Edição 326 | 26 Abril 2010

A pedofilia e as sombras da lei

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Márcia Junges

Uma pessoa que não controla sua vida está a mercê de impulsos e tem sua afetividade e sexualidade adulta embotadas. Assim é o pedófilo, analisa o psicanalista Sócrates Nolasco. Ele se acha intocável e vive nas sombras da lei, além de depender de crianças para se satisfazer sexualmente

A pedofilia é a necessidade de preencher um vazio interior. “Alguma coisa dentro do agressor morreu, e a violência e a pedofilia são expressões disto”, atesta o psicanalista Sócrates Nolasco na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Ele continua: “O pedófilo procura na criança um alimento emocional através do veio sexual. Na pedofilia, há uma inversão de papéis, pois aquele que cuida, reivindica sexualmente o cuidado por parte da criança abusada”. Tais adultos ficam “subformados emocional e sexualmente” porque dependem de uma criança para ter prazer. De acordo com Nolasco, “a pedofilia é um conflito da ordem da negação de excitações que constituem o sujeito. Os homens são os que mais fazem isto a eles mesmos, pois, assim, creem que serão homens”. O psicanalista explica que há dois aspectos recorrentes nas situações que configuram a pedofilia: “Um deles é que o adulto envolvido tem algum poder sobre a criança, podendo ser exercido tanto pela sedução quanto pela coerção sobre ela. O outro se refere à abordagem ambígua deste adulto em relação à criança - ele deixa margem para que a criança fique confusa no que tange a abordagem sexual feita por ele”. E arremata: “A pedofilia é a marca do empobrecimento e da miséria interior. Ela atesta o declínio de um sujeito que está preso a dimensões de sua vida que desconhece e não sabe como gerenciar”.

Nolasco é graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pela PUC-Rio, respectivamente. Sua tese intitulou-se De Tarzan a Homer Simpson: banalização e violência masculina em sociedades contemporâneas ocidentais (Rio de Janeiro: Rocco, 2001). Escreveu, também, A desconstrução do masculino (Rio de Janeiro: Rocco, 1995) e O mito da masculinidade (2ª. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993). Leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação (A violência tem sexo), o senhor disse que a violência não está restrita a uma etnia ou classe social, mas tem sexo – o masculino. É essa a razão que faz a pedofilia ser praticada, geralmente, com e por homens? Por quê?

Sócrates Nolasco - Há uma relação entre masculinidade e violência, todavia, onde a ancoraríamos para pensarmos a pedofilia? Quais seriam os pontos de interseção entre elas? Pedofilia é uma questão que está na ordem do sujeito ou do grupo social?

Para analisarmos esta questão, poderíamos seguir alguns caminhos. Alguns deles não respondem as perguntas, mas tentam justificar porque ela ocorre. Existem os que pensam que a pedofilia é um desdobramento da homossexualidade, considerando esta última uma patologia. Isto não é verdade, pois há pedófilos homens que assediam e mantêm relações sexuais com meninas.

A pedofilia tem dois aspectos recorrentes, presentes em toda situação que a configura. Um deles é que o adulto envolvido tem algum poder sobre a criança, podendo ser exercido tanto pela sedução quanto pela coerção sobre ela. O outro se refere à abordagem ambígua deste adulto em relação à criança - ele deixa margem para que a criança fique confusa no que tange a abordagem sexual feita por ele. Crianças que se sentem abandonadas e sozinhas são mais fáceis de serem assediadas do que aquelas que se sabem cuidadas e amadas. A certeza de que são amadas as protege de adultos ambíguos e abusadores.

