Edição 325 | 19 Abril 2010

A retomada do comunitarismo na vida social

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patrícia Fachin

Para Ivo Poletto, movimentos sociais são expressão da vida democrática. Se a democracia é de “fachada”, maior a dificuldade de ação, assegura

“Os movimentos sociais partilham da crise que perpassa toda a sociedade brasileira, inclusive os intelectuais e parte do funcionalismo público: a crise em relação ao sentido da democracia”, aponta o cientista social Ivo Poletto, à IHU On-Line. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, ele reflete sobre a trajetória dos movimentos sociais e a atuação deles diante da atual conjuntura. A novidade, segundo Poletto, “é a emergência da consciência e de objetivos ecológicos nos movimentos recentes”. Os desafios postos pelas mudanças climáticas, acredita, podem significar a retomada do ideário comunitário, o qual, para Poletto, “continua válido e necessário”. “A consciência que levará a revalorizar a comunidade de vida será nova. Ela deverá estar assentada sobre a necessidade de recriar as relações com a Terra, assumindo que os humanos são parte dela e que só podem Bem Viver se ela estiver viva e for fonte permanente de vida”, frisa.

Ivo Poletto é filósofo, teólogo, educador popular e assessor de pastorais e movimentos sociais. Trabalhou durante os dois primeiros anos do governo Lula como assessor do Programa Fome Zero e foi o primeiro secretário-executivo da Comissão Pastoral da Terra - CPT. É autor de, entre outros, Brasil, oportunidades perdidas – Meus dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Os movimentos sociais estão em crise ou não? Que fatores indicam isso? Como o senhor descreve o atual momento dos movimentos sociais?

Ivo Poletto - É difícil dar uma resposta a estas perguntas. Em primeiro lugar, porque um dos fatores que estariam na raiz de sua crise, segundo alguns estudiosos, a saber: a eleição e o governo Lula, deve ser bem analisado para não cometer injustiças com os movimentos sociais. Na sua origem, a eleição de Lula foi uma vitória histórica dos movimentos sociais; não se pode negar que foram eles, e talvez mais do que o próprio PT, que tornaram possível este acontecimento que renova a história política brasileira. Sem sua mobilização social e seu estímulo à desobediência popular ao “maior partido conservador”, a grande mídia, teria a maioria da população superado sua tendência conservadora e votado num “brasileiro qualquer” – pobre, nordestino, operário, quase analfabeto, que vem das esquerdas, que não sabe falar corretamente, que não tem experiência de governo, e tantas outras desqualificações – para o cargo de Presidente da República?

Lula e os movimentos sociais

Sou do parecer que a eleição de Lula foi fruto da decisão livre da cidadania, mobilizada politicamente, em boa medida, pelos movimentos sociais urbanos e rurais, incluindo aqui também a ação das pastorais sociais. Tanto que, em minha compreensão dos fatos, não era necessária a “Carta ao Povo Brasileiro” para vencer as eleições; ela foi importante para derrubar barreiras no meio empresarial e para o que o “núcleo duro” transformou o governo Lula: um governo de mediação entre as classes e setores sociais, servindo mais, muito mais, às classes economicamente dominantes para evitar conflitos; um governo que assenta a governabilidade na aliança por cima, nas instituições estatais, esquecendo ou preferindo não governar com a maioria da cidadania que o elegera para realizar mudanças profundas na sociedade brasileira, novamente para evitar conflitos.

Diante de um governo que se torna a alavanca para o grande capital “nacional”, firmar-se internacionalmente em ser o principal agente e beneficiário do neodesenvolvimentismo, e que, ao mesmo tempo, implementa políticas sociais muito melhores do que os governos anteriores – sem mudanças estruturais, e talvez para evitá-las, pois causariam conflitos -, como devem agir os movimentos sociais?

Crítica dos movimentos sociais

Esse é o “caldo político” em que vivem e atuam os movimentos sociais. Não é estranho, então, que quase todos eles sejam radicalmente críticos em relação aos grandes projetos do PAC, mas, ao mesmo tempo, sejam críticos em relação às políticas e projetos sociais, sem, contudo, deixar de reconhecer que trazem novidades e podem ser pontos de partida para avanços na conquista de direitos e na formulação e controle de políticas públicas de maior alcance e qualidade.

