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Márcia Junges
De acordo com a historiadora Tânia Navarro Swain, “Foucault desconstrói a imagem de um corpo essencializado em torno de um sexo e de uma sexualidade definidos por características próprias de um binarismo incontornável, fundado no sexo”. Entretanto, avalia a pesquisadora, “as representações sociais do binarismo sexuado estão longe de desaparecer!” Analisando a questão dos bodes expiatórios em relação aos “desviantes” da norma, Navarro destaca: “Todo ‘diferente’ da norma heterossexual, masculina, branca, pode, em certos momentos, tornar-se um bode expiatório para aplacar e canalizar a eclosão da violência social”. As afirmações podem ser conferidas na íntegra, na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, com exclusividade.
Graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tânia Navarro é mestre em História da América Latina pela Universidade Paris X, Nanterre, na França. Cursou Doutorado na Universidade de Paris III, Sorbonne Nouvelle, em Sociedades Latino-Americanas. É pós-doutora pela Universidade de Montreal e pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Feministas da Universidade de Quebec, Canadá. Atualmente, leciona na Universidade de Brasília (UnB), e é autora de O que é o lesbianismo (São Paulo: Brasiliense, 2000). É uma das organizadoras de A construção dos corpos: perspectivas feministas (Florianópolis: Editora das Mulheres, 2008), Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas (Florianópolis: Editora das Mulheres, 2005) e Feminismos, teorias e perspectivas (Brasília: UNB, 2000). Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o sentido em se falar de sexo feminino e masculino quando já se fala no transgênero?
Tânia Navarro Swain - As representações sociais do binarismo sexuado estão longe de desaparecer! Na distribuição de papéis sociais, apesar das modificações engendradas pelos feminismos, as mulheres continuam a ter funções secundárias, salários menores, tarefas dobradas, prestígio social ligado principalmente a um “destino biológico”, o da maternidade. A heterossexualidade é a norma, e qualquer manifestação fora deste esquema é tratada como desviante, quando não como doença a ser curada.
Os transgêneros apresentam um aspecto paradoxal: por um lado, não quebram o esquema binário, ao contrário, vêm reforçar a representação do humano sexuado em opostos, reivindicando um status de mulher ou homem, contrário à definição de seu gênero definido pelo sexo biológico. Por outro lado, ao realizar performances, os transgêneros quebram esta imagem do gênero ligado à genitália, pois fica claro que a aparência externa não está necessariamente conjugada ao sexo biológico.
Desta forma, no imaginário social, a representação da dualidade sexuada gerada pelo sexo biológico fica de alguma forma desfeita, pois uma mulher deslumbrante ou um homem viril podem ter, biologicamente, uma definição contrária à sua aparência. Mas estas performances não são suficientes para transformar o sistema binário e hierárquico da heterossexualidade.
IHU On-Line - Podemos dizer que ainda existe uma moral sexual rígida, mesmo que ganhem força movimentos como o GLBT?
Tânia Navarro Swain - Os comportamentos ligados à sexualidade são históricos, isto é, mutáveis e diversos de acordo com o espaço/tempo em que são contemplados. No sistema heterossexual, existe uma dupla moral, aquela jungida ao feminino, e a outra, liberal e com limites imprecisos, atrelada ao masculino. Às mulheres, a punição material ou o opróbrio social no desvio da norma; aos homens, a condescendência e uma aprovação implícita de derrogação desta última.
Na atualidade, existe uma hiperssexualização que transforma a sexualidade em eixo em torno do qual se desenvolvem as relações sociais. Em meu entender, o GLBT, sigla artificial que aglutina experiências diversas, tem como definidor práticas sexuais e, neste sentido, sua eclosão e visibilidade deve-se a esta profusão de sexualidades, deste clima de sexualização da vida. Como bem mostra Foucault , a homossexualidade se afirma e se torna visível na proliferação dos discursos sobre o sexo.
IHU On-Line - Antigamente, os loucos eram os bodes expiatórios da sociedade. Quem tomou seu lugar? Aqueles de sexualidade “desviante”?
Tânia Navarro Swain - Os loucos, na perspectiva foucaultiana, como os homossexuais, são figuras históricas, datadas, que não se definem em si, mas em relação à historicidade na qual aparecem. Na descontinuidade, como afirma este autor, os bodes expiatórios aparecem também historicamente, como uma alteridade absoluta ligada ao mal, à perversão, à desordem no social. Assim tivemos e ainda temos a perseguição e a violência contra as mulheres (por serem mulheres, o outro da referência masculina), os/as judeus/judias, o/a imigrante, o/a estrangeiro/a, os/as deformados/as, os/as aidéticos/as, os homossexuais (mulheres e homens). Todo “diferente” da norma heterossexual, masculina, branca, pode, em certos momentos, tornar-se um bode expiatório para aplacar e canalizar a eclosão da violência social.
IHU On-Line - Em que aspectos a filosofia de Foucault inspira um novo pensar sobre o corpo e a sexualidade?
