Edição 336 | 06 Julho 2010

Jesus: o profeta da Galileia

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Graziela Wolfart | Tradução: Benno Dischinger

Para o historiador e exegeta francês Jacques Schlosser, os evangelhos do Novo Testamento permanecem como fontes essenciais à disposição dos historiadores

Na entrevista que aceitou conceder por e-mail à revista IHU On-Line, o professor Jacques Schlosser explica que “a relação entre o retrato histórico de Jesus e a cristologia afirmada nas comunidades após a Páscoa pode ser compreendida como uma passagem do implícito ao explícito”. Em suma, destaca ele, “entre Jesus, o profeta cuja história nos dá uma imagem de traços relativamente nítidos e o Cristo da confissão cristã, os elementos de continuidade não faltam”.


Jacques Schlosser é exegeta, professor na Faculdade de Teologia Católica de Strasbourg (Université Marc Bloch). De sua vasta produção bibliográfica, citamos La Recherche De La Parole: etudes D'exegese Et De Theologie Biblique (Paris: Editions Du Cerf, 2006), The Catholic Epistles And The Tradition (Leuven: Peeters Pub & Booksellers, 2004), Le Dieu De Jesus: etude Exegetique (Paris: Editions Du, 1987) e Le Regne De Dieu Dans Les Dits De Jesus (Paris: J. Gabalda, 1980).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quem foi o Jesus, profeta da Galiléia, do ponto de vista histórico?
Jacques Schlosser - Encontro, em sua questão, o essencial da resposta. Jesus foi efetivamente um profeta da Galileia. Seu pertencimento incontestado à Galileia impeliu certos pesquisadores a explicações ousadas da figura de Jesus. Uma pretendida helenização massiva da Galileia e, correlatamente, uma suposta ruptura da Galileia com Jerusalém, a cidade do templo e o coração de Israel, forneceram a esses pesquisadores o pano de fundo que permitia transformar a figura de Jesus para dela fazer um filósofo ou um sábio cínico. Esta tese ousada parece estar sendo agora abandonada, o que não é razão suficiente para que se dissocie totalmente Jesus da figura social do sábio. Mas, a figura social que “cola” melhor com os dados disponíveis é a do profeta. Ela era muito atual no país dos judeus no primeiro século da era cristã, como sabemos graças ao testemunho de Flávio Josefo, historiador judeu. Um dos profetas mencionados por Josefo não é senão João Batista, que de certo modo foi o mentor de Jesus. Os dados internos ao Novo Testamento confirmam a atualidade da figura do profeta e precisamente, sob diversos aspectos, que ela serviu de chave aos contemporâneos para compreender Jesus. Tem-se disso um belo eco em duas passagens de Maré que relatam a concepção do povo. Pouco a pouco, Jesus é identificado com João Batista ressuscitado, com Elias, com um dos profetas (Mc 6, 14-15 e 8, 28). 

 

IHU On-Line - Como podemos compor um retrato cientificamente histórico de Jesus?
Jacques Schlosser - A história não é uma ciência exata cujo andamento chegaria a uma proposição incontestável baseada em provas irrefutáveis. O método do historiador comporta aspectos que fazem dele, ao mesmo tempo, uma arte. Por conseguinte, a história é uma disciplina que tem suas regras, um método rigoroso, tanto na investigação das fontes como em sua interpretação. No caso particular do estudo histórico de Jesus, as fontes profanas são raras e sua contribuição muito reduzida. Recentemente foi preciso clarear a questão das fontes cristãs exteriores ao Novo Testamento ou, em outras palavras, aquelas que não estão contidas no cânon das Escrituras. Trata-se essencialmente de evangelhos ou de fragmentos evangélicos classificados como “apócrifos”, mas que seria melhor chamar simplesmente “não canônicos”. Após um período de excessiva admiração, durante o qual se tentou valorizar essas fontes outrora negligenciadas, voltou-se a uma apreciação mais sóbria e mais crítica, concedendo um lugar particular ao Evangelho de Tomás, que permanece como fonte válida quando considerado caso a caso. Ao lado das fontes arqueológicas que aguçaram singularmente, nesses últimos anos, nosso conhecimento do contexto ambiental de Jesus e dos discípulos, os evangelhos do Novo Testamento permanecem como fontes essenciais à disposição dos historiadores. Mas, o que é um evangelho? Uma espécie de biografia escrita à luz da fé pascal e destinada a fazer nascer ou a confortar a fé junto ao leitor. Dois evangelhos o dizem claramente: não se trata de um escrito que informa de maneira neutra sobre a carreira de Jesus, mas do testemunho de um crente que quer suscitar a fé (Lc 1,4; Jo 20,30-31). Há casos bastante claros em que os evangelistas atribuem a Jesus um discurso em função de uma situação que não existia como tal durante sua vida. Mt 18, 15-17 é um exemplo disso difícil de contestar. Em vista disso, o historiador deve examinar a questão com mais atenção para valorizar, em primeiro lugar, aquelas palavras e gestos de Jesus que oferecem uma base sólida.

