Edição 332 | 07 Junho 2010

As imposições dos vegetarianos

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Juliano Zabka

Leia o artigo de autoria de Juliano Zabka, em que ele explica o que é o veganismo, não podendo ser considerado apenas como uma modalidade alimentícia, mas “um modo e filosofia de vida que vai muito além, tanto nas mais diversas dimensões práticas do cotidiano quanto nas perspectivas teóricas que o fundamentam e que são tratadas por pessoas com uma produção invejável e reconhecidas em nível planetário em diversas áreas do saber”.

Recebemos e publicamos o artigo que segue, de autoria de Juliano Zabka. Em seu texto, Juliano explica o que é o veganismo, não podendo ser considerado apenas como uma modalidade alimentícia, mas “um modo e filosofia de vida que vai muito além, tanto nas mais diversas dimensões práticas do cotidiano quanto nas perspectivas teóricas que o fundamentam e que são tratadas por pessoas com uma produção invejável e reconhecidas em nível planetário em diversas áreas do saber”. E defende que “vegetarianos e veganos são mesmo radicais por não aceitarem a sujeição e destruição de seres dotados de sensibilidade e consciência para atender aos propósitos dos humanos, propósitos esses em que os animais submetidos não podem se defender, manifestar consentimento na linguagem humana nem se beneficiar”.

Juliano Zabka possui graduação em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Unisinos. Atualmente, é laboratorista de apoio ao ensino na universidade. Exerce suas atividades no setor de atendimento e acervo do Curso de Arquitetura e Urbanismo e junto à Coordenação do Trabalho de Conclusão e Coordenação Executiva do referido Curso. É ativista independente nas causas do chamado movimento abolicionista, que luta pela inclusão dos demais animais na esfera de consideração moral e ética até então exclusiva da espécie humana.

Confira o artigo.

Com regularidade, por defenderem os animais que nasceram em espécies diferentes da nossa, vegetarianos e veganos são acusados de serem hipócritas, fanáticos, radicais, extremistas, impositores de ideologias e práticas alimentícias, contrários ao progresso da ciência, hostis em relação aos empresários e produtores do agronegócio, desprezadores da cultura e tradição entre tantos outros rótulos que recebem com extrema facilidade. Ainda existe uma grande confusão envolvendo as questões ambientalistas e da ecologia com o movimento vegano, que as inclui e as amplia.

Em uma rápida e resumida versão, veganos são aqueles que se desvinculam da moral vigente que aceita que seres não humanos sejam instrumentalizados e explorados para benefício dos humanos. Dessa forma, buscam não consumir nada de origem animal, que contenha componente animal ou que tenha “impresso” o sofrimento de um animal nos âmbitos da alimentação, vestuário, cosméticos, higiene e limpeza, entretenimento entre outras inúmeras facetas da indústria de bens e serviços. Questionam a cultura, as crenças, hábitos, tradições e quaisquer instituições onde existe a crueldade contra animais embutida. Fazem isso através de seu poder como consumidores – ou não consumidores – e cidadãos nas mais diversas áreas da sociedade, procurando propor e propagar visões e práticas para um mundo mais justo e ético através do exemplo, educação, tecnologia e muito mais.

Talvez, essas acusações acima sejam em virtude de observações carentes daquilo que já temos muita clareza, que frustra, mas nos impulsiona sempre adiante: o veganismo é um eterno perseguir, pois o veganismo puro é uma impossibilidade prática devido às variadas consequências diretas e indiretas de nossos atos e limitações temporárias, assim como as características de tudo que nos rodeia nesse momento da história. Também não é correto considerar o veganismo somente como uma modalidade alimentícia, visto que é um modo e filosofia de vida que vai muito além, tanto nas mais diversas dimensões práticas do cotidiano quanto nas perspectivas teóricas que o fundamentam e que são tratadas por pessoas com uma produção invejável e reconhecidas em nível planetário em diversas áreas do saber.

