Edição 335 | 28 Junho 2010

Um ponto de partida das histórias foucaultianas da sexualidade: corpo e individualidade em o Nascimento da Clínica

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Carlos Eduardo Ribeiro

Uma análise da obra o Nascimento da clínica, de Michel Foucault, a partir da perspectiva do corpo e da individualidade é o tema do artigo a seguir, escrito pelo filósofo Carlos Eduardo Ribeiro, com exclusividade para a IHU On-Line

Graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), Carlos Eduardo defendeu a tese Foucault: uma arqueologia política dos saberes. Foi recém-aprovado como professor do Curso de Licenciatura Plena em Ciências na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Diadema.

Confira o artigo. 

Um dos trabalhos menos comentados de Foucault talvez seja o Nascimento da clínica. É possível que isso se explique em razão do árduo tema que lhe atravessa, a medicina moderna e sua noção de doença, ou mesmo devido à clara opção, feita por Foucault, por uma história conceitual da anatomoclínica que, considerando o surgimento da medicina do espaço social do século XVIII, favorece claramente, como modo de trabalho, a função metodológica nas teorias médicas. Poder-se-ia mesmo levantar a questão em que medida a consideração metodológica tão acentuada deste escrito não configurou uma arqueologia da metodologia clínica no desenvolvimento da arqueologia do olhar médico no século XIX. De todo modo, o Nascimento da clínica parece pouco acessível ao leitor de filosofia. Neste caso, a fortuna crítica o convocará apenas marginalmente no conjunto da produção do filósofo.

Por esta razão, vale pensar alguns aspectos desta arqueologia do olhar médico. Christiane Sinding parece ter em mente a questão da singularidade de o Nascimento da clínica quando, de modo pouco usual, ressalta a relação quase despercebida entre medicina e poder no escrito de 1963. Antes mesmo do projeto da crítica foucaultiana da subjetividade, as práticas divisantes do sujeito se fazem sentir no trabalho. Sinding trará o momento em que, na experiência médica moderna, impõe-se que o fenômeno patológico seja compreendido no domínio acoplado do hospital-escola. Tal experiência passa a fracionar o sujeito em médico-paciente, não para restabelecer o antigo papel de ocorrência classificatória e circunstancial da doença no doente, mas para forjar “uma estrutura coletiva do sujeito da experiência médica”. A medicina não se faz entre o paciente ignorante e a sapiência médica, mas “é feita solidariamente por aquele que descobre e aqueles diante dos quais se descobre”. Trata-se de uma “estrutura coletiva do sujeito” pelo qual “a clínica se situa no encontro de dois conjuntos; a experiência que a define percorre a superfície de seu confronto e de seu recíproco limite”.

Atividade média e consciência política

Tal alerta diz respeito aos primeiros capítulos de o Nascimento na clínica nos quais da atividade médica é tributária da criação de uma consciência política. É o caso da medicina da epidemia e da doença endêmica do século XVIII que fundarão os órgãos administrativos em nome do controle das doenças. O mesmo ocorria com a chamada medicina em domicílio que, tida por espaço natural doença, só podia ser viabilizada por uma medicina nacional, por estruturas controladas pelo coletivo e que ocupassem inteiramente o conjunto do social. É quando nasce a preocupação com a saúde da população, pela demanda de atendimento individual. Há, pois, uma nova espacialização da doença em curso. Em face das necessidades de uma coletvidade sob controle, de estruturas que deveriam ser coletivamente controladas, a doença é norteadora de uma medicina do espaço social. A “aparição de uma consciência médica coletiva e normativa pode parecer um tema secundário da obra” diz Sinding “mas sua reaparição ulterior sob a forma de um conceito de “biopoder” obriga o leitor a preocupar-se com a emergência desse tema em 1963” . O estudioso que quiser bem compreender o poder sobre vida estudado por Foucault, desde 1971, há de ter em conta estas preocupações primevas de colocadas pelo Nascimento da clínica.

Apesar disso, à primeira vista, alguém poderia pensar simplesmente que Foucault concebeu a noção de corpo, neste seu escrito de juventude, como modo discursivo, como diz Jean-Jacques Courtine, que se “inscreve no campo dos saberes antes de se inscrever no campo de um poder” .  Mas esta precedência é falsa. O olhar clínico, lembremos, é lançado no instante mesmo em que o espetáculo do patológico é percebido pelo olhar do médico. É preciso ter um claro cuidado em não negligenciar o elo entre vida e morte estabelecido pelo método anatomoclínico em seu olhar sobre o corpo doente, repartido no novo espaço-tempo da clínica. Aliás, nisto está a singularidade da clínica moderna: tomar a morte como domínio (moderno) de objetividade. Se o método da clínica é, de fato, um olhar sobre a profundeza dos corpos assegurado pelo exame da anatomia patológica que deseja estudar os tecidos e membranas, isto é, se a doença é o “o trabalho surdo da morte na vida” que temos à mão pela inspeção corporal profunda, então, conclui Courtine, “a obsessão contemporânea, cotidiana, minuciosa da saúde do corpo pode ser concebida somente como a radicalização desta concepção de doença, processo mórbido interno ao ser vivo” . Inevitavelmente, ainda hoje quando buscamos a saúde do corpo recorremos à sua dimensão mais objetiva de que ainda dispomos, um gradientes de mortes que se transforma a normalidade, como norma constituída, à normalidade como norma constituinte.

