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Cesar Sanson e Graziela Wolfart
“A financeirização da economia capitalista nas últimas décadas é um processo que poderíamos definir como ‘keynesianismo financeiro’, no sentido de que os mercados financeiros têm tomado o lugar do Estado no que se refere à criação de uma busca adicional necessária ao crescimento econômico, necessária em particular à realização da mais-valia, criada no âmbito do circuito econômico”. A definição é do economista Christian Marazzi, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Ele identifica que estamos assistindo à “privatização do déficit, ou seja, a geração de renda e de consumo, que, no fordismo, era confiada ao Estado. Esta transformação das finanças em ‘ferramenta’ ativa, porém perversa, para suportar a demanda, anda de mãos dadas com o desmantelamento do Estado social e com a crescente privatização dos bens públicos”. Marazzi considera muito errada a separação entre a economia real e a economia financeira, especialmente, explica ele, “se considerarmos que a financeirização tem sido promovida, em primeira instância, pelas mesmas corporações multinacionais e fundos de pensão que investiram pesadamente no mercado de ações”. Para ele, nos dias atuais, “é a cooperação, a troca de saberes e conhecimentos, as competências adquiridas no âmbito do não-trabalho que são recursos estratégicos para o desenvolvimento do capital”.
Christian Marazzi é professor e diretor de investigação socioeconômica na Universidade della Svizzera Italiana. Também foi professor na Universidade Estadual de Nova York, na Universidade de Pádua, em Lausanne e Genebra. Entre suas obras, citamos Autonomia (Cambrigde: Mit Press, 2007), Capital and language (Cambrigde: Mit Press, 2008), em parceria com Michael Hardt e Gregory Conti, e O lugar das meias. A virada linguística da economia e seus efeitos na política (São Paulo: Civilização Brasileira, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor tem afirmado que o processo de financeirização que levou à crise que estamos vivendo se distingue de todas as outras fases de financeirização que ocorreram historicamente no século XX. Poderia explicar o que há de novo na atual expansão financeira?
Christian Marazzi - A financeirização da economia capitalista nas últimas décadas é um processo que poderíamos definir como “keynesianismo financeiro”, no sentido de que os mercados financeiros têm tomado o lugar do Estado no que se refere à criação de uma busca adicional necessária ao crescimento econômico, necessária em particular à realização da mais-valia criada no âmbito do circuito econômico. Assistimos à privatização do déficit, ou seja, a geração de renda e de consumo, que no fordismo era confiada ao Estado. Esta transformação das finanças em “ferramenta” ativa, porém perversa, para suportar a demanda, anda de mãos dadas com o desmantelamento do Estado social e com a crescente privatização dos bens públicos. Considero, portanto, muito errada a separação entre a economia real e a economia financeira, especialmente se considerarmos que a financeirização tem sido promovida, em primeira instância, pelas mesmas corporações multinacionais e fundos de pensão que investiram pesadamente no mercado de ações.
IHU On-Line - A distinção entre “economia real” e “economia financeira”, ou, ainda, entre “capital produtivo” e “capital financeiro” não se sustenta mais? Por quê?
Christian Marazzi – Hoje encontramos financiamento quando vamos fazer compras no supermercado e pagamos com cartão de crédito, ou quando compramos um carro ou uma casa, e temos a oportunidade de "criar renda", contratando um novo empréstimo hipotecário. As empresas não viveriam um dia sem a existência de uma demanda criada através do mecanismo da dívida e sem o custo de retorno financeiro. Há, portanto, a formação de uma espécie de renda salarial, especialmente devido à estagnação dos salários ocorrida durante as últimas duas décadas. A distinção entre a economia real e a economia financeira cai quando se analisa o processo de acumulação capitalista desde os anos 1980. Assistimos por anos a um processo para aumentar a diferença entre o lucro (excedente) e a estagnação do investimento em capital fixo e capital variável, ou seja, máquinas e mão-de-obra. Esta bifurcação entre os lucros e o investimento é explicada do ponto de vista das novas modalidades de produção de valor, uma produção que está cada vez mais fora dos portões da fábrica, que está cada vez mais na esfera da distribuição e do consumo. A tendência é transformar o consumidor em produtor, para envolver a produção direta de bens de consumo. Fala-se em "crowdsourcing", ou seja, captação de valor, de conhecimento, de cooperação e força inventiva através da "linguagem de máquina" (por exemplo, a Internet) que não requer investimento em capital fixo, mas em estratégias de “vampirização” do valor disperso na sociedade. Os ganhos monetários, em relação a isso, podem ser alcançados de duas maneiras: através do desempenho financeiro das elites ou por meio de dívida privada das famílias.
IHU On-Line - Por que o modo de produção fordista tornou-se insuficiente para a acumulação do capital? Quais são os elementos que caracterizam a crise do fordismo como sistema de acumulação de lucros?
Christian Marazzi – Durante os anos 1970, o modelo fordista se revelou insuficiente, porque não tinha mais condições para sugar excedentes, o que gerou um crescimento do tipo inflacionário sempre em atraso ao aumento dos salários. Mas o modelo fordista também entrou em crise do ponto de vista político e cultural: a luta interior e contra o fordismo deslegitimou o trabalho de massa, a grande fábrica fordista, a separação entre trabalho e conhecimento. Naqueles anos, o Financial Times falou da necessidade de “aproveitar a revolução”, ou seja, sair da crise do fordismo produzido pelas lutas dos trabalhadores e estudantes para redefinir a trajetória econômico-organizacional do novo capitalismo pós-fordista.
IHU On-Line - Que características assumem a mais-valia no processo produtivo na nova fase do capitalismo?
Christian Marazzi – A mais-valia, hoje, é fruto de um processo produtivo que se estende da fábrica à sociedade, o que torna a sociedade uma grande fábrica de produção de valor. É um pouco como o processo de extração de valor feita ao longo dos séculos pelo trabalho doméstico-reprodutivo das mulheres. Hoje é a cooperação, a troca de saberes e conhecimentos, as competências adquiridas no âmbito do não-trabalho que são recursos estratégicos para o desenvolvimento do capital. Falamos em imaterialização, ou de “cognitivização” do trabalho, e isso pressupõe uma organização do processo de produção que extraia mais-valia "a partir" da sociedade. A estratégia empresarial consiste, de fato, na externalização de segmentos inteiros da produção.
IHU On-Line - O senhor afirma que estamos diante do biocapitalismo. Como se dá a exploração do trabalho nesse novo capitalismo, e quais são as possibilidades emancipatórias que ele carrega consigo?
Christian Marazzi – O biocapitalismo vê a transposição das típicas funções das máquinas do capital fixo para o corpo dos trabalhadores. O corpo vivo se torna abrigo de instrumentos estratégicos para a produção de valor. O organismo torna-se uma máquina, mas é um corpo que vive e, portanto, cria valor através da dor, do cansaço e da solidão. Mas o mesmo corpo vivo que produz valor na sociedade, na relação intersubjetiva e na comunicação, é um corpo que pensa consigo mesmo, e que precisa do outro para se autodefinir. Relativamente a este plano “intra-subjetivo”, inscrito no tecido das relações sociais, desempenha-se a construção das lutas dentro e contra o biocapitalismo.
Leia mais...
>> Christian Marazzi já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line.
* Política do comum: uma fonte direta de valor econômico. Publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU, em 23-03-2009;
* A vida no centro do crescimento econômico. Publicada na revista IHU On-Line número 301, de 20-07-2009.