 

Critérios de confiabilidade

Para realizar esta tarefa a crítica bíblica elaborou pouco a pouco critérios de confiabilidade. Um deles responde a uma prática constante dos historiadores, a convergência das fontes independentes. Quanto mais fontes convergentes houver, mais o julgamento crítico está assegurado. Falar-se-á, pois, de atestação múltipla quando Mc, a dupla tradição, a fonte particular de tal ou tal evangelho (Mt e/ou Lc), e o evangelho de João atestam juntos a mesma palavra ou a mesma ação de Jesus. O critério vale em princípio desde que duas fontes independentes convirjam. Outro critério se baseia sobre o embaraço que tal ou tal elemento acabou criando nas comunidades, por exemplo, a injúria feita a Jesus em Lc 7.35, ou o fato de que Judas fez parte dos Doze. Em suma, há coisas que não se inventam e que, portanto, nos fazem atingir o primeiro nível. Um trabalho de investigação rigorosa deve ser feito para que o historiador possa pronunciar-se de maneira válida e integrar tal ou tal elemento em sua apresentação global.

 

IHU On-Line - Quais as principais diferenças entre o personagem histórico Jesus e o Cristo da fé cristã?

Jacques Schlosser - Os evangelhos foram escritos muito tempo após as primeiras expressões da fé que a luz da Páscoa pôs em destaque. Bem depois, por exemplo, que Paulo desenvolvera sua rica cristologia baseando-se ele próprio em elementos que recebeu de comunidades como a de Antioquia. Nessa primeira geração cristã que precede a escritura dos evangelhos afirma-se muito claramente a messianidade de Jesus, pois lhe é dado o nome muito forte de Senhor; ele é confessado como exaltado junto a Deus e se compõe, na ocasião, hinos que cantam sua condição divina, isto é, sua preexistência, pondo-se o acento no caráter salvífico e redentor de sua morte. Começa-se mesmo a lhe atribuir o qualificativo “Deus”. A distância parece, pois, ser muito grande entre a riqueza da cristologia após a Páscoa e os dados dos evangelhos sobre Jesus, o profeta da Galileia. E, no entanto, encontram-se pedras de toque notáveis nos relatos dos evangelhos. Sublinha-se, na ocasião, a proximidade particular de Jesus com o que ele chama seu Pai, de sorte que o título “filho [de Deus]”, muito corrente na tradição judaica para diversos personagens, toma agora uma dimensão nova e particular. Jesus sustenta, na ocasião, que a posição tomada em relação à sua pessoa é determinante para a salvação futura. De maneira global dir-se-á que Jesus exprime uma pretensão de autoridade, fazendo prova de grande liberdade ou inventividade em relação à tradição judaica. Segundo um modelo que muitos historiadores não reconhecem como válido, mas que me parece fundado, esta reivindicação de autoridade implica uma cristologia. A relação entre o retrato histórico de Jesus e a cristologia afirmada nas comunidades após a Páscoa pode, então, ser compreendida como uma passagem do implícito ao explícito. Em suma, entre Jesus, o profeta cuja história nos dá uma imagem de traços relativamente nítidos e o Cristo da confissão cristã, os elementos de continuidade não faltam.