De todo modo, não costumamos abandonar algo que acreditamos apenas porque nossas limitações nos colocam em alguma “saia justa”. Nesse caso, somente porque está num patamar que não lhe impeça de ser acusado de hipócrita, ninguém vai deixar de lutar contra a tirania humana sobre os animais que tiveram o azar de nascer em formatos diferentes dos da nossa espécie e com habilidades próprias de sua natureza singular. A reputação desse alguém até pode ser colocada em dúvida - que de forma alguma deveria constranger o seu progresso pessoal e íntimo na direção daquilo que entende ser o coerente e correto, afinal é sempre um buscar sem fim –, mas, daí sugerir que a perspectiva ética é falha é um grosso erro ou má fé. Essas limitações podem e devem ser superadas sempre que possível, cada uma em seu tempo, o que é muito peculiar para cada pessoa.

Os títulos de radicais e extremistas, como desenvolve o filósofo Tom Regan  nos momentos iniciais de seu livro Jaulas Vazias , não são indevidos se interpretados de maneira dissociada do pejorativo. O sujeito que é contra o estupro é radical nesse sentido. Radical porque ele é sempre contra o estupro, não só de vez em quando ou dependendo das circunstâncias em que o estupro ocorre. Ele persegue a raiz da instância para fundamentar o seu posicionamento. Para ele, não existe justificativa ética para esse ato de violência contra o corpo e mente da vítima vulnerável e impotente perante a brutalidade e o bel prazer daquele que tira proveito daquilo que não foi consentido e que em nada beneficia quem sofre o abuso. Nesse sentido, vegetarianos e veganos são mesmo radicais por não aceitarem a sujeição e destruição de seres dotados de sensibilidade e consciência para atender aos propósitos dos humanos, propósitos esses em que os animais submetidos não podem se defender, manifestar consentimento na linguagem humana nem se beneficiar. Vão ao extremo na sua radicalidade, ao ponto de não mais financiar a indústria que transforma vidas plenas em coisas. Assim, buscam parar de consumir tudo o que provém dessa forçada metamorfose brutal onde o corpo de um animal é convertido em mero produto após seu espírito ter sido despedaçado nos confins das “modernas” granjas de criação intensiva, que em nada se assemelham ao ambiente provedor natural do infeliz agora subjugado nas profundezas daquilo que seria o nosso mais terrível pesadelo. Esse extremismo em nada prejudica os outros, como nos exemplos deturpados usados para desestabilizar. Muito pelo contrário. Serve para ampliar o círculo de consideração moral e educar para muito além da “cegueira assoberbada” que nos acomete.

Em relação às questões ecológicas e ao ambientalismo, entendidos tal como no paradigma atual, são percebidos conflitos entre eles e a vertente que nos guia e que traz as questões éticas de uma forma mais abrangente e alinhadas com uma humildade, que deveria ser própria de nossa condição tão perecível. Hoje, existem termos como o “animalismo” entre outros que diferem do ambientalismo por estarem comprometidos também com o indivíduo ao invés de um sistema apenas. Nesse ponto, de um modo geral – e com pouquíssimas exceções, pois parecem existir poucos ambientalistas que fazem a conexão com o animalismo ou veganismo ou abolicionismo animal – o ambientalismo peca por defender e perceber valor apenas na espécie animal a qual pertencemos, no sistema, no meio ambiente, nas espécies nativas e em extinção, desconsiderando todo o resto – e esse resto é quase tudo: bilhões e bilhões de indivíduos cujas vidas são tão importantes para eles como as nossas são para nós, aspecto extremamente difícil para o homem, no topo de sua arrogante, arbitrária e autoproclamada superioridade, admitir.

A não ser por um mirabolante e fantástico avanço tecnológico, essa pretensa salvação, legitimamente mediada pelos ambientalistas e ecologistas com o necessário respaldo de todos os demais, não existe. Nem na nossa insignificante e curta vida enquanto corpos em constante decadência, nem da natureza ou planeta que, segundo os astrofísicos e outros estudiosos desses eventos, vai ter sua transformação mais radical (ou mais uma) com a “morte” da estrela, do Sol. Ter consciência disso nos coloca de frente com a nossa natureza tão temporária e insignificante do ponto de vista cósmico e deveria nos trazer um pouco mais para perto de tudo que nos rodeia, com humildade e com a responsabilidade que a nossa potência exige, pois nossa potência situa todos os vulneráveis pelas consequências de nossos atos como impotentes perante nós. Como temos tratado aqueles que são impotentes perante nós? Apesar de a coisa mais certa ser a pulverização de tudo, isso não significa que não devemos zelar pela nossa “casa”, pelo nosso planeta e, principalmente, por todos os demais terráqueos tão semelhantes a nós naqueles aspectos de maior relevância, como a capacidade de sofrer com o corpo e mente e de portar o desejo ou impulso de perseguir seus interesses, sejam quais forem.  Eles têm valor pelo que são enquanto indivíduos, e não pela estética, por fazerem parte de um bioma, ou por estarem em extinção. Muito menos deveriam ser condenados para o filme diário de terror, para viverem subjugados nos abismos da desgraça que são as granjas de produção industrial de animais apenas por serem abundantes, feios, classificados como “para consumo” e como recursos, instrumentalizados e destruídos para que seus pedaços, órgãos, secreções e excreções sejam disponibilizados para nosso consumo.

