Edição 324 | 12 Abril 2010

As sociedades indígenas e a economia do dom: o caso dos guarani

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Márcia Junges

Eurocentrismo marca a concepção de que as sociedades indígenas eram “pobres de tudo”, irracionais inclusive em suas práticas econômicas, pontua a historiadora Maria Cristina Bohn Martins

“Nem sempre dispomos das informações suficientes para melhor ajuizar elementos importantes da cultura das sociedades autóctones da América, que foram conquistadas-colonizadas pelos europeus desde finais do século XV”, reflete a historiadora Maria Cristina Bohn Martins. De acordo com ela, “muito do que foi registrado está marcado pelo selo do eurocentrismo, que cedo definiu serem as sociedades indígenas “pobres de tudo”, privadas de racionalidade, inclusive em suas práticas econômicas”. Essas ideias fazem parte da entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. A pesquisadora apresenta, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU, em 22-04-2010, o tema As sociedades indígenas e a economia do dom: o caso dos guarani, como pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. Para saber mais sobre a palestra de Maria Cristina clique aqui.

Professora do curso de Pós-Graduação em História da Unisinos, Maria Cristina é vice-presidente da Associação nacional de História Núcleo Regional, Seção RÃS (ANPUHRS). Escreveu Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai (séculos XVII e XVIII) (Passo Fundo: Editora da UPF; ANPUH - RS, 2006) e é uma das organizadoras de Histórias coloniais em áreas de fronteiras. Índios, jesuítas e colonos (São Leopoldo; Cuiabá: Oikos, Ed. da Unisinos, Ed. da UFMT, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se apresenta a economia do dom nas sociedades indígenas?

Maria Cristina Bohn Martins - Uma primeira observação necessária a ser feita sobre isto é que nem sempre dispomos das informações suficientes para melhor ajuizar elementos importantes da cultura das sociedades autóctones da América, que foram conquistadas-colonizadas pelos europeus desde finais do século XV. Lembremos, por exemplo, que os sacerdotes que foram os responsáveis pela elaboração de boa parte das fontes com as quais contam os historiadores, interessavam-se especialmente por temas ligados às práticas e concepções religiosas destas sociedades, e nem sempre se ocuparam em registrar elementos da vida econômica e material. Além disto, muito do que foi registrado está marcado pelo selo do eurocentrismo, que cedo definiu serem as sociedades indígenas “pobres de tudo”, privadas de racionalidade, inclusive em suas práticas econômicas. Aliás, esta “incivilidade”, a alegada “insuficiência” das culturas autóctones foi, não raras vezes, apontada como justificativa da colonização. Além de fragmentárias, descontínuas, ou incompletas, portanto, as informações que possuímos precisam ser avaliadas sob uma perspectiva que as “descolonialize”.

Sabemos, contudo, que algumas sociedades, especialmente as mesoamericanas, desenvolveram complexas redes comerciais, existindo, em suas cidades, grandes e movimentados mercados. Segundo as informações dos membros da expedição de Hernán Cortés , a qual resultou na derrota dos astecas frente a uma coalizão de reinos que se juntaram aos espanhóis, circulavam pelo mercado de Tlatelolco, na capital mexicana, milhares de compradores e vendedores, e um fantástico rol de produtos eram ali comercializados: grãos, flores, tecidos, peles, plumas, sal, peles, pedras e mesmo escravos, entre outras coisas. Outras sociedades, entretanto, desenvolveram formas econômicas impensáveis para a lógica européia, em que bens e serviços circulavam através de mecanismos que não o mercado, criando o que Temple e Melià  (2004) qualificam como um quid-pro-quo histórico. Isto é, uma incompreensão relativamente a uma economia em que a produção e a circulação envolviam estratégias peculiares de prestação e contraprestação de obrigações, de bens com valores de uso ou simbólicos.

IHU On-Line - Quais são os fundamentos dessa economia exercida pelos guaranis? Como
ela se relaciona com as ideias de Marcel Mauss?

Maria Cristina Bohn Martins - Marcel Mauss, estudando os fluxos de objetos - mas também de nomes, de rituais etc. - em sociedades da Polinésia, Melanésia e do Nordeste dos Estados Unidos, definiu, em seu Essai sur le don (1923-24), aquilo que chamou de economia da dádiva. Por sua vez, Marshal Sahlins , em sua obra A Economia da Idade da Pedra (1972), usou a expressão “reciprocidade” para se referir ao que observava entre as sociedades arcaicas. O norte-americano apresentava aí três formas de reciprocidade: a generalizada, a equilibrada e a negativa, seguindo um esquema concêntrico em que a “casa” ("household group") ocupa o ponto mais central da sociedade, lugar onde temos a “reciprocidade generalizada”. Depois, ao nível da linhagem, da aldeia ou mesmo da tribo, podemos observar práticas de “reciprocidade equilibrada”. Finalmente, para além deste âmbito, chegamos ao conceito de “reciprocidade negativa”, espaço da guerra e da vingança. A leitura dos registros feitos sobre a sociedade guarani por conquistadores, missionários e administradores do império colonial espanhol permite encontrar, nas práticas econômicas destes “agricultores da floresta”, elementos que se aproximam do que foi estudado por Mauss e Sahlins, por exemplo. A partir desta documentação (bem como de sua experiência de campo com os guaranis), Bartomeu Meliá tem estudado aquilo que chamou de “jopói”, isto é, uma economia que é guiada pelo esforço para produção-reprodução do dom. O termo guarani “jopói”,  ele  buscou  nos trabalhos linguísticos do jesuíta Antônio Ruiz de Montoya , missionário do século XVII que  “dicionarizou” a língua guarani, e significa “mãos abertas reciprocamente”.

IHU On-Line - Qual é a peculiaridade dessa economia no caso dos guaranis? Qual é a
sua contextualização histórica?

Maria Cristina Bohn Martins - Não tomando o termo “peculiaridade” exatamente na acepção de algo exclusivo da sociedade guarani, creio que é importante insistir na necessidade de refletirmos sobre os distintos modos pelos quais os bens (materiais e simbólicos) são produzidos, consumidos e reproduzidos em culturas diferentes. Isto significa, muitas vezes, renunciar a esquemas classificatórios e hierarquizantes que mais contribuem para velar do que para facilitar a compreensão daquilo a que se propõe. É assim que pode nos surpreender que os guaranis, descritos em várias circunstâncias pelo critério da “falta” (gente sem leis, sem governo, sem ‘polícia’, entre outros) se apresentassem aos primeiros contactadores europeus como produtores de uma “divina abundância”. Foi desta forma que Ulrico Schmidl, aventureiro a serviço da monarquia espanhola no Prata no século XVI,  traduziu a incrível quantidade de alimentos que as aldeias indígenas podiam oferecer aos aventureiros famintos que passavam por suas terras, buscando as sonhadas riquezas da “Serra da Prata”.

Después  (…) vinimos a una nación que se llama Carios  (…). Ahí Dios el Todopoderoso nos dio su gracia divina que entre los susodichos Carios o Guaraníes hallamos trigo turco o maíz y mandiotín, batatas, mandioca-poropí, mandioca-pepirá, maní, bocaja y otros alimentos más, también pescado y carne, venados, puercos del monte, avestruces, ovejas indias, conejos, gallinas y gansos y otras salvajinas las que no puedo describir todas en esta vez. También hay en divina abundancia la miel de la cual se hace el vino; tienen también muchísimo algodón.. (…) Cuanto más lejos se marcha hacia adentro del país, tanto más fértil es. Durante todo el año halláis sobre las rozas estos granos y raíces como yo lo he informado.

Logo depois, seria a vez do governador Domingo Martinez de Irala  referir-se ao  fato de que, entre os guaranis, havia “tanta abundancia de mantenimientos, que no solo hay para la gente que allí reside, mas para más de otros tres mil hombres encima” . Estas opiniões contrastam com as repetidas queixas dos colonos europeus sobre a “pobreza de la tierra”, assinalando uma questão importante para a nossa reflexão.

IHU On-Line - Pode-se falar em conexões entre a economia do dom, a reciprocidade e
a justiça social? Por quê?

Maria Cristina Bohn Martins - Embora o estudo deste tema tenha já subsidiado análises muito ricas, e em conexão com a questão que me fazes - como aquela de Melià e Temple , por exemplo -, creio ser importante lembrar o equívoco envolvido em traduzirmos os termos “troca”, “oferta” e “presente”, utilizados na análise destas formas econômicas, a partir dos seus correspondentes no Ocidente. Isto implicaria em, finalmente, insistir no erro de traduzir o mundo de acordo com o léxico europeu.  Realmente, as ofertas, os presentes e as visitas não são desinteressadas, mas sim aquilo que possibilita uma relação, um pacto em que uns e outros se colocam ‘em dívida’. Nem sempre (ou muitas vezes) elas não estão pautadas na generosidade, e sim no interesse e no cálculo, uma vez que fazem da reciprocidade uma obrigação em nome da reputação, do prestígio e honra dos envolvidos. De outra parte, temos que referir a chamada “reciprocidade negativa”, lembrando que a guerra e a vingança foram elementos definidos do que poderíamos chamar de ‘guaranis históricos’. De acordo com práticas documentadas em várias oportunidades, os cativos colhidos por meio da guerra eram vitimados sacrificialmente num ‘banquete antropofágico’. Este banquete motiva uma rede de convites, que também se constituem em laço e obrigação.

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