Vazio interior

A lei pode ser um eixo em torno do qual masculinidade, violência e pedofilia se articulam. Não a lei em si, mas sua função para o sujeito. Uma de suas funções é a de estabelecer uma forma para nossos impulsos, sem o que ficamos sem saber, o que são, e o que reivindicam. A masculinidade é um nome que serve para nomear distintos impulsos, mapeando-os e oferecendo uma possibilidade de sentido para eles. Por outro lado, a violência e a pedofilia apontam para uma situação recorrente na experiência humana, na qual a palavra não dá conta da excitação que a reivindica. Toda vez que um impulso encontra uma palavra que o represente, ele consegue se satisfazer no objeto encontrado.

Todavia, quando isto não acontece, a lei como causa exterior entra em cena para contê-lo. Na falta da palavra adequada, resta a lei para conter o impulso. Contudo, se o sujeito que se vê diante desta tarefa é refém de sua própria experiência subjetiva, sucumbe ao ato de descarga do impulso. A violência e a pedofilia são expressões disto, e quem as pratica o faz para preencher uma necessidade de vazio interior. Alguma coisa dentro do agressor morreu, e a violência e a pedofilia são expressões disto.

IHU On-Line - A pedofilia é uma das maiores expressões da violência masculina? Por quê?

Sócrates Nolasco - A pedofilia é expressão de uma dimensão da experiência humana, que nos coloca diante de um conjunto de excitações que foram negadas, negligenciadas ou que o sujeito tentou eliminar de si mesmo. Esta atitude de violência do sujeito para consigo mesmo resulta na expressão da violência contra uma criança. A pedofilia remete a estados regressivos onde a diferenciação entre afeto e necessidade não se fez. Ela se refere à negação das faltas que constituem o sujeito. São carências de afeto que não foram atendidas e que tornam o pedófilo alguém imaturo sexual e afetivamente. Ele é alguém que precisa de uma prerrogativa para ter prazer, e, por isso, toma a criança como objeto de desejo, como se ela fosse uma extensão de seu mundo. O pedófilo procura na criança um alimento emocional através do veio sexual. Na pedofilia, há uma inversão de papéis, pois aquele que cuida reivindica sexualmente o cuidado por parte de criança abusada.

A vida se manifesta por excitações. A fome, o frio e a dor são exemplos disto. Todavia, para um bebê que experimenta cada uma delas, sem ter recursos para nomeá-las, bem como para satisfazê-las por si mesmo, é inicialmente uma experiência de angústia. Portanto, o que irá reduzir a sensação de angústia será não só a satisfação da necessidade, mas a certeza de ter alguém que cuida, nomeia o que acontece com ele, um continente.

Pedofilia e ataque à lei

Este alguém a quem o bebê se vincula não dará apenas nomes ao que acontece com ele, mas o fará se sentir reconhecido a partir de suas experiências de satisfação. Nesta experiência de reconhecimento e afeto, a lei se firma como marco de desejo. Se a palavra é ineficaz, a vivência amorosa o fará suportar não saber sobre si mesmo.

Aquele que nega em si o que o excita, constitui-se como um outro na clandestinidade. A criança tomada como objeto de desejo é traída em sua inocência, como muitos homens que, ao negarem suas necessidades mais primitivas sob o risco de perderem a masculinidade, também se traem. Para eles, a violência está em recusar ou tentar suprimir determinadas excitações, porque elas são inadequadas à ideia de masculinidade. A consequência disto é que eles ficam subformados emocional e sexualmente, dependendo de uma criança para ter prazer. Por este motivo, as excitações que o pedófilo tentou suprimir retornam sob a forma de ataque à lei. A pedofilia é um conflito da ordem da negação de excitações que constituem o sujeito. Os homens são os que mais fazem isto a eles mesmos, pois, assim, creem que serão homens.

IHU On-Line - Psicanaliticamente, como podemos compreender a pedofilia? É uma perversão, uma doença? Quais são os motivos que levam alguém a se tornar pedófilo?

