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Greyce Vargas
Muitos dos mitos em torno da arquitetura brasileira contemporânea são questionados nesta entrevista que Pedro Arantes concedeu à IHU On-Line por e-mail, publicada nas Notícias do Dia em 11-06-2010. Ele analisa os vários tipos de arquitetura existentes e reflete sobre a influência financeira na área, os principais arquitetos, as construções nas favelas e, ainda, os programas do governo nesse setor. Segundo Pedro, “A esquerda precisa quebrar o mito que existe em torno de Niemeyer e ver que sua arquitetura favoreceu mais aos donos do poder e do dinheiro do que aos trabalhadores, uma arquitetura reconhecida por seus palácios e museus, mais do que por obras de interesse social”.
Pedro Arantes é arquiteto e urbanista. Atua como assessor técnico dos movimentos de luta por moradia e do MST em políticas habitacionais e urbanas. É coordenador do coletivo USINA, formador da Escola Milton Santos e professor das Faculdades de Campinas. É doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e autor do livro Arquitetura Nova (São Paulo: Editora 34, 2002). Atualmente, participa de um grupo interdisciplinar na pós-graduação da USP, que está analisando o Minha Casa, Minha Vida em todos os seus aspectos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais as principais transformações que você percebe na forma, na tecnologia e processos produtivos na arquitetura de hoje?
Pedro Arantes – Existem várias arquiteturas. Por exemplo, há a arquitetura produzida pelo mercado imobiliário, também chamada de arquitetura comercial, cujo objetivo imediato é mercantil. Há a arquitetura pública, dos equipamentos públicos como escolas, hospitais, terminais de transportes que, mesmo construída por empreiteiras, foram resultante de projetos definidos por arquitetos do poder público, supostamente em benefício das populações que serão atendidas. Há uma arquitetura feita nas periferias, a autoconstrução da casa por seus moradores, que representa mais da metade dos domicílios brasileiros.
A arquitetura que eu pesquisei no meu doutorado ainda é de outra natureza: a que está associada ao processo de valorização simbólica do capital e do poder, uma arquitetura do espetáculo, dos grandes eventos urbanos, dos edifícios midiáticos. Os arquitetos que projetam essas obras são premiados com o prêmio Pritzker e ocupam grande parte das revistas especializadas de arquitetura – são chamados de “arquitetos-estrela”. Procurei compreender a ideologia, a forma e a tecnologia dessa arquitetura que, a meu ver, revela em si características do capitalismo na sua era digital e financeira.
Museu da Arquitetura Moderna, em Curitiba
Esses edifícios são estranhos, inclinados, retorcidos, disformes – e é disso que extraem seus ganhos simbólicos e materiais: eles são feitos para atrair as atenções, não podem reproduzir nada do que já existiu. São formas únicas, inéditas, sempre a procura do nunca realizado. Isso tem levado a que esses escritórios de arquitetura sejam também inovadores nas tecnologias digitais de projeto e construção, pois têm que conseguir desenhar, calcular, orçar e erguer edifícios muitas vezes insanos, impossíveis de se realizar com os métodos tradicionais. De um lado, eles fabricam peças customizadas em fábricas com máquinas de controle numérico e robôs para serem montadas em obra. De outro, ainda utilizam, em seus canteiros, de forma significativa, o trabalhador braçal, desqualificado, muitas vezes migrante e precarizado, sem direitos trabalhistas e com baixos salários. É essa hibridização entre o mais moderno e o mais arcaico que é possível notar nessas obras, ao mesmo tempo fabulosas e infames, as novas pirâmides do Egito dos tempos atuais.
IHU On-Line – De que forma a dominância financeira influenciou nesse processo?
Pedro Arantes – Quando falamos em dominância financeira significa que há uma valorização fictícia do capital, que pode adotar diversas formas: ações de empresas na bolsa, títulos da dívida pública, renda imobiliária etc. No caso das obras que estou comentando, a dominância financeira se dá por meio do que denomino “renda da forma”. Cada edifício espetacular quer obter um ganho monopolista por meio de sua forma única e chamativa. Nesse caso, não se trata diretamente de uma renda da terra, como explicou Marx , mas de uma renda derivada do ineditismo da forma que atrai turistas, mídia, investimentos para a localidade que construiu aquela nova “maravilha” do mundo.
Com isso, esses edifícios tornam-se ímãs que atraem riquezas produzidas noutras partes do planeta para si, sugando a produção alheia numa estratégia rentista. Ao mesmo tempo, a construção desses edifícios mobilizou muito capital (em geral na forma de fundos públicos) e trabalho, foi um campo de extração de mais-valia fenomenal. E é essa enorme quantidade de trabalho cristalizado que é mostrada a todos, como um tesouro a ser admirado. A estranheza formal dessas obras é também uma figuração da dominância financeira, que liquefez as estruturas mais estáveis do paradigma de acumulação anterior. A liberdade formal no limite do gesto aleatório, ao promover uma espécie de “instabilidade semiótica” proposital – composições inapreensíveis, que fogem das matrizes visuais asseguradoras –, converge para os fundamentos da nova economia e da desestabilização do próprio mundo do trabalho. Ao contrário da arquitetura moderna, que prometia a comunhão entre capital e trabalho com um programa reformista para as cidades e a moradia dos trabalhadores, essa arquitetura que estou descrevendo é da vitória total do capital sobre o trabalho.
IHU On-Line – Qual o impacto da obra de Niemeyer para a arquitetura atual?
Pedro Arantes – O Niemeyer é uma figura paradoxal ao extremo. De um lado, um defensor da causa socialista, e, de outro, autor de obras que representam o poder estabelecido e que são difíceis de executar, que submetem os trabalhadores a condições perversas de produção, das mais arriscadas e complexas. Arquitetura não é uma arte como as demais, ela envolve grandes investimentos e contingentes de trabalhadores, ela molda a vida das pessoas da cidade à casa de uma forma tal que precisa ser vista com muita responsabilidade.
As curvas poéticas de Niemeyer têm consequências diversas e são festejadas pelos mais diferentes motivos. As empreiteiras, por exemplo, cobram um metro quadrado por obra de Niemeyer muito acima das demais obras. São feitos malabarismos construtivos em nome da forma – nem sempre justificáveis – mas que rendem orçamentos e ganhos fabulosos. Niemeyer tem projetos maravilhosos, como a Pampulha, e outros terríveis, como o Memorial da América Latina – mas em todos os casos a sua inovação formal sempre representou custos adicionais aos trabalhadores e ganhos adicionais aos construtores. Seus edifícios icônicos são reconhecidos pelos “arquitetos-estrela” da atualidade como precursores no uso midiático da arquitetura. Nesse sentido, Niemeyer soube antecipar a tendência pós-moderna de edifícios únicos e chamativos. A esquerda precisa quebrar o mito que existe em torno de Niemeyer e ver que sua arquitetura favoreceu mais aos donos do poder e do dinheiro do que aos trabalhadores, uma arquitetura reconhecida por seus palácios e museus, mais do que por obras de interesse social.
Um arquiteto que precisa ser mais conhecido pela esquerda é o João Filgueiras Lima (o Lelé) , que produz hospitais e escolas públicas por meio de uma fábrica de componentes ligada ao Ministério da Saúde. Ele trabalhou com Niemeyer em Brasília, só que sua tarefa não era projetar os palácios, mas os alojamentos e refeitórios dos operários e engenheiros. Desde então, ele esteve muito preocupado com a pré-fabricação, com os custos de construção e com a qualidade humanizada do resultado. Ele e sua equipe produziram a incrível rede de hospitais Sarah e diversas escolas em várias cidades. Todo o estudo de pré-fabricação que realizam pensa nas condições de produção e montagem das peças pelos trabalhadores – algumas vezes, organizados em cooperativas. Recentemente, sua fábrica foi combatida na justiça pelas empreiteiras que acusavam-na de obter resultados a muito baixo custo – ou seja, era um exemplo que questionava os ganhos fabulosos das construtoras e a má qualidade de suas obras. Por tudo isso, o Lelé é o maior arquiteto brasileiro da atualidade.
IHU On-Line – E como você vê o impacto da arquitetura brasileira no mundo hoje?
Pedro Arantes – A arquitetura brasileira perdeu muita importância internacional desde o seu auge, em Brasília, até os dias de hoje. Os vinte anos de ditadura e depois do neoliberalismo produziram um impacto devastador na profissão. Multiplicarem-se as escolas de arquitetura privadas e de baixo nível, ampliou-se o mercado comercial para a profissão na mesma medida em que ela foi se retirando do debate público sobre os grandes temas do desenvolvimento urbano no país. Hoje os arquitetos são irrelevantes na decisão de rumos do país. Sequer são ouvidos – e, muitas vezes, nem merecem mesmo sê-lo.
Veja-se o caso do Minha Casa, Minha Vida , o maior programa habitacional desde a ditadura, os arquitetos não abriram a boca, não se pronunciaram. O Instituto de Arquitetos do Brasil, as principais universidades, ninguém toma a frente para opinar sobre o pacote habitacional, para procurar melhorá-lo. O que sobra do reconhecimento internacional da arquitetura brasileira ainda é Niemeyer e agora Paulo Mendes da Rocha , que ganhou o Pritzker – mais um arquiteto de museus e obras de grife com um discurso humanista que não reflete o que faz. Paulo Mendes foi muito comemorado no exterior e seus discípulos de São Paulo conseguiram um espaço na mídia internacional por isso. Mas esse arquiteto está longe de refletir o que deveria ser a prática atual da arquitetura e do urbanismo no Brasil diante dos problemas que temos que enfrentar.
IHU On-Line – Vemos que as favelas têm aumentado muito nas grandes cidades. Como pensar na arquitetura numa realidade como essa?
Pedro Arantes – Os arquitetos-estrela são premiados justamente porque suas obras nunca disseram nada a respeito da nossa catástrofe urbana atual – ao contrário, eles são os produtores das joias da coroa que querem reluzir a ponto de fazer com que esqueçamos o que se passa nas grandes cidades. Essas “estrelas” nunca irão iluminar o sombrio planeta de favelas que se tornou a urbanização na periferia do capitalismo. São outros arquitetos e atores sociais que estão envolvidos com a transformação dessa realidade, arquitetos que nunca foram premiados, trabalhando em órgãos públicos, assessorias técnicas, laboratórios universitários etc.
O problema da favela é complexo, e não existem respostas fáceis. As políticas de direita oscilaram entre dois pólos: o da remoção e o da regularização. No primeiro caso, foram removidas, sobretudo, favelas em áreas centrais e de interesse do mercado imobiliário, sendo as populações empurradas para as periferias, longe dos olhos das classes médias. No segundo, a titulação nas favelas não acompanhada de investimentos pesados em urbanização, saneamento, equipamentos públicos e áreas de lazer se tornou uma bandeira milagrosa de resolver o problema apenas com uma solução jurídica e baixos investimentos. Esse foi o modelo do Banco Mundial aplicado com sucesso no Peru de Fujimori e que passou a ser exportado para todo o mundo: dar o título ao favelado para que ele tenha, na pequena propriedade, a base para se tornar um tomador de empréstimos e um pequeno empreendedor.
O que aconteceu é que se titularam áreas em situações inabitáveis, áreas de risco, áreas insalubres, consolidando e naturalizando a desigualdade social e fundiária, que é morar num barraco de favela. Uma política socialista para as cidades deve pensar a favela noutros termos: ela precisa receber investimentos pesados, é necessário abrir clarões para implantar equipamentos públicos e áreas de lazer, executar a infraestrutura com bons projetos e, sobretudo, a população que ali mora precisa ser ouvida, participar, discutir. Não dá para fazer intervenção por decreto, obras sem o envolvimento das comunidades só interessam às construtoras que descobriram na urbanização de favelas um filão lucrativo. É possível envolver os moradores na gestão dos recursos e na implementação da obra por meio de cooperativas locais que gerem renda para a população desempregada.
IHU On-Line – Qual a sua visão de programas como o Minha Casa, Minha Vida, que pretende construir um milhão de moradias? Como ficam questões como saneamento e meio ambiente com esse tipo de programa?
Pedro Arantes – O Minha Casa, Minha Vida foi lançado no sétimo ano do governo Lula como uma forma de salvar o setor imobiliário habitacional que estava em crise já há alguns meses antes da crise mundial. As maiores empresas do setor imobiliário haviam aberto capital na bolsa alguns anos antes e estavam com um crescimento insustentável. A queda no valor das ações dessas empresas já era notada desde o início de 2008, e a crise mundial, deflagrada em outubro, poderia levar diversas delas à bancarrota. O governo acenou com a estatização das empresas pela Caixa, mas recuou e decidiu injetar 34 bilhões de recursos do tesouro em projetos dirigidos a uma faixa de renda mais baixa do que a que essas empresas atingiam, ao mesmo tempo salvando-as, mas orientando o mercado para produtos mais populares.
Na prática, o programa é uma privatização da política habitacional, pois é feito pelo sistema ofertista das empresas privadas que tomam fundos públicos e o FGTS para fazer o que querem – é o modelo do Banco Mundial, já aplicado no México e no Chile. Nesse sistema, o poder público não decide onde construir, não projeta, não licita – são as empresas privadas, em nome da sua eficiência e rapidez, que dizem onde e como querem construir, obedecendo a um parâmetro mínimo dado pelo governo (casas minúsculas de 32 metros quadrados de área útil e apartamentos com 35 metros quadrados). O resultado tem sido, na maioria dos casos, a produção de grandes conjuntos periféricos levando a uma expansão insustentável da mancha urbana, com problemas ambientais, de transporte e saneamento evidentes. Isso tem levado também ao aumento da especulação imobiliária e do preço da terra, pois o programa não favorece a aplicação de instrumentos de reforma urbana, e sim de mercado.
A maioria das prefeituras está de mãos atadas e tendo que aprovar qualquer projeto em seus municípios para atender a enorme demanda existente. Trata-se de um modelo insustentável e privatista de crescimento das cidades, fantasiado de política social. O que é inegável é que o nível de subsídio é enorme, mas temos que nos perguntar se ele irá beneficiar quem precisa e colaborar com cidades mais justas e melhores ou, ao contrário, irá estimular a mercantilização da cidade em níveis nunca vistos.
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>> Arquitetura ecológica: o Brasil ainda tem muito a aprender. Entrevista com Erwin Rezelman, publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 07-08-2009.