Edição 322 | 22 Março 2010

Estado brasileiro é ativo e criativo

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Patrícia Fachin

Na opinião do economista e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, Marcio Pochmann, o Brasil está diante de um modelo que recupera, a partir do Estado, a ação econômica. Esse processo, reitera, “não está deslocado, pelo menos até o momento, do acompanhamento de recursos ampliados para os raios sociais”

Para o economista Marcio Pochmann, o Brasil está diante da terceira tentativa de reorganização do capitalismo. Essa fase é marcada, segundo ele, “por uma atuação mais ativa e criativa do Estado”, que cria um ciclo de expansão da economia e pode ser observada a partir da constituição de grandes grupos econômicos mistos, formados por empresas estatais e privadas.

Na entrevista a seguir, concedida, com exclusividade, por telefone, para a IHU On-Line, o economista diz que a posição do Estado está relacionada a um fator que surgiu com o predomínio da globalização e a desregulamentação do Estado ao longo dos anos no cenário financeiro: a constituição de grandes corporações transnacionais. Nesse circuito de hipermonopolização do capital, afirma, “os países que não tiverem grandes grupos econômicos e não forem capazes de fazer parte desses 500 grandes grupos mundiais, de certa maneira, estarão de fora, alijados da competição de tal forma que passariam a ter um papel passivo e subordinado ao circuito de decisões”.  E justifica: “É crescente a presença do Estado em qualquer setor econômico com o objetivo de levar a possibilidade de fazer parte desse seleto grupo de corporações transnacionais, que, cada vez mais, são mistas diante de um espaço tão crescente de recursos públicos”. Pochmann mencionou ainda que estamos vivendo uma “fase em que não são mais os países que têm empresas, mas empresas que têm países diante da dimensão das corporações com um faturamento, em grande parte das vezes, superior ao PIB dos países nacionais”. E conclui: “Não há outra alternativa, no meu modo de ver, que não seja a construção desses grupos”. Marcio Pochmann é doutor em Economia, professor do Instituto de Economia da Unicamp e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O capitalismo brasileiro está sendo reorganizado?

Marcio Pochmann – Nós tivemos um desenvolvimento capitalista a partir da revolução de 30, que completou um período até a crise da dívida externa. Entre a crise de 1929 e a da dívida externa, de 1981 a 1983, tivemos um desenvolvimento capitalista com uma forte atuação do Estado no Brasil, o que permitiu ao país passar para a condição de oitava economia do mundo, ao final dos anos 70. A crise da dívida externa e as medidas que o Brasil tomou para enfrentar aquele período fizeram com que a convergência política que conduziu o ciclo de desenvolvimento da década de 80 fosse fragmentada. Então, da crise da dívida para cá, temos três iniciativas de reorganização do capitalismo brasileiro. A primeira tentativa se deu no Plano Cruzado,  quando se tentou constituir, no Brasil, a exemplo da experiência italiana, a construção de holding de todas as empresas estatais, que teria um fundo único com o objetivo de reorganizar o Estado brasileiro. Essa tentativa não teve sucesso, tanto é que o fracasso do Plano Cruzado colocou por terra a proximidade de reorganização do capitalismo brasileiro. 

A segunda tentativa se deu com o Plano Real.  Ele teve sucesso, mas a proposta de mudança do papel do Estado se deu na concepção neoliberal. A visão dessa segunda reformulação do Estado era de que seriam constituídos grandes grupos privados nos principais setores a partir da privatização. Esse ciclo fracassou em razão das diversas crises financeiras que aconteceram em 1994, 1995, como a crise mexicana, depois a asiática, até a crise de 2008, que atingiu os principais países capitalistas desenvolvidos. Esse ciclo não se completou; foi interrompido com a eleição do presidente Lula.

Agora, estamos diante de uma terceira tentativa de reorganização do capitalismo através de uma atuação mais ativa e criativa do próprio Estado. Isso se percebe quando ele toma a decisão de constituir grandes grupos econômicos mistos, que têm a presença do capital privado, recursos do Estado e de fundos de pensão de empresas estatais. Estamos, sim, diante de uma tentativa de reformulação do capitalismo brasileiro, de um ciclo de expansão. E a base dessa reforma é a organização do Estado atuando de forma mais ativa nessas parcerias com o setor privado.