Tânia Navarro Swain - Foucault desconstrói a imagem de um corpo essencializado em torno de um sexo e de uma sexualidade definidas por características próprias de um binarismo incontornável, fundado no sexo. Sua História de sexualidade (12ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997), publicada nos anos 1970, mostra a construção histórica desta sexualidade que passou a ser o centro, o eixo e a essência do humano. Nicole Claude Mathieu , feminista francesa, nos anos 1980, propõe a análise da “produção da diferença dos sexos” e, neste sentido, funde-se à perspectiva foucaultiana, pensando a construção social e histórica das definições corpóreas e das sexualidades. Mais recentemente, Judith Butler afirma a construção do sexo biológico pelas práticas de gênero, ou seja, a partilha e os limites das “diferenças de sexo” estabelecidas no social.
IHU On-Line - Nesse sentido, poderia apontar algumas apropriações que já aconteceram da obra foucaultiana para se repensar a sexualidade e suas ligações com o poder?
Tânia Navarro Swain - Foram muitas, em diferentes disciplinas, das ciências ditas exatas às sociais e humanas. Interessa-me apontar aqui não exatamente apropriações ou influências, contrárias ao pensamento de Foucault, pois este se atém às problemáticas de cada momento, com sua noção de descontinuidade.
Neste sentido e enquanto feminista, as reflexões de Monique Wittig , Adrienne Rich , nos anos 1980, e de Catherine Vidal , assim como Emily Martin , na atualidade, parecem-me contundentes. Sem esquecer que, no fim dos anos 1940, Simone de Beauvoir perguntava “o que é uma mulher?”, iniciando o questionamento sobre o sexo social, ou seja, sobre a injunção das formas corporais na partilha do poder nas relações humanas. Assim como Foucault, associam o exercício do poder aos discursos sobre o corpo e a sexualidade, que estabelecem hierarquias no campo social, com a ênfase dada ao masculino.
Monique Wittig, feminista francesa, e Adrienne Rich, americana, desenvolvem noções que instalam o poder masculino nas definições corpóreas e nas práticas sexuais. Para Wittig, a heterossexualidade, que chama de “pensée straigh” é um sistema que funda o poder masculino no social, estabelecendo, nos corpos femininos, os limites de sua importância social. Papel secundário, e destino: a procriação. Rich denomina este sistema de “heterossexualidade compulsória”, na medida em que as representações sociais e as normas comportamentais instituem um feminino já pré-definido por sua função materna, dele retirando as “características masculinas” da criação, invenção, raciocínio lógico, transcendência, transformação.
Emily Martin analisa os discursos médicos e representacionais sobre o feminino e suas funções corpóreas, sempre ligados à produção do humano, à menstruação como falha de uma possível gravidez, à menopausa como a exclusão das mulheres que não se encontrariam mais no mercado do sexo e da procriação.
Catherine Vidal, cientista do CNRS da França, desmistifica a biologização das características sexuais, trabalhando a fisiologia cerebral e a “diferença dos sexos”. De fato, estas análises convergem e remetem, com Foucault, o exercício do poder às delimitações sexuais, criadas pelo social, construídas em hierarquias e em “verdades”, afirmadas pelos discursos de poder masculino, desde a ciência até a religião.
IHU On-Line - Como podemos compreender os impactos da pílula anticoncepcional na liberação sexual das mulheres e, por outro lado, no jugo a que são submetidas sua libido e sua autonomia sobre o corpo em função dos efeitos colaterais desse medicamento?
Tânia Navarro Swain -A pílula não foi apenas uma liberação sexual, foi uma liberação simbólica e material do corpo das mulheres obrigado à procriação, pelas injunções dos homens e de Deus (criado à sua imagem e semelhança). A contracepção é “um negócio de mulheres”, se não querem ter filhos, devem sofrer as consequências da obrigação quotidiana, dos efeitos colaterais. Entretanto, é uma liberação, pois, até pouco tempo atrás, a contracepção também era crime. Não é de se espantar que religiosos e seus asseclas lutem pela criminalização do aborto, pois a liberdade de escolher entre ter filhos, ou não, é uma desordem no sistema da heterossexualidade compulsória, que estabelece papéis bem definidos: para as mulheres, a procriação e o cuidado dos filhos; para os homens, todo o resto.
De toda forma, a liberação da pílula trouxe às mulheres uma sexualidade calcada sobre a dos homens: o orgasmo tópico, a performance, a quantidade de parceiros e não a qualidade da relação e a exploração do corpo e do prazer. E isto apenas para aquelas que escaparem à sexualidade como injunção masculina, na violência doméstica, na prostituição, na submissão às normas religiosas de predominância e “necessidade” masculinas. Sem falar, em termos mundiais, da sujeição, venda e tráfico de meninas e mulheres, dos casamentos arranjados de crianças com velhos, das mutilações sexuais, todas práticas de poder do masculino sobre o feminino, fundamento das relações sociais, sistema, como apontam as feministas, de exercício do patriarcado.