Edição 334 | 21 Junho 2010

Copa do Mundo: ritual quadrienal de nacionalidade

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Márcia Junges

Redutos de sentimento nacional, as competições esportivas internacionais agregam torcedores dos mais variados times. No caso brasileiro, trata-se de um momento ímpar, de paroxismo de nossa brasilidade

De acordo com a antropóloga Simoni Lahud Guedes, os períodos em que acontecem Copas do Mundo são “verdadeiros rituais quadrienais de nacionalidade”. Em entrevista, por e-mail, à IHU On-Line, ela afirmou que “no mundo moderno, as competições esportivas internacionais transformaram-se em importantes redutos do sentimento nacional, na medida em que a economia está intensamente transnacionalizada, sendo as fronteiras nacionais relativamente porosas”. Analisando o caso brasileiro, é importante ressaltar, diz ela, que selecionamos “as Copas do Mundo de futebol como momentos paroxísticos da vivência da brasilidade. Esta ‘escolha’ específica, embora não programada, tem grande relação com a realização da Copa de 1950, no Brasil, com a construção do Maracanã e os sonhos de um Brasil grande”.

Simoni Lahud Guedes é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, com a tese Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores (Niterói: Eduff, 1997). É pós-doutora pela Universidade de Buenos Aires - UBA, na Argentina. Atualmente, leciona na UFF.

Escreveu O Brasil No Campo de Futebol: Estudos Antropológicos Sobre Os Significados do Futebol Brasileiro (Niterói: Eduff, 1998) e Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional (Niterói: Intertexto, 2006), escrito junto com o publicitário Edison Luis Gastaldo. Guedes participou do I Seminário Pátria de Chuteiras - Futebol e Sociedade no Brasil, que aconteceu nos dias 5, 6 e 7 de junho de 2006, na Unisinos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em época de Copa do Mundo nos tornamos mais brasileiros? Por quê?

Simoni Lahud Guedes - Certamente, no Brasil, os períodos da Copa do Mundo são verdadeiros rituais quadrienais de nacionalidade, especialmente a partir de 1950. É preciso considerar que este é um fenômeno mais geral. No mundo moderno, as competições esportivas internacionais transformaram-se em importantes redutos do sentimento nacional, na medida em que a economia está intensamente transnacionalizada, sendo as fronteiras nacionais relativamente porosas. Estas competições transformaram-se em espaços privilegiados para a vivência e reconstrução das diversidades nacionais.

Entretanto, é bastante interessante que, no caso brasileiro, tenhamos selecionado as Copas do Mundo de futebol como momentos paroxísticos da vivência da brasilidade. Esta “escolha” específica, embora não programada, a meu ver, tem grande relação com a realização da Copa de 1950, no Brasil, com a construção do Maracanã e os sonhos de um Brasil grande. Não é de menor importância, nesta escolha, a hegemonia nas representações coletivas da ideia de mestiçagem do povo brasileiro e das interpretações que atribuíram ao futebol praticado no Brasil características desta mestiçagem. A categoria “futebol mulato” cunhada por Gilberto Freyre, em 1938, é de grande importância neste sentido. O sucesso internacional do futebol brasileiro, a partir de 1958, sela esta relação intrínseca entre brasilidade e futebol.

IHU On-Line - Quais são os significados antropológicos por trás da etiqueta de país do futebol?

Simoni Lahud Guedes - Como afirmei acima, há inúmeros significados no Brasil que são veiculados através do futebol. O mais importante, do meu ponto de vista, é esta concepção de que o futebol brasileiro reproduz as qualidades e defeitos do povo brasileiro, em geral, vistas como decorrentes da miscigenação. Tanto na sua apreensão positiva quanto na sua apreensão negativa, esta concepção tem sido um eixo que congrega uma série de significados. Para confirmar este ponto de vista, basta ver a publicidade em torno do evento no Brasil que, como demonstrou Édison Gastaldo , elabora, sob várias dimensões, a categoria “brasileiro”. A maioria das mensagens enfatiza um brasileiro “genérico”, digamos assim, que pode pertencer a qualquer classe ou categoria social, tem todas as cores, mas é invariavelmente alegre, animado e esperançoso.

IHU On-Line - Nesse sentido, como se misturam sociabilidade e identidade social no futebol?

Simoni Lahud Guedes - As identidades sociais são, sempre, múltiplas, contextuais e contrastantes. Assim, nesse momento, aciona-se uma dimensão da identidade, a dimensão nacional, obscurecendo as outras dimensões. Como venho afirmando, as competições esportivas internacionais são espaços absolutamente privilegiados para tais acionamentos, pois proporcionam também os contrastes adequados (o brasileiro é assim, o italiano é assado e por aí vai...). Com o acionamento deste nível da identidade social – o da brasilidade – certamente novos padrões de sociabilidade se estabelecem, mesmo que por um curto período (e dependente do desempenho do selecionado). A vivência de experiências de compartilhamento do sentimento nacional, de fato, tende a propiciar padrões de sociabilidade específicos, incluindo, por exemplo, nas alegrias e tristezas coletivas proporcionadas pela seleção, um enorme contingente de pessoas que, apenas neste momento, interessa-se por uma competição esportiva.

IHU On-Line - Como percebe a união entre torcedores de times rivais em época de Copa do Mundo? Nessas horas, caem as barreiras entre as disputas polarizadas? Por quê?