IHU On-Line – O Estado financiador se justifica na conjuntura atual, principalmente depois de uma crise financeira como a de 2008?

Marcio Pochmann – O que estamos observando nessas duas últimas décadas de predomínio da globalização, sobretudo financeira, e de desregulamentação do próprio Estado, é a constituição de grandes corporações transnacionais. Falava-se, antes da crise de 2008, da emergência de pelo menos 500 grandes corporações transnacionais, que dominariam todos os setores da atividade econômica. Nesse circuito de hipermonopolização do capital, os países que não tiverem grandes grupos econômicos e não forem capazes de fazer parte desses 500 grupos, de certa maneira, estarão de fora, alijados da competição de tal forma que passariam a ter um papel passivo e subordinado ao circuito de decisões desses 500 grupos. Então, a opção brasileira é se aproximar da concentração desses gigantes para, de certa maneira, fazer parte desse circuito de poucas, mas grandes empresas.

Lições da crise econômica de 2008

A crise de 2008 mostrou que as grandes corporações privadas são tão grandes que podem quebrar, uma vez que o seu fracasso, enquanto setor econômico, colocaria por terra, inclusive, o próprio sistema econômico. Portanto, é crescente a presença do Estado em qualquer setor econômico com o objetivo de fazer parte desse seleto grupo de corporações transnacionais, que cada vez mais são mistas diante de um espaço tão crescente de recursos públicos. Essa é a lógica do capitalismo, que, de certa maneira, faz com que desmorone a concepção dos Estados nacionais, que têm apenas 300 anos de experiência aproximadamente. Nós estamos avançando numa fase em que não são mais os países que têm empresas, mas empresas que têm países diante da dimensão das corporações com um faturamento, em grande parte das vezes, superior ao PIB dos países nacionais. Então, não há outra alternativa, no meu modo de ver, que não seja a construção desses grupos.

Projeto chinês: um modelo para o Brasil?

Desses 500 grandes grupos, sabe-se que, de acordo com o projeto chinês, a China pretende ter 150 grupos chineses com interveniência em todo o mundo. O Brasil precisa ter um plano nesse sentido. Agora, esse reposicionamento do Estado brasileiro não pode deixar de lado outras dimensões que dizem respeito à natureza de um Estado capitalista, que está relacionado à necessidade crescente de reinvenção do mercado, especialmente no nosso país, onde 98% das empresas são constituídas de micro e pequenos empreendedores, que respondem por dois terços do emprego nacional. Então, é papel do Estado reorganizar esses grupos econômicos para que eles possam competir nessa nova ordem econômica internacional. Particularmente, penso que seria adequado a construção de um ministério apropriado para os pequenos empreendimentos, que vão desde a economia solidária até a economia popular. A criação de um sistema de crédito, de assistência técnica, de orientação e capacitação no comércio interno e externo, até mesmo a construção de um banco público de financiamento para esse setor também são relevantes.

IHU On-Line – Como conciliar outros arranjos econômicos como a economia solidária com a centralização de capitais? Empresas menores conseguirão sobreviver diante da atuação dos gigantes nacionais?

Marcio Pochmann – O capitalismo se mostrou, ao longo do tempo, um modo de produção com capacidade de gerar riqueza. Uma de suas dificuldades, de fato, é a capacidade de distribuir de forma equânime essa riqueza. O Estado, ao se organizar, permite, através do fundo público, o desenvolvimento de consumo positivo, que diz respeito a bens e serviços sociais como educação, saúde, habitação, transporte. Ou seja, tem uma série de atividades econômicas que são passíveis de serem organizadas por intermédio de pequenos empreendimentos, ainda que as grandes corporações sejam os principais elementos que fundamentam a dinâmica capitalista e, sobretudo, o desenvolvimento. As atividades econômicas podem perfeitamente ser expandidas através não só do Estado, mas pela presença de um espaço para a economia popular, especialmente quando estamos falando de um capitalismo cada vez mais assentado no trabalho imaterial. Temos uma parte importante de funções dentro do trabalho imaterial que não é de interesse da lógica privada e abre a possibilidade de um maior circuito de expansão da economia solidária.

IHU On-Line – Quais são os prós e contras da atual política econômica desenvolvimentista para a economia real? Quem esse tipo de modelo fortalece?

