Edição 332 | 07 Junho 2010

A pílula e o surgimento de uma nova subjetividade feminina

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Graziela Wolfart e Márcia Junges

Na opinião da psicanalista Joana de Vilhena Novaes, a partir da pílula anticoncepcional, a sociedade é chamada a repensar os seus valores morais relacionados à sexualidade

Segundo análise da psicanalista Joana de Vilhena Novaes, a pílula anticoncepcional libera a mulher do confinamento do lar e da família, “e a desobriga de certas regras, aumenta o que até então a sociedade entendia quanto a definições do feminino”. No entanto, Joana faz um alerta: “dependendo do ponto de vista, o que vivemos não é uma libertação, pois a mulher só vem somando tarefas e aprisionando seu corpo em outras armadilhas. Hoje em dia, são exigidas da mulher novas competências. Em termos subjetivos e de libertação dos controles que a cerceiam, a mulher deve estar ainda no meio do caminho, longe de estar equilibrada. As renúncias são feitas, mas não sem prejuízos psíquicos”. E completa: “para uma nova mulher, é necessário um novo homem, uma nova estrutura social, novas relações parentais. É preciso que homens e mulheres descubram juntos seus novos papéis, as tantas possibilidades que se apresentam diante das relações ainda conflitantes”. Essas e outras afirmações foram feitas na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line.
 
Joana de Vilhena Novaes é doutora em psicologia clínica pela PUC-Rio, e duas vezes pós-doutora pela UERJ. Coordena o Núcleo de Estudos de Doenças da Beleza da PUC-Rio, e é uma das maiores especialistas nesse assunto, no Brasil. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisas Clínicas em Obesidade da UERJ, é autora de dois livros: O Intolerável Peso da Feiúra. Sobre Mulheres e seus Corpos (Rio de Janeiro: PUC/Garamond, 2006) e Com Que Corpo Eu Vou? – este último com previsão de lançamento para o próximo semestre. 

Confira a entrevista.
 
IHU On-Line - O que a pílula significa para a mulher em termos de liberação da lei natural e de controle do seu próprio corpo?

Joana de Vilhena Novaes - A possibilidade do uso da pílula anticoncepcional desvincula uma associação histórica da mulher com a maternidade. Trata-se de uma ação afirmativa feminina, capaz de quebrar a tradicional tríade mulher-mãe, uma ação que vem concomitante com o momento sociopolítico e que está intimamente ligada à questão moral e ideológica do movimento feminista. Em relação ao corpo, a pílula, uma vez que libera a mulher da regulação e da opressão que, historicamente, está associada ao seu corpo, que ficava sobre o julgo do senhor, da igreja etc., confere à mulher maior autonomia em relação a sua sexualidade. Pode-se dizer que passa a interferir em toda uma moralidade que este corpo assume.
 
IHU On-Line - Pode-se falar numa nova subjetividade feminina a partir do advento desse medicamento?

Joana de Vilhena Novaes – Certamente, pode-se falar em uma nova subjetividade feminina, uma vez que a sociedade é chamada a repensar os seus valores morais relacionados à sexualidade. A mulher passa a ter direitos sobre sua sexualidade, passa a ter escolhas. Senhora de si, pode então legislar sobre o seu corpo e controla mais o tempo da maternidade, do trabalho, das atividades domésticas. Legisla sobre o tempo que vai destinar a cada uma das atividades, pois, tem, em mãos, o poder de escolha de quando será mãe (e em alguns casos de se querer ser mãe). Ela tem uma perspectiva muito mais ampla, já que a pílula a libera do confinamento do lar e da família, e a desobriga de certas regras, aumenta o que até então a sociedade entendia quanto a definições do feminino. Mas essas mudanças não se processam na mesma velocidade que as mudanças subjetivas. Logo, em termos psíquicos e de subjetividade, mesmo que se leve em conta todo o simbolismo do advento da pílula, a mulher ainda se encontra aprisionada em suas expectativas ambivalentes, principalmente no campo dos relacionamentos amorosos. A mulher se autoriza em tomar a frente nas relações amorosas e tem, ao mesmo tempo, expectativas muito conservadoras. A mulher ainda tem dificuldade de se desapegar do homem provedor, do homem viril, do amor romântico. O discurso da mulher pós-revolução feminina ainda é ambíguo.
 
IHU On-Line - Nesse sentido, o protagonismo da mulher em nossa sociedade mudou após esse empoderamento vindo do controle de seu corpo?

Joana de Vilhena Novaes - Mudou sim. A mulher é senhora de si, vai à luta, e, ao mesmo tempo, não se exime dos tradicionais papéis, mas acumula as responsabilidades de mãe, esposa, dona de casa. Este “empoderamento” é, sem dúvida, uma conquista, mas não significa, em termos de subjetividade psíquica, que a mulher tenha um controle total do seu próprio corpo. Dependendo do ponto de vista, o que vivemos não é uma libertação, pois a mulher só vem somando tarefas e aprisionando seu corpo em outras armadilhas. Hoje em dia, são exigidas da mulher novas competências. Em termos subjetivos e de libertação dos controles que a cerceiam, a mulher deve estar ainda no meio do caminho, longe de estar equilibrada. As renúncias são feitas, mas não sem prejuízos psíquicos.
 
