam o indivíduo e garantem os direitos subjetivos: são garantias individuais. Ao contrário disso, os povos indígenas são comunidades, e, como tal, vivem em harmonia com a natureza, não a destroem, se colocam no mundo para cuidá-la e não para destruí-la. A natureza é uma mãe, não um objeto a ser explorado; precisa, isso sim, ser cuidada.       

IHU On-Line – Como o senhor avalia a situação do México hoje?

jXel – O México está vivendo uma crise muito forte, como todos os países estão. Mas especialmente creio que a crise política no México é muito profunda. Foram destruídas praticamente todas as estruturas de funcionamento político e econômico. Os partidos políticos perderam completamente a credibilidade frente aos cidadãos. Como isso se reconstrói é um processo difícil. Creio, porém, que a crise se dá frente às estruturas de poder políticos, culturais, eclesiais. As pessoas têm adquirido uma consciência de que esses são poderes construídos por grupos que pretendem dominar e continuam dominando, mas que estão perdendo essa “magia” que tinham antes, como se fossem intocáveis. Quando eu era criança simplesmente ouvir a palavra “deputado”  era como um deus. Nunca se imaginava chegar perto de um deles. Hoje um deputado é alguém com que se reclama diretamente. O mesmo acontece com os arcebispos.

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