Com efeito, do interior de um trabalho quase que exclusivo com as teorias médicas, a noção de corpo para Foucault se identifica, ao mesmo tempo, à consideração da finitude mortal do homem e sua colocação como objeto da medicina. O corpo, portanto, na modernidade é norma constituída mudada em norma constituinte; é consciência médica normativa invertida em norma de individualidade. Fica aqui patente a filiação à prática da epistemologia histórica do mestre Canguilhem . Mas Foucault parece vai ampliar ainda mais este diagnóstico.

“É, sem dúvida, decisivo para a nossa cultura” concluirá o arqueológo do olhar médico “que o primeiro discurso científico enunciado por ela sobre o indivíduo tenha tido que passar por este momento da morte”,  . Assim como, na experiência da desrazão moderna, de História da loucura (5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 19979), encontramos a individualidade na alienação médico-paciente, a medicina moderna abre seus cadáveres para conhecer o homem na alienação da doença no corpo. Ambas aquilatam a dimensão individual do homem, conforme um movimento de perda e reencontro do que ele é. Psicologia e clínica compõem, na Modernidade, a grande ontologia negativa do homem. Na expressão de Foucault, elas fazem a grande “experiência da individualidade”, querem ambas conhecer o indivíduo por “referência à destruição” do homem: “[...] dos cadáveres abertos de Bichat ao homem freudiano, uma relação obstinada com a morte prescreve ao universal sua face singular e dá à palavra de cada um o poder de ser indefinidamente ouvida; o indivíduo lhe deve um sentido que nele não se detém”.  O doente se aliena no observador neutro e real da pessoa do médico. É o fim da velha proibição aristotélica que impedia um discurso científico sobre o indivíduo. Doravante, a morte disporá de uma linguagem na condição de conceito: o espaço em que o olhar médico verbaliza a forma diferenciada do indivíduo. Diferenciada por que excesso daquilo que o homem não é; diferenciada porque figura da finitude que se por si mesma confunde a empiricidade do olhar clínico  com o próprio homem-norma.

Estética da existência

Podemos então dizer que esta percepção epistêmica do corpo, inaugurada na anatomoclínica, não permanece circunscrita aos muros de uma epistemologia médica. A norma coletiva, invertida em norma individual pelo domínio da morte, é um dos traços originais do século XIX, do modo como a individualidade moderna foi elaborada em seus imperativos políticos. Assim, para Foucault trata-se, já nos anos 1960, de fazer uma crítica mais ampla da própria forma com que a racionalidade médica vem configurar, na realidade, uma política da verdade. Esta referência à negatividade como constitutiva do ser do homem (como o filósofo dirá na analítica da finitude de As palavras e as coisas. 8ª ed. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2000), é um imporante germe do subsequente programa foucaultiano da história da sexualidade. Que indiquemos um caminho à guisa de ensaio e desenvolvimento ulterior.

Aos menos dois importantes procedimentos, no contexto da história da sexualidade, explicitam o mesmo recurso à destruição constitutiva do homem como figura de seu ser: a rejeição da hipótese repressiva sobre a sexualidade, no que toca ao dispositivo de sexualidade, e a crítica da noção de sujeito do desejo e a rejeicão de uma teoria do desejo. Em a Vontade de saber (12ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997), a colocacão do sexo em discurso exigirá que Foucault elabore um “desengate” jurídico: desfazer-se de certa representação do poder como emanado de uma centralidade (cortar a cabeça do rei do posto de vista da história da representação política) a fim de expor, sob a rubrica da negatividade pacificadora do poder soberano, os assaltos de um poder estrategicamente disposto em redes de forças. Muitas vezes pensamos que Foucault simplesmente rejeitou o poder soberano para realizar esta sua história da sexualidade. É coisa diversa disso que a História da sexualidade I elaborou como analítica do poder: o discurso da interdição sexual (hipótese repressiva) tem uma estratégia sui generis que é, precisamente, a de apresentar o homem do desejo como liberado da repressão sexual. Ora, é exatamente esta operação, a que crê no fim da severidade sexual, que oculta a efetiva ação política deste discurso: da repressão à liberação são sempre estratégias de “assujeitamentos” que está a se formular. Não à toa mais tarde, especialmente a partir de O uso dos prazeres (7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1994), Foucault quer estabelecer sua história da sexualidade para além da evidência histórica da teoria do desejo. Problematiza nos volumes I e II da História da sexualidade o tema teórico geralmente aceito do sujeito desejante. Portanto, recorrendo outra vez à negatividade constituinte do nosso humanismo – neste caso, tendo em vista certa genealogia do inconsciente – Foucault faz a crítica do homem do desejo a fim de entender por que o discurso científico da sexualidade (a psicanálise) pertence à era que confessa o que se é recorrendo a um negativo nós somos (o inconsciente). Contudo, se, nos últimos escritos, Foucault viaja até a antiguidade greco-romana para realizar esta tarefa, é para tentar um caminho novo que o homem pretende: tentar uma análise das práticas históricas segundo as quais os indivíduos se interessaram por eles próprios, ou seja, Foucault quer, ao analisar as práticas de si, encontrar as regras ou critérios não de fixação do indivíduo, mas de sua mudança pelo pensamento, uma estética da existência.

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