 

IHU On-Line - Qual a principal mensagem e as ações mais marcantes do profeta da Galileia?
Jacques Schlosser - A razão pela qual o evangelho de João não pode ser posto no primeiro lugar das fontes que nos informam sobre a mensagem de Jesus é seu silêncio quase completo sobre o reinado ou reino de Deus. Tal é, com efeito – e por uma vez há consenso entre os especialistas – o cerne da proclamação de Jesus e ele é massivamente apresentado nos evangelhos sinóticos. Jesus situa-se muito claramente na herança de Israel que, se ele não fala com muita frequência do “reino de Deus”, reconhece muito claramente a realeza de Deus sobre Israel e utiliza de bom grado a propósito de Deus o verbo reinar. A originalidade de Jesus é de recorrer frequentemente às palavras reinado/reino de Deus. Esta realidade era esperada para o futuro na apocalíptica judaica. Jesus compartilha desta convicção e desta esperança. Ele é mais original quando sublinha que, através de sua pregação e sua ação, o reino de Deus se manifesta desde agora. A palavra “reino” deve, então, ser tomada como conceito dinâmico, isto é, ele designa o exercício de um poder. Segundo Jesus, o poder divino que ele vê em obra é benéfico, a ponto de “reino de Deus” ser a categoria salvífica privilegiada de Jesus. Compreende-se melhor, então, a conexão estabelecida por Jesus entre a vinda presente do reino e sua própria atividade. O agir libertador de Jesus constitui uma parte importante de seus milagres. Ele se faz em benefício dos enfermos e daqueles que o espírito mau retinha em seu poder. Por outro lado, esta dimensão salvífica aparece claramente quando se visa o que eu chamo de bom grado os “clientes” do reino de Deus ou seus hóspedes prioritários. Detecta-se sua presença nas palavras de Jesus, ao mesmo tempo em que ela aparece em seus contatos com o povo. Em Jesus, Deus assume o poder de socorrer os pobres e situa entre os beneficiários de sua ação os publicanos e as prostitutas, ou seja, esses “menos” que são as crianças e os que se lhes assemelham, sem esquecer o grupo mirrado e receoso dos discípulos. Através de Jesus, os desfavorecidos e os marginalizados são os beneficiários inesperados da ação graciosa de Deus. Se a participação no reino não depende de algum mérito, mas da livre iniciativa divina em Jesus, se pode entrever um elo possível com a doutrina paulina da justificação, e chega-se, assim, à questão precedente.

 

IHU On-Line - Por que Jesus é considerado uma das figuras mais sedutoras da história?
Jacques Schlosser - Quase não ouso responder a uma questão tão vasta. De um lado, a simpatia que se atribui a Jesus deve ser devida ao testemunho em palavras e em atos que dão, através da história, os que se referem a ele na fé. Suspeito que, por outro lado, o resplendor de Jesus é devido ao seu gênio poético. Dificilmente se esquece alguém que sabe convencer utilizando sabiamente imagens simples e eficazes, como o é, por exemplo, o pequeno desenvolvimento sobre a trave e a palha em Mt 7, 1-5, ou a palavra incisiva “quem põe a mão no arado e depois olha para trás, não é feito para o Reino de Deus” (Lc 9,62). Muitos daqueles que não aderem a Jesus pela fé são provavelmente seduzidos pela atenção prestada por ele, em sua prática social, aos marginalizados e desclassificados e pela nobreza de seu ensinamento ético, tal como ele pode ser descoberto nos materiais postos em forma no sermão da montanha (Mt 5-7). Admira-se também sua notável insistência no perdão. Como eu já fiz por diversas vezes, pronunciando conferências sobre o Jesus da história, para concluir minha resposta sobre este ponto inesgotável, cito um texto de Jean Daniel, editorialista da revista Le Nouvel Observateur: “Já que estou nisso, quero concluir sobre Jesus, o Judeu de Nazaré. Sua historicidade, para mim, não é nada redutora. Ela é mesmo exaltante. O homem que fundou o direito (“Que aquele que jamais pecou jogue a primeira pedra”) e a separação da religião e do Estado (“Daí a César o que é de César”) espanta por sua modernidade. Ele funda, ele inaugura, ele anuncia. Ele clareia em todos os problemas atuais do integrismo e da confusão entre o temporal e o espiritual. Quanto àquele que quis compartilhar o sofrimento dos homens, ele é seguramente hoje, neste início de 1994, o ser mais indispensável com que a humanidade jamais sonhou. Cabe a cada um decidir se este ser é o filho de Deus” (NO nº 1522, 6 de agosto a 12.01.1994).