Simoni Lahud Guedes - Creio que é exatamente pelo fato apontado acima, de que, no Brasil, elegemos as Copas do Mundo como rituais nacionais quadrienais. Para que isto ocorra é fundamental que todas as diferenças sejam paulatinamente suspensas. Contribui para esta suspensão a paralisação dos campeonatos locais, fazendo com que os olhares, obrigatoriamente, voltem-se para a competição maior. Assim, na medida em que o campeonato mundial se desenvolve, havendo um desempenho convincente do selecionado nacional, mais e mais o foco simbólico se fixa na Copa do Mundo e todas as diferenças (de classe, de gênero, de idade, de time, de cor) são provisoriamente suspensas, restando apenas a dimensão de “brasilidade”.

IHU On-Line - Por que, no Brasil, há tanto interesse pelo futebol? A realidade é a mesma em outros países?

Simoni Lahud Guedes - A difusão do futebol, sem qualquer sombra de dúvida, é um dos mais extraordinários fenômenos do século XX. Sua penetração em inúmeros países é remarcável. Em muitos, não há dúvida, há enorme interesse pelo futebol. Contudo, é necessário considerar que, embora absolutamente difundido, a apropriação que se faz do futebol é sempre específica, relacionando-se com as questões peculiares daquele espaço social. Então, eu diria que o futebol é importante, importantíssimo mesmo, em inúmeros países, mas, sempre, de modos distintos. É necessário um olhar cuidadoso para dimensionar a importância em cada caso.

IHU On-Line - A polarização Brasil-Argentina continua sendo explorada pela mídia, a exemplo da Copa de 2006. Em que medida estereótipos desse tipo são uma constante no futebol da Copa do Mundo e de épocas normais? Como compreender essa necessidade de rotulação?

Simoni Lahud Guedes - A construção da identidade não prescinde, de modo algum, da construção da alteridade. No caso de Brasil e Argentina temos o que venho chamando de uma “alteridade privilegiada” (e que um documentário de televisão chama de uma das “rivalidades históricas”, designação muito interessante também). Em geral, tais alteridades privilegiadas referem-se a nações muito próximas, histórica e metaforicamente, que elaboram e vivenciam suas diferenças através das competições esportivas. Sim, há muitas outras alteridades deste tipo mas, também, assumem sempre as características específicas das relações simbólicas entre estas nações.

IHU On-Line - Como a questão da raça se apresenta em campo? O futebol foi, em algum momento, um esporte de negros?

Simoni Lahud Guedes - A história do futebol no Brasil, como muitos cientistas sociais e historiadores vêm demonstrando, tem sido um veículo excepcional para a veiculação da questão racial. Há não só inúmeras interpretações ligadas a representações sociais sobre as capacidades e incapacidades dos negros, como episódios que concentram os diversos impasses que tal questão apresenta no Brasil. Houve mudanças recentes, não há dúvida. Mas, de certo modo, a luta contra o preconceito racial – de marca, no caso brasileiro, como bem identificou Oracy Nogueira – se passa, ainda cotidianamente, nos campos de futebol. Muitos têm notado, por exemplo, que, embora tenhamos inúmeros jogadores negros de sucesso, são raríssimos os técnicos, árbitros e, principalmente, dirigentes negros. E não são inexistentes os episódios de racismo explícito.

Não, no caso brasileiro, o futebol não é um esporte de negros. É um esporte trazido pelas elites descendentes de europeus, que se popularizou, e no qual os negros, a duras penas, foram conquistando espaço.

IHU On-Line - É correto compreender o futebol como um catalisador de pulsões e sentimentos? Por quê?

Simoni Lahud Guedes - Esta é a tese famosa de Norbert Elias que afirma que o homem moderno, submetido a um processo civilizador no qual as pulsões são internalizadas e controladas, necessita de espaços para vivenciar, de modo seguro e bem delimitado, estas pulsões. Neste caso, estes sentimentos seriam, como ele chama, miméticos, ou seja, espécies de simulacros das excitações anteriormente vividas. Os esportes, os jogos em geral, o cinema, o teatro seriam propiciadores destas emoções miméticas.

Parece-me que, no caso do futebol, no Brasil pelo menos, não são emoções miméticas nem tampouco delimitadas em espaço e tempo. Creio que o futebol tem sido veículo para emoções e sentimentos diversos que extravasam o campo de futebol e, no caso das Copas do Mundo, espaço para vivência do sentimento nacional. Todas as nações, para se realizarem, necessitam escolher símbolos e signos nos quais concentram os significados nacionais. No caso brasileiro, um dos veículos mais vigorosos que escolhemos foi o futebol por uma série de circunstâncias.

IHU On-Line - Como podemos compreender as torcidas organizadas no contexto de manifestação coletiva?

Simoni Lahud Guedes - Há, na antropologia brasileira, uma série de trabalhos etnográficos muito bem elaborados sobre torcidas organizadas. Eles vêm demonstrando que tais agrupamentos envolvem, em geral, uma série de representações sobre a masculinidade, apresentando-se como forma de vivenciar experiências coletivas de compartilhamento que, em geral, atravessam vários domínios da vida dos indivíduos. Como as torcidas organizadas estão ligadas ao sistema clubístico, são também, de certo modo, “suspensas” durante as Copas do Mundo.

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