IHU On-Line - Podemos dizer que sexualidade e reprodução estão definitivamente separadas após a pílula? Por quê?

Joana de Vilhena Novaes - A sexualidade e a reprodução, para a mulher, não estão definidamente separadas, justamente porque a mulher ainda vive este conflito frente à extrema cobrança e ao julgo social. A pílula foi um avanço e trouxe comportamentos como a maternidade tardia, o que está intimamente relacionado à escolha do momento de ser mãe. Também fez com que a mulher assumisse novas posturas diante de sua própria sexualidade, conferiu uma liberdade maior em termos do prazer feminino. Mas, para a mulher, por mais bem-sucedida profissionalmente e resolvida sexualmente, a questão da maternidade ainda está sob um julgo do grupo social, dos pares, da família, que traz grande ressonância à mulher. Todos lhe cobram “quando você será mãe?”.
 
IHU On-Line - Mais do que uma revolução técnica, o que a pílula representa para a mulher em termos existenciais?

Joana de Vilhena Novaes - Em termos existenciais, controlar a maternidade significou, nas décadas de 1960 e 70, uma série de conquistas, extremamente relacionadas com a sexualidade, com a possibilidade de uso do corpo para o prazer. Mas também permitiu à mulher afirmar uma identidade e ter livre arbítrio. Por isso, pode-se considerar que é uma questão muito mais de afirmação da mulher, da possibilidade de se pensar outras representações do feminino, apontar para outra moral que não só a mulher-mãe e mulher-esposa. Mas até que ponto esse novo modelo de existência feminino se incorpora à sociedade? Isso certamente leva tempo.
 
IHU On-Line - Com esse novo panorama, como podemos analisar o papel do homem em nossa sociedade? Muda a relação de gênero?

Joana de Vilhena Novaes - Com a construção dessa nova mulher, que tem se tornado cada vez mais predatória no plano amoroso, no mercado de trabalho, e muito mais segura e confiante, o homem se sente perdido. Há um desconforto, pois, os papéis não estão mais tão bem marcados: quem é o provedor, quem vai à luta, quem toma decisões e se impõe? Onde, frente à nova mulher “emponderada”, os homens se situam? Para uma nova mulher, é necessário um novo homem, uma nova estrutura social, novas relações parentais. É preciso que homens e mulheres descubram juntos seus novos papéis, as tantas possibilidades que se apresentam diante das relações ainda conflitantes.
 
IHU On-Line – A partir de todas essas considerações, podemos entender a pílula como uma conquista?

Joana de Vilhena Novaes - A pílula foi uma conquista sim, em termos de sexualidade e de ação afirmativa, mas não se pode dizer que a mulher se libertou completamente e que não seja mais oprimida. A opressão deixa de ser externa para ser interna. A mulher não mais é oprimida por seu senhor, mas a opressão é incorporada por ela mesma, é internalizada. Ela não precisa mais de um aspecto externo lhe dizendo como ela deve ser e agir. Aparentemente, a nova mulher é livre para escolher, mas a culpa e a renúncia a certos modelos tradicionais ainda lhe trazem grande sofrimento. Não é difícil de perceber que a ambiguidade de que falávamos é o conflito inerente à nova mulher. A sociedade impõe idades-limite para certas ascensões, e isso é mais pesado para a mulher, ou mais cobrado dela. Em meu consultório, é comum ouvir frases de mulheres que vivem conflitos diários entre assumir o que querem ou satisfazer às expectativas das amigas, da família, da sociedade em que se inserem. O que podem parecer escolhas simples para uma mulher moderna – como quando casar e se quer casar, quando e se deseja ser mãe – é, muitas vezes, um sofrimento sufocante. “Agora eu tenho que casar, porque já passei dos 35 e não quero ficar pra titia.” “Eu não aguento mais ter que dar explicação de porque não quero ter filhos. Resolvi dizer que sou estéril. A pessoa fica muito constrangida, mas para de me questionar”. Não é a toa que a peça “Não sou feliz, mas tenho marido” , protagonizada pela atriz Zezé Polessa , ficou durante anos em cartaz. É claro que ela espelha a subjetividade da mulher, que não está totalmente liberta, caso contrário não daria satisfação, mas assumiria que não se enquadra às exigências sociais. A nova mulher está agora aprisionada dentro de seu próprio corpo: moralizada pela ditadura da beleza e assumindo um discurso sob um caráter individualista, como se todos os papéis e as obrigações que ela agora cumpre devessem ser cumpridos apenas para elas mesmas.
 
Leia mais...

>> Joana de Vilhena Novaes já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:

* "O corpo magro, esbelto, é um corpo de classe". Entrevista publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU, em 08-03-2010.

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