Por isso tudo, a crise dos movimentos sociais tem a seguinte base: eles não têm força sociopolítica suficiente para serem ouvidos com seriedade quando criticam os grandes projetos e quando propõem alternativas para um desenvolvimento que não seja mero “crescimento econômico”, e sim um verdadeiro desenvolvimento social e humano, com respeito e convivência com o meio ambiente; e não têm força sociopolítica suficiente, igualmente, para exigir que os compromissos assumidos em relação às políticas sociais sejam transformados em práticas, e não abandonados para atender às pressões dos minoritários grupos dominantes.

IHU On-Line - Quais são as maiores dificuldades que os movimentos sociais encontram hoje?

Ivo Poletto - Vejo que os movimentos sociais partilham da crise que perpassa toda a sociedade brasileira, inclusive os intelectuais e parte do funcionalismo público: a crise em relação ao sentido da democracia. Afinal, o governo, uma vez eleito, pode fazer o que quer? A soberania popular pode ou deve controlar os mandatos concedidos? Como? Pode um Congresso Nacional reservar para si o poder de decidir sobre convocação de plebiscitos? A quem cabe decidir sobre projetos que interferem gravemente na vida de povos indígenas e outras comunidades? : a) a grupos técnicos contratados? b) ao governo, mesmo contra a vontade da população atingida? c) ao parecer ou pressão dos grupos econômicos? d) ao poder soberano do povo da região atingida? e) ou ao poder soberano popular nacional, para decidir se realmente a obra é necessária para garantir energia ou se há alternativas menos agressivas ao ambiente da vida?

Como se pode perceber, movimentos sociais são expressão da vida democrática; se a democracia praticada é mais ou menos de fachada, maior ou menor sua dificuldade de ação.

IHU On-Line - Qual é, em sua opinião, o movimento social mais ativo no país? De que maneira ele consegue se destacar na sociedade?

Ivo Poletto - É necessária uma ponderação inicial: para que não se faça uma avaliação injusta, é preciso verificar, entre outros fatores, a relação entre o movimento e sua base social; ver quanto tempo de existência cada movimento tem; verificar a existência ou não de ambiente favorável à ação sociopolítica que cada movimento mobiliza.

Tomemos dois, três exemplos: o MST, o Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis e a ASA – Articulação do Semi-Árido (que mesmo não sendo estruturalmente um movimento social, já conta com mais de 1 milhão e trezentas mil pessoas mobilizadas em favor convivência com o Semi-Árido).

O MST existe desde 1984, e nasceu de muitas iniciativas pré-existentes, mobilizando os Sem-Terra em favor de uma causa que tem longa história; conta com muitos militantes, e assim mesmo vale a pena verificar quanto consegue mobilizar dos milhões que são sua base social. Já o Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis tem uma história recente, constituiu-se a partir de relativamente poucas iniciativas anteriores, só a duras penas vai conseguindo romper os preconceitos com que são vistos os moradores de rua; assim mesmo, tem uma razoável relação de representatividade da sua base social.

Com isso, relativiza-se a maior ou menor importância de cada movimento. Pode-se dizer que os catadores/as conseguiram relativamente mais do que os sem-terra, se a avaliação levar em conta os objetivos e as conquistas alcançadas. Da mesma forma, o movimento pela convivência com o Semi-Árido pode ter alcançado mais do que os catadores e sem-terra. Isso não retira mérito, contudo, das avaliações de que, em termos de capacidade de mobilização política, de iniciativas de pressão, de construção de espaços com iniciativas alternativas, o movimento mais expressivo seja o MST – sabendo que a luta pela terra conta também com a força da diversidade de movimentos de luta pela terra existente no Brasil, bem como de sua capacidade de estabelecer alianças.

IHU On-Line - O senhor identifica novos movimentos sociais nos dias de hoje? Quais as características e motivações deles?

Ivo Poletto - Mesmo com a existência e os méritos do MAB – Movimento dos Atingido pelas Barragens, estão nascendo, nos últimos meses, movimentos como o “Xingu Vivo” e o “Tapajós Vivo”, apenas para citar dois exemplos. E com enorme capacidade de mobilização. Contra a hidrelétrica Belo Monte, no Xingu, além e até por causa de ampla aliança entre povos indígenas, camponeses e povo da cidade, juntando igrejas, sindicatos e até associações comerciais, está conquistando amplo apoio internacional, ao ponto de contar com a adesão de J. Cameron, diretor do filme de sucesso “Avatar”, o que pode ser sinal de uma ampla solidariedade e pressão internacional. Assim mesmo, cederá o teimoso consórcio entre grandes empresas e governo federal? Povos indígenas já avisaram: “não deixaremos as máquinas começarem a obra”. O governo tentará evitar este conflito, que nasce a partir da reação popular, como faz quando é anunciado pelo agronegócio e por outras grandes empresas? Ou envolverá o Exército na obra, como já fez no contestado projeto de Transposição do São Francisco? 

