Edição 323 | 29 Março 2010

Doze perguntas sobre o inferno

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Márcia Junges e Mario Corso

O psicanalista Alfredo Jerusalinsky aponta a impossibilidade de uma reconciliação nacional no caso da ditadura argentina. A única forma de aplacar a vontade de vingança é fazer desaparecer os vestígios do “sistema de poder que causou e legitimou os crimes”, reflete.

“Nem Deus consegue perdoar o Diabo”, responde o psicanalista argentino Alfredo Jerusalinsky quando questionado sobre as relações entre o Mal, a vingança e a memória no caso da ditadura da Argentina. Para ele, “o único modo de apagar o desejo de vingança é que desapareça por completo qualquer vestígio do sistema de poder que causou e legitimou esses crimes, que o povo que foi cúmplice castigue e repudie definitivamente seus autores, e não mais os mantenha sob uma auréola de heróis injustiçados, acaçapados na espera de uma brecha para ocupar novamente algum lugar na história”. O mínimo que devemos é manter viva a memória de quem sucumbiu sob a bota da ditadura. Vivendo no Brasil em busca de ares de liberdade, e ao vivenciar a perseguição e morte de inúmeros intelectuais, seus companheiros, ele desabafa: “Quando passo por um café de Buenos Aires, vejo meus amigos que não estão sentados aí. Quando me convidam a dar uma aula na Universidade de Buenos Aires, de repente, encontro-me com um sobrevivente ou com um exilado que retornou, nos abraçamos, olhamos em volta e vemos que os jovens estão esperando que comecemos a dar nossa aula. Começamos a falar para os jovens, e, sem que eles o saibam, também falamos para essa geração (a nossa) ausente e congelada no meio da sala como um puro fantasma”. Em seu ponto de vista, só se pode falar em um “esfriamento”, e não em uma reconciliação nacional: “O que ocorre é que as pessoas que passaram por isso, e sobreviveram, inevitavelmente morrerão. E, sem dúvida, os sentimentos dos mortos são bem mais frios que os dos vivos”. Na entrevista concedida com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail, Jerusalinsky debate, também, a profusão de filmes que retratam os horrores das ditaduras e do Holocausto. “Os filmes, como os livros, podem mostrar a realidade sem realizá-la”.

Jerusalinsky é psicanalista, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo - USP. Mora no Brasil desde 1977. Além disso, é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Association Lacaniènne Internationale. De sua vasta bibliografia, destacamos La formación del psicoanalista (Buenos Aires: Editora Nueva Visión, 1989), Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998), Para entender al niño, claves psicoanalíticas (Quito: Ediciones ABYA-YALA, 2003) e Quem fala na língua?: sobre as psicopatologias da fala (Bahia: Ágalma, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Do ponto de vista da psicanálise, de que forma podemos compreender o lado oculto do ser humano, o mal que é contido a duras penas e que floresce em ocasiões como o Holocausto e nas ditaduras sangrentas da América Latina, por exemplo?

Alfredo Jerusalinsky - A civilização nasce por um pacto de não agressão entre os irmãos que assassinaram o pai da horda primitiva, estabelecendo regras para a circulação das fêmeas. Se, a partir desse ato, a vigília da fratria passou a ser um pouco mais tranquila, doravante os sonhos daqueles homens primitivos ficaram bem mais agitados: o pai morto, ora transformado num agressor intangível, retornava naqueles desde as sombras imaginárias. Homenagens, rituais, sacrifícios, autoflagelações, cerimônias e oferendas foram inventadas para apaziguar sua fúria e acalmar suas vinganças. Em todas as religiões, os deuses, em algum momento, sofrem uma ofensa, e os homens, causadores dela, tornam-se culpados e merecedores de castigo e constrangimento. Perdas, privações e sofrimentos representam o poder desses deuses assim como suas dádivas e premiações. Capazes de impor as dores mais atrozes e os prazeres mais almejados, é, no mínimo, curioso o quanto os deuses das mais diversas culturas possuem as mesmas paixões que caracterizam os humanos. Por isso, sempre ficou tão fácil estabelecer representantes dos deuses na Terra, e justificar os atos desses representantes como intermediários das vontades de Deus. O Estado nasce como representante desse Grande Outro, Pai onírico pleno de autoridade porque lhe devemos a vida. Não a nossa, mas a dele (leve-se em conta que qualquer Estado se considera no direito de exigir de seus cidadãos que defendam sua existência ainda ao custo de suas vidas). Esta estrutura inconsciente de características paranóicas que define o modo do laço social civilizado facilita, naqueles que acedem a posições de poder, o desdobramento de delírios messiânicos e a obediência cega de seus comandados. A posição messiânica torna o sujeito em questão representante da única versão possível do bem. Portanto, para ele, toda e qualquer diferença que seja meramente enunciada constitui um mal radical que deve ser extirpado. Tal a posição do Führer Adolf Hitler  na Alemanha, e do Presidente General Rafael Videla  na Argentina, ou de Pinochet  no Chile.

