Edição 324 | 12 Abril 2010

Abraão e a encarnação do Verbo

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Graziela Wolfart e Patrícia Fachin

Para Maria Carpi, a liturgia da palavra na Missa dos cristãos deve ser interpretada considerando o Antigo e Novo Testamento.

Através de uma intuição poética, a poetisa Maria Carpi interpreta a encarnação do verbo a partir de Abraão. Para ela, o olhar poético se “difere dos demais olhares principalmente porque a poesia opera pela transposição de sentido, abrindo clareiras (...). É um texto de compartilhar o assombro e a possibilidade do encontro”. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, Maria Carpi enfatiza que a dimensão sagrada da palavra se evidencia pela ética do convívio. “A palavra ‘Deus' muitas vezes foi vilipendiada por não sabermos conviver, por nos eximirmos da mútua responsabilidade. Ou por pretendermos o monopólio de Deus que esquece o Pai Nosso. A história da humanidade é uma grande narrativa. Como o patriarca Abraão, a palavra exige de nós a encarnação do verbo no rosto do irmão, página por página.”

Maria Carpi estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 15-4-2010, onde proferirá a conferência Abraão e a encarnação do Verbo. Uma abordagem teopoética. O evento ocorre às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU.

Advogada, magistrada estatal, Maria Carpi nasceu em Guaporé, no Rio Grande do Sul, e, atualmente, reside em Porto Alegre. Entre suas obras, citamos Abraão e a Encarnação do Verbo (Porto Alegre: Age Editora, 2009); A migalha e a fome (São Paulo: Vozes, 2000); Os cantares da semente (Porto Alegre: Movimento, 1996).

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Em que consiste sua intuição poética de Abraão? Por que escolheu a questão da Encarnação do Verbo a partir de Abraão?

Maria Carpi - Não foi uma escolha, mas uma intuição poética. Na escolha há uma razão lógica, um raciocínio de decisão. A intuição nos apanha de improviso. É uma visão. No entanto, pressupõe todo um caminho de preparação para esse advento, um amadurecer para a claridade da intuição. No meu caso, as várias leituras do texto bíblico desde menina e das diversas interpretações de outros autores do paradoxo instaurado no relato: o mesmo Jeová que prometera a Abraão uma descendência maior que as estrelas do céu lhe pede o sacrifício de Isaac, o filho da velhice. E a poesia também, como a intuição, é algo que alerta, que te põe de sobreaviso. Temos de lembrar que três rios emergem dessa fonte da fé: o islamismo, o cristianismo e o judaísmo. 

IHU On-Line – Por que usou a linguagem poética para analisar Abraão? Em que medida esta leitura difere de outros olhares como o teológico e o filosófico, apenas para citar alguns?

Maria Carpi - A intuição poética só podia ser traduzida pela linguagem igualmente poética. Creio que difere dos demais olhares principalmente porque a poesia opera pela transposição de sentido, abrindo clareiras. Não é um texto apologético. É um texto de compartilhar o assombro e a possibilidade do encontro. Disse bem o pacificador João XXIII : devemos esquecer os ódios e buscar o que nos une. A poesia é a busca desse liame humano e desse vínculo de fraternidade cósmica.

IHU On-Line – O que mais interessante a senhora destaca no percurso que fez do antigo e novo testamento?  Que elementos descobriu nessas leituras? Em que medida a leitura dos textos lhe ajudaram a criar uma visão poética de Abraão?

Maria Carpi - Como já disse, a visão poética de Abraão - que mais vê do que pensa - que o vê caminhando até o Monte Moriá, veio-me após várias leituras. Não há dicotomia entre o Antigo e o Novo Testamento. Eu não os separo. É assim que deve ser interpretada a liturgia da palavra na Missa dos cristãos. A primeira leitura e a recitação de salmos são textos do Antigo Testamento. Eles preparam a meditação do Evangelho e o repartir do pão. É impressionante a identidade dos textos de Isaias sobre o Servo Sofredor e a Paixão do Messias. E o relato de Abraão reivindica a Jeová a encarnação do verbo. Eu o tomo como fio condutor da interpretação de outros trechos bíblicos até a vinda de Jesus, o mais fiel dos israelitas. Por isso, no livro que escrevi, afirmo: sou filha de Abraão e da Encarnação do Verbo.

IHU On-Line – A senhora diz que a linguagem de Jesus é poética. Que aproximação percebe entre o ato poético e o ato litúrgico?

Maria Carpi - Uma vez perguntaram a Jesus por que ele falava em parábolas. Pois ele respondeu: “porque vocês vendo, não vêem, e ouvindo, não ouvem”. Parábola é a forma narrativa que usa a metáfora como inovação de sentido. Parte de fatos da vida cotidiana para algo que antes era opaco e sem luz. Ela abre novas interpretações. Começamos a perceber o que não víamos e a ouvir o que estava mudo. É como se a realidade estalasse a sua verdadeira fisionomia. Há realmente uma aproximação entre o ato litúrgico e o ato poético: ambos buscam o sagrado não só na palavra de celebração, mas principalmente no rosto humano.

IHU On-Line – Qual a importância da dimensão simbólica para reunir Deus e poesia em sua obra?

Maria Carpi - A mesma importância da metáfora viva, a que abre uma visão de mundo. O símbolo não substitui algo, o que seria uma idolatria. O símbolo tem a economia do sinal. Ele não fica em si mesmo, ele remete, abre caminho ao que se busca. Acredito que o repartir do pão, mais do que qualquer metáfora, fazem a reunião de Deus e a poesia.

IHU On-Line – O que caracteriza a dimensão sagrada da palavra?

Maria Carpi - A dimensão sagrada da palavra mais se evidencia pela ética do convívio. A palavra “Deus” muitas vezes foi vilipendiada por não sabermos conviver, por nos eximirmos da mútua responsabilidade ou por pretendermos o monopólio de Deus que esquece o Pai Nosso. A história da humanidade é uma grande narrativa. Como o patriarca Abraão, a palavra exige de nós a encarnação do verbo no rosto do irmão, página por página.

IHU On-Line – Que olhar a senhora coloca sobre as mulheres na Bíblia? Que tipo de poética feminina elas inspiram?

Maria Carpi - Não considero a poética por gênero: masculina ou feminina. A poesia não revela a mão de quem escreve quando abre janelas para novas possibilidades de viver. Em meu livro, dedico uma reflexão sobre as mulheres que mais me impressionaram no texto bíblico. Há momentos de grande impacto quando a mulher entra no texto. Elas são marcantes mesmo quando é um pequeno gesto, como o pano de Verônica a enxugar o rosto daquele que carregava a cruz. Não há quem não interrompa a leitura para ali se demorar.

IHU On-Line – Qual o valor e a postura da linguagem poética no mundo?

Maria Carpi - O de responsabilidade. Onde as demais linguagens silenciam, a linguagem poética fala. E quando fala, convida a partilharmos os bens da vida. Onde as demais linguagens litigam ou se embaralham como na Torre de Babel, a linguagem poética harmoniza. Onde as demais linguagens persuadem ou dissimulam, ela apenas bate à porta e espera que a abramos.

Leia mais...

>> Maria Carpi já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira na nossa página eletrônica (www.ihu.unisinos.br).

Fui poeta desde o ventre de minha mãe”. Publicada em 23-12-2006.

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