Nas grandes e modernas sociedades industrializadas, isso já não é mais necessário. Obviamente, se tivéssemos de decidir entre a nossa vida e a de um animal para sobreviver, provavelmente, escolheríamos a nossa. Definitivamente, (e infelizmente) com não raras exceções, não precisamos mais decidir entre matar ou morrer. Existe uma infinidade de produtos que não exigem essas atrocidades. Basta ir num supermercado com a disposição de enterrar certos hábitos e costumes e de abandonar uma cultura sangrenta e covarde. Certa vez já foi dito que uma atrocidade não deixa de ser uma atrocidade nem se torna menor ou legítima apenas porque resolvemos chamá-la de cultura, tradição, hábito ou porque ocorre no mundo natural. Continua sendo uma atrocidade, queiramos ou não. Faça feridas no nosso orgulho ou não. Temos vários exemplos disso na história da humanidade, onde hábitos, culturas e tradições tiveram de forçosamente evoluir, de serem abolidas. É um imperativo da nossa condição de agentes morais, de protagonistas. Claramente não vamos parar de nos alimentar, nem de nos vestir, nem de nos embelezar e se divertir. Provavelmente vamos nos desenvolver mais e, no caso do Brasil e outros países semelhantes nesse aspecto, dar uma pernada além desse incessante período de enviar “matéria” prima barata e comprá-la de volta mais cara, transformada em produtos qualificados, onde os custos da destruição das florestas, do aquecimento global, do esgotamento dos recursos hídricos, da poluição do solo e das águas não estão computados devidamente. Apenas vamos redirecionar isso tudo para outra dimensão que não mais essa onde parasitamos os animais numa dependência quase que total e que transforma suas existências em algo assustadoramente abominável. Seria melhor que esses seres não existissem a serem trazidos para uma vida de tão terrível agonia.

Precisamos de uma sabedoria para olhar para o passado e reconhecer que, mesmo que algo tenha nos colocado numa condição confortável, não significa que esse algo deva perdurar ou estar isento de sérias críticas. Aqui situo a indústria de transformação de animais em coisas ou produtos, não na ótica ambiental, mas sim na da ética abrangente e não antropocêntrica. Temos o dever moral de proporcionar uma transição desse modelo para outro onde possamos reconhecer que passos foram dados no sentido de algo mais justo e não apenas centrado no egoísmo humanista econômico-financeiro endossado por um paradigma e cultura que devem evoluir. A cultura antropocêntrica e humanista deve ser superada, e o paradigma e os valores da sociedade de consumo devem ser revistos.