IHU On-Line - Por que o ser humano faz o Mal, se é capaz de fazer o bem?

Alfredo Jerusalinsky - Sua pergunta supõe que saibamos o que é o Bem para o outro quando, em verdade, talvez sejamos apenas capazes de intuir o que poderia ser o Mal para ele. Quando um sujeito não se faz responsável das consequências que seus atos têm para seus semelhantes, está abandonando o terreno da ética. Quando abandona esse terreno, ele se transforma num “analfabeto radical”. Não se trata de não saber ler os grafismos de uma escrita, mas de não saber ler as diferentes significações das letras que marcam os corpos e as vidas de cada um. O totalitarismo lê as ideias, os sentimentos e as histórias de cada um como se fossem todos iguais ou, se assim não fossem, devessem sê-lo. Os tiranos, em verdade, não leem, eles repetem sempre o mesmo texto, fingindo que estão lendo. Essa é a forma mais radical, extensa e profunda de fazer o Mal.

IHU On-Line - Como é possível lidar com a memória sem que essa se converta em vingança ou revanchismo?

Alfredo Jerusalinsky – Quando, no século XIX, a Rainha Vitória  de Inglaterra dobrou o valor pago pela colheita aos latifundiários da Irlanda, provocou três consequências: a primeira foi a aliança da aristocracia irlandesa com os interesses da coroa sobre as Ilhas Britânicas, a segunda foi a morte por fome de mais de dois milhões de irlandeses porque todos os alimentos foram vendidos à Inglaterra devido às vantagens nos preços, e a terceira foi o nascimento do IRA (o Exército Revolucionário Irlandês). Será que a Rainha Vitória pensou que estava apenas fazendo um bom negócio? Quando o povo alemão viu desaparecer de suas cidades três milhões de judeus, suas lojas devastadas, suas casas saqueadas, seu dinheiro confiscado, seu alimento sucateado, arriados como gado pelas ruas, discriminados com a marca visível que os identificava como uma classe sem direitos, aqueles que até meia hora atrás eram seus vizinhos, o povo alemão pensou que esses, seus vizinhos, estavam partindo para uma viagem de férias? Quando os povos que se enriqueceram com a exploração dos escravos africanos declararam a abolição, deixando a população negra em liberdade de gozar plenamente de seu desemprego, da falta de moradia, da dispersão de suas famílias, de seu analfabetismo longamente cultivado pelos seus patrões, da degradação de sua cultura originária, do apagamento de suas raízes, da condição de cidadãos de segunda classe, esses povos pensaram que estavam fazendo justiça e que tudo se resumia em que prevalecessem os bons sentimentos?

IHU On-Line - Quando a memória implica carregar uma série de lugares vazios a seu lado durante a vida toda, exigir o castigo dos autores desses vazios significa vingança ou revanchismo?

Alfredo Jerusalinsky - O único modo de apagar o desejo de vingança é que desapareça por completo qualquer vestígio do sistema de poder que causou e legitimou esses crimes, que o povo que foi cúmplice castigue e repudie definitivamente seus autores, e não mais os mantenha sob uma auréola de heróis injustiçados, acaçapados na espera de uma brecha para ocupar novamente algum lugar na história.  

IHU On-Line - A vingança é redentora? Por que razão o ser humano se vinga?

Alfredo Jerusalinsky - A meu ver, definir o que é redentor a priori equivale a garantir que seu crime será perdoado. Dito de outro modo, é uma figura cínica. Nem a vingança nem o perdão, portanto, são, a priori, redentores. As razões da vingança são variadas (pagar a dívida com a vítima amada, medir forças com o agressor, devolver o mal para quem o causou etc.), mas, de um modo geral, toda vingança obedece ao desejo de escapar da angústia de impotência que a condição de vítima impõe. Assim são atores da vingança não somente aqueles que ficaram como vítimas reais, mas também os que se identificam com elas.