 

IHU On-Line - Como o senhor avalia os relatos do novo testamento sobre o Jesus histórico? 
Jacques Schlosser - Respondi a uma parte essencial desta questão a propósito dos evangelhos. Para o resto do Novo Testamento, a messe é bastante magra. Mas Jesus não é esquecido. Ele se beneficia mesmo de uma bela promoção, quando o nome do profeta da Galileia é associado de maneira indelével à confissão dos crentes em inumeráveis fórmulas para as quais, pela força do hábito, não se tributa mais a devida importância: “Jesus Cristo”, o “Senhor Jesus”, etc.... Palavras de Jesus são evocadas cá e lá. Assim, a interdição do juramento numa versão talvez mais primitiva do que aquela do evangelho de Mateus (c. Mt 5, 34-37). Ou então a palavra “há mais felicidade em dar do que em receber”, atribuída ao “Senhor Jesus” em Atos 20,35, mas desconhecida dos evangelhos. Para esse tipo de testemunho as cartas de Paulo são particularmente importantes, já que, por sua data, são todas mais antigas do que os evangelhos. Paulo se torna, assim, um testemunho independente dos evangelhos. Ele atesta, pois, que certas palavras de Jesus circulavam nas comunidades bem antes de Marcos, o evangelho mais antigo. Encontram-se em Paulo pelo menos dois casos claros: a sentença de Jesus sobre o divórcio em 1Cor 7,10-11 e a regra do missionário em 1Cor 9,14.

 

IHU On-Line - Como o senhor define a experiência histórica dos primeiros cristãos a partir da ressurreição de Jesus?
Jacques Schlosser - Primeiramente é preciso sublinhar que a ressurreição abre para o além da história e não pode, por isso, em princípio ser diretamente objeto de uma investigação histórica. Entende-se bem que certos historiadores consideram metodologicamente correto encerrar sua pesquisa com a morte de Jesus. Eu observo que nossas fontes mais antigas não atestam nenhuma testemunha que teria assistido em pessoa à cena da ressurreição. É, pois, preciso reformular em parte a questão e perguntar sobre em que experiência se apóiam os testemunhos que atestam que Jesus não permaneceu sob o poder da morte. Nossas fontes nos fazem duas proposições: a descoberta do túmulo vazio e as aparições pascais. No que concerne ao túmulo, os testemunhos da primeira geração cristã se reduzem a poucas coisas. A menção do túmulo se encontra somente na fórmula de fé que o próprio Paulo recebeu e que reproduziu em 1Cor 15,3-5: “ele foi colocado na sepultura [ou: foi sepultado]” (v. 4). Mas, nenhuma precisão é dada e a própria descoberta do túmulo vazio é passada sob silêncio. Os evangelhos são mais prolixos na matéria quando, em relatos que divergem amplamente entre si pelos detalhes, atestam unanimemente que o túmulo de Jesus foi encontrado vazio (Mc 16,1-8 par.). Mas, observo de passagem, os próprios evangelhos não consideram a sepultura vazia como prova, já que evocam o roubo ou o deslocamento do cadáver como explicações possíveis de um túmulo agora vazio. As aparições pascais, que podemos chamar visões quando nos colocamos do lado do beneficiário humano, abundam nos evangelhos. Mas deve-se, sobretudo, relevar sua presença nas tradições e testemunhos da primeira geração cristã. Além de 1Cor 15,3-5 pode-se realçar precisões autobiográficas de Paulo no seguimento desse texto, mas também em 1Cor 9,1; Gl 1,15-16. Continua evidentemente difícil precisar o que foi esse tipo de experiência. Proponho simplesmente algumas observações.

 

A surpreendente experiência pascal

 

Diversamente das visões ordinárias, a experiência pascal não aparece como o produto de uma fé ou de uma expectativa anterior. Ela surpreende. Ela comunica um novo olhar sobre Jesus, de modo que ela pode ser qualificada simultaneamente como objetiva e subjetiva. O recurso à linguagem muito particular do “ele se fez ver” (1Cor 15,5-8; Lc 24,34) que põe tão fortemente o acento na iniciativa do personagem transcendente, e a diferença feita por uma destas testemunhas, Paulo, entre a cristofania e as “visões e revelações” (2Cor 12,1), levam a contar com uma experiência singular. Segundo as testemunhas, alguma coisa lhes adveio do exterior, de maneira inopinada e gratuita. O termo “aparição” é de natureza a evocar uma manifestação desse gênero e, por falta de algo melhor, o vocabulário da objetividade pode convir para ela. O historiador que se atém aos seus próprios métodos pode estabelecer a realidade dessa convicção, mas ele não pode ir mais longe. 

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