Marcio Pochmann – Com a crise de 2008, começam a ficar mais claros, olhando especificamente no âmbito da América Latina e do Caribe, diferentes modelos de enfrentamento e saída da crise. No caso brasileiro, a saída da crise se deu pelo fortalecimento do papel do Estado. Acredito que essa recuperação recolocou a importância do Estado para o desenvolvimento econômico-social. Agora, essa recuperação, de certa maneira, deu-se nos mesmos moldes que nós tínhamos até a década de 70, 80, que era basicamente a intervenção do Estado como impulsor do desenvolvimento de atividades produtivas. Por outro lado, tem um elemento novo que foi acompanhado do reforço de determinadas políticas sociais, especialmente pelo fato de que a Constituição de 88 estruturou o Estado social brasileiro de maneira diferente do que nós tínhamos até então. É difícil, hoje, o Estado ampliar as funções de natureza econômica desconectadas das atenções da área social, o que permitiu, inclusive ao Brasil, oferecer resultados interessantes durante a crise, como a redução da pobreza, que é um fato inédito, considerando a história de longo prazo brasileiro.

Intervenção do Estado

Nós estamos diante da construção de um modelo que recupera, a partir do Estado, a ação econômica através dos bancos públicos, da recuperação dos investimentos em estrutura e energia. Isso não está descolado, pelo menos até o momento, do acompanhamento de recursos ampliados para os raios sociais, como é o caso da previdência, da saúde, da educação. É importante o país produzir e exportar commodities, mas isso, por si só, não parece suficiente para permitir o salto em termos de desenvolvimento, uma vez que é fundamental uma maior ampliação da base de produção de bens com maior valor agregado, com maior conteúdo tecnológico, uma vez que são esses os segmentos que permitem a geração de postos de trabalho de maior qualificação, e que relacionam justamente a elevação de escolaridade com maior remuneração.

IHU On-Line – Isso mostra que o Brasil está se encaminhando para consolidar seu modelo econômico?

Marcio Pochmann - Acredito que o Brasil não consolidou o seu modelo econômico. Tem-se dito, inclusive, que o próprio governo do presidente Lula é um governo de disputa. Há ações, do ponto de vista econômico, às vezes, contraditórias, como o posicionamento do Ministério da Fazenda e, de outro lado, a atuação do Banco Central.

IHU On-Line – A nova política do BNDES de financiar e fortalecer gigantes nacionais traz uma nova perspectiva no sentido de diminuir a concentração de riqueza, ou, pelo contrário, isso tende a aumentar a desigualdade entre as classes?

Marcio Pochmann – Parece-me que a experiência do BNDES no governo Lula é importante e retoma o papel de um banco de desenvolvimento, uma vez que, ao longo dos anos 90, ele se transformou no banco da privatização. O BNDES ampliou o seu orçamento e vem tendo atuação decisiva em termos de reestruturação do capitalismo brasileiro. Acredito que o posicionamento do banco está correto de maneira geral. Agora, junto com o BNDES, seria necessário que o Brasil fizesse uma reforma bancária profunda, porque nós temos cerca de 170 bancos num país de 190 milhões de habitantes. É um contingente de bancos muito reduzido. Países como EUA têm mais de sete mil bancos; a Alemanha tem mais de três mil.

Precisaríamos de um número maior de bancos, especialmente reconhecendo que 500 mil municípios nem agência bancária possuem. É preciso que o crédito tenha um papel ainda mais ampliado, especialmente no setor produtivo. Isso implicaria a constituição de outros bancos: especialmente bancos públicos, como seria o caso de um banco para financiar a agricultura familiar, os pequenos negócios urbanos, as exportações, além da difusão de bancos comunitários junto às pequenas concentrações urbanas que temos no Brasil. Acredito que a forma como o sistema bancário está organizado, ainda que seja melhor da que tínhamos antes, está longe do ideal num país em que o crédito é fundamental para alavancar melhores atividades produtivas e ocupacionais.

IHU On-Line – O Estado deveria atuar de maneira mais firme diante do sistema bancário?