Sócrates Nolasco – A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a pedofilia como um desvio sexual, que pode ser praticado, também, por jovens de 15 ou 16 anos com púberes, cinco anos mais jovem que eles. Não há, na obra de Freud, uma referencia à pedofilia. Se há um conflito psíquico que promova esta situação, esse não se encontra localizado entre ego ou superego, ou ainda entre o ego e a realidade, mas entre o ego e a lei. A lei proíbe que um adulto mantenha relações sexuais com uma criança, porque ele não consegue frear o que desconhece em si, fazendo parar, por ele mesmo, seus impulsos. Por meio da lei e da palavra, sabemos sobre nossa natureza.

A palavra fome dá um alento às excitações que reivindicam satisfação, a ausência da mesma provoca desconforto. O destino humano é povoar de nomes os silêncios existentes dentro de cada um, pois foram criados quando tentaram fazer desaparecer algumas excitações. A palavra tem como propriedade conduzir as excitações à satisfação. Todavia, por vezes são ineficazes. A lei se firma neste momento.

Falamos por não darmos conta de nossas excitações, que, em parte, se satisfazem com as palavras. Falando, conseguimos dar sentido a elas, é o que aprendemos dentro de nossas primeiras relações. As relações são lugares onde palavra e lei são apresentadas. Quando um bebê é cuidado, suas excitações cedem, submetendo-se aos parâmetros de quem cuida. Este tipo de vínculo amoroso, realizado por uma mãe suficientemente boa, confere autonomia ao sujeito, para que ele possa conhecer a si mesmo a partir de suas excitações.

Incesto e pedofilia

A mitologia grega apresenta Laio, pai de Édipo, como sendo o primeiro pederasta. Após sofrer perseguições políticas, Laio é acolhido por Pélopes, pai do belíssimo e púbere Crísipo.  Pélopes confere a Laio a tutoria de Crisipo por quem ele se apaixona. Laio rompe com Crisipo e este se mata. Desolado, Pélopes amaldiçoa Laio, dizendo: terás um filho que casará com tua esposa e te matará. O incesto precede a pedofilia que o modela. Há uma relação entre incesto e pedofilia. Se observarmos como se constituíram os vínculos entre o (a) pedófilo e seus pais, teremos alguns indicadores de como a situação se configurou, mesmo porque o incesto é praticado tanto por pai quanto por mãe (ou pessoas da confiança da criança). Nela, sexo e afeto se confundem, fazendo com que o sujeito não consiga distinguir suas necessidades afetivas, usando o sexo para atendê-las. O sexo com uma criança afasta do agressor suas inseguranças de rejeição. O pedófilo se vê diante de suas excitações como uma criança suja, que precisa de outra para se satisfazer e castigar.

IHU On-Line - Dentro da história da sexualidade, quando a pedofilia passou a ser uma prática condenável?

Sócrates Nolasco - Encontramos relatos de pedofilia desde a Grécia. Eles também existiam no Império romano, onde crianças eram usadas para satisfação sexual de adultos. Isto também pode ser observado no Islamismo. Em alguns países, esta situação durou até começo do século XX, como podemos identificar na Argélia.

IHU On-Line - A partir da perspectiva histórica, como analisa a pedofilia em relação à sacralização da infância?

Sócrates Nolasco - Na História da Sexualidade, Foucault  parte da constatação de que aprendemos a ver a sexualidade como a crônica da repressão crescente, diz. Ele fala sobre a histerização do corpo da mulher, que é analisado como corpo saturado de sexualidade, integrado no campo médico, posto em comunicação com o corpo social, com o espaço familiar e com a vida dos filhos. Depois, a pedagogização do sexo da criança: afirmação de que todas as crianças se entregam a uma atividade sexual indevida, ao mesmo tempo natural e contrária à natureza, cuja responsabilidade deve ser assumida pelas famílias, por educadores, psicólogos e médicos. Por sua vez, a psiquiatrização do prazer perverso, através das quais se analisou as formas de anomalias sexuais e procurou-se produzir tecnologias de correção.