Novidade dos movimentos sociais

O que se percebe de novo, talvez, é a emergência da consciência e de objetivos ecológicos nos movimentos recentes. Além disso, como nascem de desafios muito concretos, as forças sociopolíticas mobilizadas são diversificadas; menos com viés de “classe”, se desejarmos.

Outra novidade: enfrentando-se com um governo que não criminalizou – mas pouco fez para que não fossem duramente criminalizados – os movimentos sociais, esses movimentos recentes se ressentem de estar combatendo um governo que ajudaram a eleger, e sofrem diante da dureza com que não são ouvidos, ou com a quase inutilidade dos espaços de diálogo; são movimentos que enfrentam ameaças a direitos humanos e da Terra por causa de políticas de desenvolvimento que privilegiam interesses de grandes empresas, seja na implementação da obra como no destino final do produto.

Vale destacar outra novidade: o aprendizado de organização e atuação em rede. Esta é uma prática muito desafiadora, pois mexe com a tradição centralista e diretiva que ainda marca muitas lideranças. Trata-se de aprender a agir com a democracia como um valor, e não como um instrumento, uma tática.

IHU On-Line - Em sua opinião, ao longo de sua trajetória, os movimentos sociais conseguiram construir, ou não, uma institucionalidade pública?

Ivo Poletto - Mais uma vez, a necessidade de matizar a resposta: não resta dúvida que houve avanços na linha de uma nova institucionalização – e, para isso, bastariam ter presente as conquistas das iniciativas e movimentos ligados à superação da miséria e da fome, que hoje já contam até com uma Lei de Segurança Alimentar e Nutricional; e ter presente os avanços do movimento da Economia Solidária, alimentado por um número crescente de iniciativas e redes, que já luta por uma Lei que reconheça e regule a especificidade deste tipo de economia.

Ao mesmo tempo, porém, é necessário ter presente as contradições e limites das instâncias públicas de participação e controle de políticas públicas, os múltiplos Conselhos. Com raras exceções, ainda é muito forte a marca estatal desses Conselhos, e isso favorece sua fragilização em favor das instâncias diretas de governo, e atrapalha os avanços que poderiam ser conquistados pelos movimentos sociais.

IHU On-Line - Muitos movimentos sociais brasileiros se fortaleceram no contexto da Teologia da Libertação dos anos 80. O refluxo da Igreja progressista afetou os movimentos sociais?

Ivo Poletto - É claro que afetou. Mas, talvez, não tanto como aparece em algumas análises. É incrível como se tem facilidade de dizer que “a Igreja abandonou os movimentos sociais”. Nada acontece desta forma na história real; os efeitos do refluxo se deram de forma diversificada, e isso dependeu de múltiplos e diferentes fatores.

Não sendo possível fazer uma análise mais factual e completa – que exigiria, além disso, muito mais pesquisa sociológica -, refiro apenas dois exemplos de como nem tudo tem sido negatividade. A Igreja como instituição estava em franco refluxo nos anos 90 do século passado e no início do século XXI, também no Brasil. Assim mesmo, as pastorais sociais, com relativa autonomia, organizaram as Semanas Sociais Brasileiras, e delas nasceram iniciativas sociais muito significativas. Por exemplo, da 2ª Semana Social nasceu a Campanha da Fraternidade sobre Exclusão Social, e desta nasceu o Grito dos Excluídos; da 3ª Semana renasceu o enfrentamento político da Divida Pública, externa e interna, e foi para organizar o primeiro plebiscito popular, e sobre a dívida externa, que surgiu a Rede Jubileu, que, depois, firmou-se na América, na África e Ásia como Rede Jubileu Sul; foi a Rede Jubileu que articulou e organizou o Plebiscito sobre a ALCA e Alcântara, bem como, mais tarde, o Plebiscito sobre a Vale do Rio Doce; da 4ª Semana Social, com sua temática de Articulação da Forças Sociais – Mutirão por um Novo Brasil, nasceu, mas ainda está em processo de consolidação, a Assembleia Popular, uma articulação de forças sociais em torno da elaboração e conquista do Brasil que queremos.