Marcio Pochmann – Sem dúvida. A expectativa desde a transição da ditadura para a democracia, nesses 25 anos, foi uma profunda reforma do Estado brasileiro. O Estado que temos hoje está longe de responder aos anseios e às perspectivas que se tem no século XXI. O Estado se encontra organizado de uma forma anacrônica. Nós temos uma estrutura setorializada, fragmentada, que opera na forma de “caixinhas”, quando, na verdade, precisamos cada vez mais de ações totalizantes, integradas, articuladas. Há experiências recentes como o Bolsa Família que apontam nessa tentativa de convergir ações governamentais. Só que nós não temos feito uma reforma do Estado. Ao mesmo tempo, o fato de estarmos, ainda, sem uma atuação planejada, organizada no médio e longo prazo, faz com que tenhamos grandes desperdícios e resultados insuficientes, não apenas na questão dos bancos, mas praticamente em todos os demais setores da atividade econômica.

IHU On-Line – Como o padrão de consumo reflete na lógica da centralização de capitais?

Marcio Pochmann – O padrão de consumo hoje reflete essa ordem econômica internacional em que 500 corporações dominam qualquer setor da atividade econômica. São essas corporações que impõem com aceitação relativa, sem grande contestação por parte da população em termos de padrão de consumo. Na medida em que a nossa governança mundial fica fragilizada, fala-se cada vez mais não em romper com o padrão de consumo e seus impactos ambientais, mas em programas para minorar os impactos. Nesse sentido, a questão maior do desenvolvimento, colocado nos dias de hoje, é sua reinvenção, partindo do pressuposto de que não é possível a universalização do padrão de produção e consumo nas mesmas bases que existiu desde o século XX. A conscientização existe, é necessária, mas não se mostrou suficiente para fazer com que se alterassem os rumos do consumo.

IHU On-Line – Um estudo do IPEA mostra que se os indicadores socioeconômicos de 2003 a 2008 se mantiverem, o Brasil deve zerar o número de miseráveis em 2016 e diminuir o número de pessoas de baixa renda. O atual modelo econômico nacional-desenvolvimentista deve garantir tal perspectiva?

Marcio Pochmann – Acredito que sim, porque estamos acompanhando uma trajetória verificada nos próprios países desenvolvidos, onde se combinou crescimento econômico com melhorias em termos de distribuição de renda e fortalecimento da política pública. Isso traduz resultados bastante satisfatórios em termos de enfrentamento da pobreza extrema. Nós também levantamos como uma necessidade avançarmos em termos de indicadores sociais, porque os indicadores que adotamos no Brasil, que são para acompanhar a pobreza extrema, se dão com base numa briga de renda como definidora de pobreza. Nos países europeus, de maneira geral, o indicador utilizado é a pobreza relativa,  ou seja, as pessoas são pobres não por não ter o que comer, mas são pobres relativamente ao padrão de riqueza. Então, acreditamos que é possível, a partir desse modelo econômico, chegarmos ao início da segunda década, eliminando a pobreza extrema. Isso não significa que estaremos vivendo num país sem desigualdade. Se utilizarmos como indicador a pobreza relativa, verificaremos ainda que estamos num quadro de desigualdade bastante elevado, sobretudo quando se compara países com o nível per capita equivalente ao do Brasil.

IHU On-Line – A reorganização do capitalismo iniciada no governo Lula tende a mudar de acordo com o resultado das eleições?

Marcio Pochmann – Essa talvez seja uma das principais respostas que a população gostaria de ouvir dos candidatos à presidência da República. Neste ano, estamos diante de um debate sobre o que se espera do Brasil para os próximos anos, ao contrário de outros anos eleitorais, em que se discutia o passado. Nesse sentido, a discussão sobre o futuro nos remeteria ao que se espera de cada um dos candidatos no sentido de propor e conduzir seus governos. De parte dos candidatos da oposição, nós possivelmente teremos visões diferenciadas que ainda tentarão repor a proposta de reorganização do capitalismo sem o Estado, ou com o Estado com atuação bem reduzida. Seria a volta do ideário dos anos 90. Podemos ter também uma visão de desenvolvimento sem crescimento econômico, porque se parte de uma visão de que o desenvolvimento é antiambiental. Então, não estão muito claros os posicionamentos dos debates eleitorais. Com o passar do tempo, ficará claro que há visões muito diferenciadas de como organizar o Estado e a economia nacional em termos de avanços sociais para a população. 

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Marcio Pochmann à IHU On-Line. Acesse em (www.ihu.unisinos.br).

* O efeito dominó da crise financeira internacional. Publicada em 27-9-2008.

* Trabalho imaterial e redução da jornada de trabalho. Publicada em 28-4-2008. Acesse em .

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