Até a Renascença, encontramos relatos de abandono, negligência e maus tratos dados às crianças. A mortalidade infantil nesta época era bastante elevada. No século XV, era comum encontrar narrativas de morte de crianças por sufocação impetrada por um adulto. O abandono chegou a tal ponto que se iniciou a construção de asilos para crianças.

Já no século XIX, um duplo movimento perpassa as relações entre pais e filhos. Por um lado, há um investimento crescente no filho de forma extremamente coercitiva. A ele não se devia fazer carinhos nem dirigir palavras ternas. As crianças eram acoitadas, como estratégia de educação. A partir de 1850, quando uma criança morria, tomava-se o luto como se fazia com um adulto. Daí em diante, a infância é vista como um momento privilegiado da vida. É assim que a infância se torna fundadora da vida, e a criança vira uma pessoa.

Invenção da infância e pedofilia

No século XX, as menções feitas ao incesto e à pedofilia são para desaconselhá-los. Todavia, uma tendência à permissividade e à liberação de possibilidades sexuais aumentou a partir dos anos 1960. É o que encontramos em revistas como Union, que recomendavam a troca de parceiros, mas reforçava que um pai deveria dizer não à sua filha, se ela continuasse a provocá-lo constantemente. Nos anos 1980, um dos textos desta revista, dirigido a um pai, dizia: desaconselhamos vivamente a masturbar uma menina de doze anos ou a praticar nela caricias orais ou qualquer outra forma de aproximação sexual. É absolutamente proibido por lei, e, portanto, extremamente perigoso (você corre o risco de ser preso, com interrogatório policial e tudo mais).   

A pedofilia existia muito antes da infância ser inventada, mas a ambiguidade das sociedades quanto ao tratamento dado às crianças se manteve concomitante com a presença da pedofilia. As dúvidas sobre a infância nos fazem pensar sobre aquelas que temos sobre nossas próprias excitações. Desqualificamos as crianças do mesmo modo que fazemos com o que primitivamente nos constitui.

A violência contra crianças, infelizmente, ainda é mais aceita que a pedofilia. Enquanto que a pedofilia é condenada, os maus tratos crescem em proporções dramáticas. Atualmente, a pedofilia que atinge o filho ou filha do outro não atinge os demais. Isto é expressão da violência e da solidão que vive o sujeito nos dias de hoje, a mesma vivida pela criança quando se deixa seduzir pelo pedófilo.

IHU On-Line - É possível relacionar o declínio da autoridade paterna, ou mesmo o delírio de autonomia do sujeito, a uma violência que se expressa neste tipo de sexualidade, de um pai autoritário que abusa de seus filhos, por exemplo?

Sócrates Nolasco - A pedofilia é a marca do empobrecimento e da miséria interior. Ela atesta o declínio de um sujeito que está preso a dimensões de sua vida que desconhece e não sabe como gerenciar. A experiência emocional exige contato consigo mesmo e determinação para saber que tipo de sujeito se deseja ser na vida.

O pedófilo não tem sua vida nas mãos, vive a mercê de impulsos, sem os quais não se sente vivo. É alguém embotado diante da afetividade e sexualidade adulta. Acha-se intocável, e, por isso, está nas sombras da lei. Esta forma de prazer poderia estar associada ao declínio da autoridade paterna se não a encontrássemos em diferentes momentos da história.

A pedofilia se produz numa inversão na qual o adulto sai do seu lugar para ser atendido em suas demandas por uma criança. Ele se sente impotente diante da própria vida, e, por isso, busca uma criança que possa manipular, afrontar ou ameaçar, ter algum tipo de poder. Assim como no caso do incesto, a pedofilia tem seus codependentes, pessoas próximas que consentem silenciosamente com a atitude do abusador. Onde há pedófilos, há uma rede social que os mantém. Eles não sobrevivem por eles mesmos.

Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Sócrates Nolasco à IHU On-Line.

* A violência tem sexo. IHU On-Line número 150, de 08-08-2005;

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