Em outras palavras, é claro que, para ser fiel a Jesus de Nazaré, a Igreja deveria ser mais profética, mais comprometida com os pobres em suas lutas por libertação; da mesma forma, a reflexão teológica deveria ter mais continuidade da Teologia da Libertação, que é um caminho latino-americano de reflexão sobre a fidelidade ao seguimento de Jesus. Mas não se pode dizer que a teologia da libertação deixou de existir e que a Igreja, especialmente a progressista – se é que essa classificação se sustenta sociologicamente -, tenham pura e simplesmente deixado de estar presentes e de gerar, junto com setores excluídos, novos caminhos de libertação. Houve refluxo, mas houve também continuidade, de modo especial através do compromisso e da teimosa fidelidade de cristãos e cristãs das comunidades, muitas vezes, sem apoio ou até combatidos por membros do clero.

IHU On-Line - Como o senhor vê hoje as Pastorais Sociais? Encontram-se em crise ou ainda desempenham um papel importante junto à sociedade?

Ivo Poletto - Já destaquei alguns sinais de que continuam contribuindo com o amplo movimento popular de libertação. Ainda, recentemente, elas estão dando uma nova contribuição: colocando a temática desafiadora das mudanças climáticas, provocadas pelo aquecimento global, como “prioridade transversal”, isto é, fazendo que todas as ações promovidas tenham presente a dimensão ecológica, definindo em quê e como podem contribuir para enfrentar esta nova e desafiadora problemática. E já conseguiram que o tema da Campanha da Fraternidade de 2011 seja “A Vida no Planeta”, com o seguinte lema: “a Terra sofre em dores de parto”.

Isso não significa que elas não vivam crises, tanto organizativas como de missão. Seria estranho que passassem imunes pela crise civilizacional vivida pela humanidade. Mas, pelo que conheço, há um cuidado e um esforço permanente para possibilitar uma reflexão crítica que ajude a enfrentar as dificuldades que surgem e para redefinir, com fidelidade e criatividade, sua missão na realidade atual.

IHU On-Line - O ideário comunitário que deu origem à Comissão Pastoral da Terra e que, por sua vez, motivou a formação de diversos movimentos sociais no país, ainda é suficiente e se sustenta nos dias de hoje?

Ivo Poletto - É bom ter presente que, na origem da CPT, esteve o ideário comunitário, sim, mas também fez parte de sua origem o conflito pela terra, que atingia particularmente os posseiros, e a ação repressiva da ditadura sobre qualquer trabalho de educação popular, e particularmente sobre a pastoral popular que crescia em diferentes regiões do país. Por isso, é bom ter cuidado quando se faz alguma comparação com aquela situação e a de hoje.

Dito isso, quero introduzir um ponto que está apenas em fase de brotação nas pastorais sociais e nos movimentos populares. É o seguinte: muito provavelmente, uma das características das saídas para o desafio das mudanças climáticas, originadas no aquecimento provocado pela ação humana para manter o tipo de produção e de consumo com crescimento sem fim que foi se tornando regra geral, será a retomada da vida comunitária, a ser organizada em cada território. Não será a comunidade de outros tempos, é claro, mesmo se contará com a riqueza das experiências dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais, que preservaram por milênios e séculos valores assentados na vida comunitária. A consciência que levará a revalorizar a comunidade de vida será nova. Ela deverá estar assentada sobre a necessidade de recriar as relações com a Terra, assumindo que os humanos são parte dela e que só podem Bem Viver se ela estiver viva e for fonte permanente de vida; e sobre a necessidade de recriar a prática econômica e de intercâmbio de bens e serviços, reduzindo ao máximo o consumo de tudo que provoca aquecimento pela contaminação da atmosfera. Em outras palavras, a busca da comunidade será a via para superar a civilização do consumismo, criando novas formas de sermos humanos.

Nessa perspectiva, pode estar no bom caminho a quase prioridade dada por algumas CPTs regionais às comunidades tradicionais, seus valores e seu questionamento do direito estatal, centrado na defesa da propriedade privada e do livre mercado. A luta pela terra também não se esgota na conquista pura e simples da redistribuição da terra; ela deverá ser caminho para repensar o cultivo da terra, o tipo de produção e de comercialização, que será tanto mais possível quanto mais cooperativo for o trabalho e mais comunitária a convivência.