A acusação de que vegetarianos e veganos impõem seu modo alimentício é equivocada e injusta. Primeiro, conforme anteriormente mencionado, porque as questões ética e moral abrangentes seriamente desenvolvidas por referências planetárias sobre o assunto vão muito além da alimentação.  Esse é um problema antigo envolvendo termos e conceitos, de modo que confunde alimentação, ecologia entre outras questões que estão incluídas nessa perspectiva ética de inclusão dos animais não humanos na esfera de consideração moral e ética, porém, de longe, não contemplam sua amplitude. É extremamente injusta porque nos acusa de imposição. Embora tenhamos divergências internas, pois também não concordamos com as abordagens agressivas que muitos empenham em momentos inadequados ou demasiadamente gentis quando deveriam ser mais contundentes, quem realmente impõe? Quem é que financia a destruição de animais cada vez que faz uma compra, seja de alimentos ou de qualquer outro produto onde existe o corpo ou sofrimento de um animal, visto que existem alternativas para evitar isso? Afinal, quando realizamos uma compra, estamos concordando com as práticas e processos que culminaram no produto adquirido, portanto, estamos financiando a continuação de sua produção. Quem é que coloca o paladar acima dos mais caros interesses de um ser, como a liberdade para desfrutar sua vida do modo que lhe é próprio, evitar a privação dos movimentos entre outras sérias privações, não ter a dor e o sofrimento impostos sobre seus corpos e poder perseguir seus objetivos, sejam quais forem? Quem é que frequentemente debocha e afasta muitas vezes do convívio social aqueles que passaram a perceber os costumes por outro prisma? Quem perpetua práticas extremamente duvidosas sob o manto das intocáveis, quase dogmáticas, cultura e tradição e das realmente dogmáticas “práticas religiosas”? Quem que, travestido de todas as técnicas de comunicação de massa, através da publicidade e propaganda entre tantas outras táticas ridículas de pseudopersuasão e com verbas astronômicas, invade nossos lares e mentes, segundo a segundo, vendendo a morte para todas as idades com o discurso de que “faz com amor”? Em quantos consultórios médicos se tem o amparo da ciência ou atualização do profissional da saúde em se tratando desse tema que há muito é reconhecido e estimulado pelas sérias organizações de saúde em nível mundial? Quem destrói a mente e o corpo de seres sensíveis e conscientes sem seu consentimento em experimentos demoníacos que em nada os beneficia em nome de uma pretensa ciência protegida a sete chaves por um arrogante corporativismo?  Quem se diverte às custas do corpo ferido e arrebentado, da liberdade roubada para toda uma longa e enfadonha existência e da sanidade mental despedaçada de um ser em rinhas, rodeios, circos, zoológicos, farras entre outras maneiras de “entretenimento”?  Em quantas escolas é permitido a um professor tratar do assunto abordado aqui sem que sofra sérias intervenções tanto da “instituição” quanto dos pais desesperados pela “inconsequência” do educador? E aterrorizar todos ao redor sobre os malefícios de ser vegano ou vegetariano sendo que, ao seu lado, está alguém dentro da normalidade de um ser sadio e sabendo que existem vários assim por toda uma vida? Outros vários exemplos podem ser incluídos. Será que escrever livros, fazer passeatas e palestras, produzir e exibir documentários, discutir (de preferência amigavelmente) com seus próximos, realizar estudos científicos e acadêmicos, boicotar empresas e laboratórios sabidamente cruéis entre outras práticas podem ser consideradas imposição perto de tudo o que foi citado e muito mais que nossa atenção pode descortinar? Temos certeza que essa acusação de imposição é extremamente equivocada, e essa acusação é que está sim comprometida com uma ideologia cara para muitos, porém carente de sérios questionamentos éticos mais imparciais, embasados e honestos.

Finalmente e sem a pretensão de encerrar, não é o caso aqui de demonizar ou crucificar as pessoas que obtém seus meios de vida através das práticas aqui contestadas, como, por exemplo, os produtores rurais. Muitos que o destino acaba por nos colocar em contato são ótimas pessoas, na maioria das vezes, mais gentis e amáveis que muitos veganos ou vegetarianos com quem já convivemos, pois essa opção de escrever uma história pessoal mais isenta de crueldade não é um ato mágico na índole do indivíduo em outras áreas. A questão é que muitas dessas pessoas estão cegadas pela nuvem da cultura, tradição, indiferença crônica, insensibilidade adquirida pela repetição, dependência financeira e variáveis de toda ordem. Outras simplesmente não se importam com nada além do seu umbigo e arredores. E isso por si só é uma barreira de marcante importância, mas não definitiva nem inabalável. Será bem pelo contrário. Já está sendo! Para isso, estamos trabalhando tão sério por tantos séculos no planeta todo.

Seria desonesto deixar de dizer que os argumentos, ideias, exemplos, vocabulário e quase tudo que foi desenvolvido e adaptado no texto acima só foram possíveis graças às influências inevitáveis e extremamente bem-vindas, provenientes da leitura e estudo das importantes obras de autores que admiro, tais como Peter Singer , Tom Regan, Sônia T. Felipe , Flávio Gikovate  e com certeza muitos outros, além das minhas vivências por aí. Devo muito a eles a minha contribuição e imagino que contentes eles agradecem aos que os antecederam.

Leia mais...

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• Por uma ética do alimento. Sobriedade e compaixão. Edição 191 da revista IHU On-Line, publicada em 14-08-2006;
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