IHU On-Line - O recente filme Bastardos Inglórios aborda o nazismo por um ângulo ímpar, afinal, trata-se de uma fantasia de vingança, ou pelo menos de uma revanche. Como o senhor acredita que esse filme pode ajudar quem foi vítima da barbárie nazista? Não seria simplesmente estar do outro lado da violência, identificado com os agressores?

Alfredo Jerusalinsky - Os livros nos permitem vivenciar situações que nunca vivemos e que, bem provavelmente, nunca viveremos. Eles nos poupam de cometer certos atos porque nos oferecem o gozo de imaginá-los. Os filmes são uma forma atualizada de volumosos livros belamente ilustrados. É a diferença entre a fantasia e o ato, entre o real e a ficção. Os filmes, como os livros, podem mostrar a realidade sem realizá-la. Por meio da ficção, elaboramos o ódio e o amor que as coisas nos causam, antecipamos as consequências de nossos atos. Bastardos inglórios é um filme, e não uma vingança. Por outro lado, esse filme não propõe uma identificação com o agressor: em nenhuma expressão desse filme se vislumbra qualquer proposta de extermínio em massa do povo alemão.

IHU On-Line - Esse filme faz parte de uma série, afinal são inúmeras produções recentes sobre o nazismo, como, por exemplo, O Menino do Pijama Listado, O Leitor, A Onda, Um Homem Bom. O nazismo não teria se tornado um paradigma do Mal, com isso indo além dos povos envolvidos, e talvez por isso haja tantos filmes, como uma maneira de curar o trauma de uma ferida de todo o Ocidente?

Alfredo Jerusalinsky - Se há algo que a Modernidade não esperava do progresso burguês era precisamente o efeito nazi-fascista da rivalidade capitalista. Poderíamos dizer que o mundo todo se surpreendeu com isso, embora Karl Marx  já o tivesse antecipado de algum modo em O Capital acerca dos efeitos racistas da oposição competitiva entre capitais identificados com as fronteiras nacionais. Desde esse ponto de vista, poderíamos dizer que se fosse situada hoje a Segunda Guerra Mundial, ela seria um anacronismo. A ferida causada pela barbárie nazi-fascista (não devemos esquecer o extermínio da esquerda e da intelectualidade espanhola e italiana) não é somente uma ferida nos sentimentos humanísticos, mas uma profunda ferida na confiança da humanidade nos ideais da modernidade que nos deixa completamente inseguros no que se refere a nosso futuro mais próximo. Todos esses filmes que você menciona têm uma particularidade: mostram-nos que o pior pode se desenvolver bem ao nosso lado, e nós, embora o vejamos, fazemos um tremendo esforço para impostar o papel de cegos.

IHU On-Line - Essa profusão de filmes não reforçaria a identidade de vítima de quem sofreu com o Holocausto ou a guerra?

Alfredo Jerusalinsky - As vítimas das quais estamos falando, ou seja, as que o foram ou ainda o são, de atos de barbárie política, preferem, é claro, que seu calvário não seja esquecido, porque se o fosse, seu sofrimento teria sido em vão: a humanidade não teria aprendido nada com isso. Esse seria seu pior destino. Os filmes que contribuem a lembrar esses calvários mostram para essas vítimas que os sofrimentos e maus tratos que padeceram despertaram maiores desejos de justiça, e isso lhes devolve algo da dignidade que seus carrascos lhes arrancaram. Por outro lado, alguém que estabelece uma identidade de vítima, ou bem vive incessantemente sua tragédia sem conseguir desprender-se dela, ou bem se transforma num farsante queixoso que tenta obter privilégios em função da tragédia que o vitimou. Em qualquer um desses dois casos, trata-se de uma condição psíquica doente.

IHU On-Line - No caso da ditadura na Argentina, como poderíamos relacionar o mal, a vingança e a memória?

Alfredo Jerusalinsky - Nem Deus consegue perdoar o diabo.

IHU On-Line - O senhor faz parte de uma geração que, em seu país, foi mutilada, quando a maior parte da intelectualidade argentina foi suprimida. Pessoalmente, como se sente em relação a essas perdas? E como o país reagiu a esses fatos?

Alfredo Jerusalinsky - Quando passo por um café de Buenos Aires, vejo meus amigos que não estão sentados aí. Quando me convidam a dar uma aula na Universidade de Buenos Aires, de repente, encontro-me com um sobrevivente ou com um exilado que retornou, nos abraçamos, olhamos em volta e vemos que os jovens estão esperando que comecemos a dar nossa aula. Começamos a falar para os jovens, e, sem que eles o saibam, também falamos para essa geração (a nossa) ausente e congelada no meio da sala como um puro fantasma. O país perdeu o ritmo de seu desenvolvimento, o fio de sua produção científica e cultural durante duas décadas, embora a extraordinária coragem e tenacidade da intelectualidade argentina conseguiu manter ocultas e protegidas as bases e fundamentos de sua produção que, ao término da ditadura, soube unir os mais jovens, gestando um verdadeiro renascimento. Isso se percebe na ciência, na literatura, no teatro e no cinema argentino, nas suas expressões mais recentes.

IHU On-Line - Como é possível manter a memória viva de fatos traumáticos como esse sem perpetuar um sofrimento nos que sobreviveram? Nesses casos, o que não deve ser esquecido?

Alfredo Jerusalinsky - Manter viva a memória dos que sucumbiram sob a brutalidade da ditadura é o mínimo que lhes devemos. Não deve ser esquecida a dignidade com que lutaram por um ideal de justiça e liberdade, e tampouco deve ser esquecido quem fez de cada cidadão um inimigo.

IHU On-Line - Acredita que existe perdão, num sentido de reconciliação nacional, ou o que acontece apenas é um esfriamento, um distanciamento dos fatos?

Alfredo Jerusalinsky - É possível se reconciliar com um torturador? Em que consistiria uma reconciliação nacional com aquele que vendeu literalmente a nação, como Carlos Menem,  por exemplo, ou Martínez de Hoz  que destruiu sua economia? Pode se perdoar alguém como o Almirante Massera  – integrante da Junta Militar com Rafael Videla e Agosti  – que transformou a Escuela de Mecánica de La Armada num campo de concentração e tortura, que criou o engenhoso método de soltar prisioneiros vivos sobre o oceano desde aviões e helicópteros e que sequestrou e ordenou sequestrar dezenas de crianças, filhos de prisioneiros, privando-os de suas relações e de suas identidades familiares? Confesso que não consigo imaginar em que consistiria tal perdão, tais reconciliações. Tenho certeza de que compartilho com a imensa maior parte do povo argentino essa dificuldade. Sim, um esfriamento. O que ocorre é que as pessoas que passam por isso, e sobrevivem, inevitavelmente morrerão. E, sem dúvida, os sentimentos dos mortos são bem mais frios que os dos vivos.

IHU On-Line - Quando as pessoas, especialmente os familiares dos mortos e desaparecidos, pedem esclarecimentos, mais informações, movem processos e clamam por justiça, às vezes, isso é interpretado como revanchismo, como uma forma de vingança. Qual é a sua percepção sobre isso?

Alfredo Jerusalinsky - Nunca se viu uma “Madre de Plaza de Mayo”  ou uma “Abuela”, ou ainda qualquer familiar de desaparecido exigir que raptassem ou fizessem desaparecer o filho, neto ou parente de qualquer delinquente das forças policiais, nem tampouco que torturassem um torturador. Isso evidencia que não se trata nem de vingança, nem de revanchismo. Trata-se, sim, da imperiosa necessidade de preencher em parte o cruel vazio que, durante décadas, deixou o familiar desaparecido, com o agravante de que se sabia que alguém sabia onde estava, ou qual tinha sido seu destino. A negativa a fornecer essa informação não protege nenhuma segurança de Estado (que ameaça pode representar uma mãe desesperada ou uma ossada inerte?), mas consiste numa estratégia de terror e esmagamento emocional da população oposta à ditadura por meio de táticas de crueldade psicológica. Que se informe sobre o destino dos cidadãos, que a lei se aplique sobre o delinquente qualquer que seja sua condição ou classe, que os direitos humanos sejam respeitados, é o mínimo que qualquer habitante de um país civilizado não somente pode pedir, mas que deve exigir.

Leia mais...

Alfredo Jerusalinsky já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.

* A impunidade alenta o retorno da barbárie. Entrevista publicada na revista IHU On-Line, número 269, de 18-08-2008;

* “A bússola do sujeito muda seu norte”. Entrevista publicada na revista IHU On-Line, número 220, de 21-05-2007;

* Borat, Babel e A Rainha e suas relações. Entrevista publicada nas Notícias do Dia 09-03-2007.

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