Com outros sentidos, respondendo a outros desafios, o ideário comunitário continua válido e necessário. Creio até que a CPT precisará avançar nesta consciência, de tal forma que seja fermento de novas práticas e profecia do sentido da comunidade para a construção da nova civilização, indispensável para que a Terra recupere seu equilíbrio e continue a acolher a humanidade nela.

IHU On-Line - Na sua avaliação, qual é o principal avanço e o principal retrocesso deixado pelo governo Lula nesses 8 anos de mandato sob a perspectiva do movimento social?

Ivo Poletto - Em boa medida, já elenquei alguns elementos de resposta na primeira pergunta. Mas vale avançar um pouco mais. O principal avanço está no fato de que ninguém mais poderá dizer que uma ou um brasileiro simples não pode ser presidente da República. Todos podem ser presidente; podem, então, assumir outras responsabilidades públicas. A guerra dos grandes meios de comunicação contra isso não será vitoriosa; pelo contrário, pode até ir minando sua credibilidade, pois vai revelando seu caráter antipopular, antidemocrático, elitista.

O principal retrocesso é relacionado com o avanço: está no fato de Lula e seu governo não terem possibilitado todo o amadurecimento da consciência e da prática democrática que se tornaram possíveis com sua eleição. São referidas muitas desculpas, muitas indicações de impossibilidade, muitas justificações para o “realismo” da política do possível. Podem ter elementos de realidade, mas não consigo convencer-me que não foram criadas condições para maiores avanços na prática governamental verdadeiramente democrática. Povos vizinhos, como a Bolívia e o Equador, são prova de que é possível, desde que isso seja vontade do governante eleito e do seu grupo de governo; isto é, desde que o governante “governe obedecendo” seu povo, evitando deixar-se enredar pelas elites que construíram o Estado e ainda o controlam a serviço de seus interesses, só deixando ao povo os restos do banquete. As condições políticas para isso eram muito mais positivas no Brasil do que no Equador, por exemplo; contudo, lá, Rafael Correa abriu caminhos de refundação do Estado com sua aliança com a cidadania, enquanto aqui, a opção foi conservadora: aliar-se aos de sempre e, com isso, terminando por governar sem ter conflitos com eles, limitando imensamente os passos de renovação da sociedade brasileira.

IHU On-Line - Que futuro vislumbra para os movimentos sociais depois das eleições? A relação entre movimento social e Estado tende a mudar?

Ivo Poletto - Há uma frase, repetida nos espaços da Assembleia Popular, que também vive suas crises, que me parece indicar o melhor rumo a ser seguido pelos movimentos sociais: “em outubro, nosso candidato é o projeto popular”. Isso significa que não se deverá repetir o equívoco anterior, a saber: apostar todas as fichas em eleições, num partido, num candidato. A prática ensinou que, se não crescer a capacidade sociopolítica dos movimentos sociais, pode-se perder a disputa pela orientação política do governo eleito.

Então, o caminho a ser seguido, e que pode ser permanente e autonomamente definido, é o reforço dos movimentos sociais, aprofundando seu enraizamento em sua base social; capacitando com consciência crítica mais lideranças; avançando na capacidade de trabalhar em rede; articulando-se para ser expressão democratizante do poder popular; democratizando as relações no interior dos movimentos, redes e articulações, para democratizar o Estado através da mobilização política da sociedade brasileira.

É claro que a opção concreta de voto passa pelo confronto entre cada candidato, e seu programa de governo (se tiver), com o projeto popular, verificando quem pode contribuir com avanços e quem apostaria em menos democracia em todas as dimensões da vida e da convivência social e ambiental. Por outro lado, a partir das eleições, desde o primeiro momento, o compromisso é com o projeto popular, e não com o governante; ele deverá ser chamado a obedecer ao seu povo, e não a substituí-lo ou impor a sua vontade.

Leia mais...

>> Poletto já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira na nossa página eletrônica (www.ihu.unisinos.br).

• O novo está no fato de reconhecer a Terra como um ser vivo. Entrevista publicada em 2-2-2009;

• As contradições da transposição do Rio São Francisco e a palavra forte e profética de D. Cappio. Entrevista publicada em 22-1-2008;

• Amazônia e seu povo. Propostas e práticas de convivência com este bioma. Entrevista publicada em 1-4-2007.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição