Edição 323 | 29 Março 2010

A reinvenção da vida, para além da vingança e do perdão

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Márcia Junges

Sentimentos reativos como vingança e perdão precisam ser superados, reinventando a vida, afirma o filósofo Rodrigo Dantas. A vingança é uma manifestação de impotência, e seu “espírito” é niilista por essência.

Uma manifestação de impotência. Assim o filósofo Rodrigo Dantas define a vingança na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, com exclusividade. Ele alerta para a diferença da vingança em relação à rebeldia e indignação. A vingança é sua forma degradada, negativa e destrutiva, adverte. “A rebeldia e a indignação podem levar à ação que transforma a existência. A vingança leva apenas à negação e à destruição. Em nossa sociedade, a forma mais concentrada e caricatural da vingança é o terrorismo”. O espírito de vingança, niilista em sua essência, significa a negação da negação, convertendo tudo em ressentimento, impotência e vingança. Dantas frisa, também, a importância de se manter a memória em nossos tempos. Segundo ele, há uma “operação reacionária em curso”. Seu objetivo é apagar a memória: “uma vez rompida qualquer conexão entre o sujeito e sua história, trata-se agora de liquidar a própria história. A memória não pode permanecer como memória encerrada sobre si mesma: para não sucumbir à sua impotência, é preciso que ela se converta em interpretação, em interpretação da história de que somos o resultado”. A conversão de memória em ressentimento e vingança só se concretiza quando prevalece o sentimento de impotência, analisa. Superando a vingança e o perdão, “sentimentos reativos dos quais nada podemos esperar, seria preciso reinventar a vida”.

Rodrigo de Souza Dantas Mendonça Pinto é graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Sua tese foi intitulada Para uma Análise Crítica do Presente - Mercantilização e Tecnificação da Vida: a Formação Histórica de uma Situação-Limite. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília - UnB, Dantas escreveu inúmeros capítulos de livros e artigos para publicações científicas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Podemos dizer que há uma exacerbação do mal e também da vingança em nosso mundo atualmente? Por quê?

Rodrigo Dantas - Vivemos num mundo fundado em relações de força, poder, dominação, exploração e opressão, em que uma concentração cada vez maior de riqueza e poder impõe a disseminação cada vez mais ampla da pobreza, do desemprego e da miséria. Neste mundo, a apologia da competição e da competitividade como paradigma determinante das relações sociais consagra um “ethos” cada vez mais propício à guerra de todos contra todos como forma naturalizada da sociabilidade humana. A exaltação “espetacularizada” da violência só pode ser o mais popular dos produtos da indústria cultural em nossos tempos porque vivemos numa sociedade fundada na violência. 
 
IHU On-Line - Até que ponto a vingança faz parte da essência do ser humano, e até que ponto ela é uma exacerbação da decadência e do ressentimento?

Rodrigo Dantas - A vingança é uma manifestação de impotência. Tomemos um exemplo: a explosão espetacular das torres gêmeas em Nova Iorque, em setembro de 2001, uma violenta manifestação terrorista de vingança. O que o terrorismo expressa, como manifestação concentrada da vingança em estado puro? Neste caso, a desesperada impotência dos árabes diante da ocupação militar que os EUA mantêm na maioria dos países do Oriente Médio há décadas. Num mundo em que produzimos e reproduzimos, compulsoriamente, as condições de nossa própria autodestruição, todos nos sentimos impotentes diante do curso insustentável e incontrolável do “desenvolvimento”.  Enquanto não formos capazes de tomarmos, em nossas mãos, as rédeas da história, o sentimento de impotência tende a gerar a irresponsabilidade generalizada perante tudo o que não diga respeito diretamente a nossos interesses individuais. O nome disso é barbárie.

IHU On-Line - A partir disso, poderíamos dizer que a vingança se contrapõe ao conceito de vida em Nietzsche ?

Rodrigo Dantas - A vida para Nietzsche é, antes de tudo, manifestação transbordante da potência inerente ao ato de existir; a vingança e o ressentimento são as manifestações mais concretas da impotência – e neste sentido, a forma suprema do desespero e a mais contundente negação da própria vida.  

IHU On-Line - O que é exatamente o espírito de vingança ao qual esse filósofo se refere? Como esse espírito se apresenta em nossa sociedade?

Rodrigo Dantas - O que Nietzsche chama espírito de vingança é a manifestação concentrada do sentimento de impotência, ressentimento e desespero que tantas vezes se apodera daqueles a quem a própria vida é negada. A vingança é muito distinta da rebeldia e da indignação: ela é a sua forma degradada, negativa e destrutiva. A rebeldia e a indignação podem levar à ação que transforma a existência. A vingança leva apenas à negação e à destruição. Em nossa sociedade, a forma mais concentrada e caricatural da vingança é o terrorismo. Qual o resultado do terrorismo? A exacerbação da própria violência contra o qual o terrorismo pretende se voltar e a formação de um círculo vicioso que, caso não seja rompido, pode levar a humanidade à autodestruição.     

IHU On-Line - Em que medida o espírito de vingança cria ou fortalece uma concepção niilista de vida, de negação, de ressentimento, de não poder esquecer e afirmar o que aconteceu?

Rodrigo Dantas - O espírito de vingança é niilista por natureza: ele representa a negação da negação, que se converte em ressentimento, impotência e vingança. O problema aqui não está em esquecer ou afirmar o que aconteceu, o que não passaria de uma reiteração resignada, conformista e autoalienada da violência predominante: a questão central é como responder positivamente à violência sistematizada e institucionalizada, que representa a negação real da vida para a maioria dos seres humanos, com uma ação que faça da rebeldia e da indignação o ponto de partida afirmativo para a construção de uma sociedade em que o direito à vida plena para todos se torne o objetivo central da humanidade.    

IHU On-Line - Como é possível manter a memória sem fazer com que ela se converta em revanchismo, vingança ou mesmo ressentimento?

Rodrigo Dantas - A memória só se converte em ressentimento e vingança ali onde o sentimento de impotência prevalece. Em nossos tempos, há uma operação reacionária em curso que visa o “apagamento” da memória: uma vez rompida qualquer conexão entre o sujeito e sua história, trata-se agora de liquidar a própria história. A memória não pode permanecer como memória encerrada sobre si mesma: para não sucumbir à sua impotência, é preciso que ela se converta em interpretação, em interpretação da história de que somos o resultado. Mas esta interpretação também não pode permanecer encerrada sobre si própria: é preciso que ela esteja conectada a um projeto e uma atividade histórica cujo objetivo compartilhado e consciente seja criar as condições para que os sujeitos possam gerir, de forma socialmente automediada, as condições de sua própria existência.  

IHU On-Line - Filosoficamente, qual é a fundamentação que explica o fato dos seres humanos se comprazerem em fazer o mal, em se vingar e ver sofrer?

Rodrigo Dantas - Os seres humanos não podem ser metafisicamente reduzidos a nenhuma essência que lhes preceda ou que possa ser afirmada unilateralmente como a “natureza humana”. O prazer em fazer o mal, em subjugar, em oprimir, em violentar, só pode prevalecer e prosperar impunemente enquanto vivermos numa sociedade fundada em relações de força, poder, dominação e exploração. Há hoje uma consciência cada vez mais generalizada dos direitos universais dos seres humanos, mas esta consciência ainda não foi capaz de se traduzir na realidade concreta. O grande desafio histórico que nos é colocado poderia ser resumido assim: como traduzir esta forma da consciência numa sociedade que já não seja dominada por relações de força, poder, dominação, exploração e opressão? Como construir uma sociedade para além do domínio despótico do capital sobre a vida, em que o ser humano possa se tornar um fim para si mesmo?

IHU On-Line - Nesse contexto, qual é o sentido de se falar em perdão? E como é possível perdoar sem recair num agir negativamente piedoso, que gera culpa, má consciência e dependência?

Rodrigo Dantas - O perdão pode ser uma manifestação conformista de resignação e impotência, e neste sentido dele nada podemos esperar. Ele sempre foi uma alternativa para a vingança, mas ambos permanecem no mesmo campo, como manifestações opostas da mesma impotência.     

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Rodrigo Dantas - Para além da vingança e do perdão, sentimentos reativos dos quais nada podemos esperar, seria preciso reinventar a vida, de modo que a sociedade, para além do domínio histórico do capital, possa reorganizar-se para colocar o imenso desenvolvimento das forças produtivas a serviço da satisfação das necessidades humanas e da criação de um mundo em que o tempo livre disponível para todos seria a medida de todo valor e de toda riqueza e o objetivo central do processo de produção social da vida.

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