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Patrícia Fachin
“A justificativa é de que é preciso tornar as empresas competitivas internacionalmente”, mas a centralização de capitais “significa sempre um menor poder da classe trabalhadora. Portanto, isso desbalanceia novamente para o lado do capital o equilíbrio de forças na sociedade”. A opinião é do sociólogo Francisco de Oliveira e foi expressa na entrevista que segue, concedida, por telefone, à IHU On-Line.
Segundo ele, a centralização do capital, processo que está se originando com a reorganização do capital brasileiro, é uma tendência mundial e reflete diretamente na atuação do movimento de trabalhadores e na política. Tal processo, assegura, “aumenta muito o poder de grupos de vários setores de mineração, petroquímica, construção civil, telefonia. Esse processo está se constituindo em torno de grupos como Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa”. Ele menciona ainda que estas são organizações de difíceis fiscalização e controle, “por isso atacam impunemente o meio ambiente, e nem o governo tem força para conter-lhes os exageros”.
Experiente em analisar o cenário social brasileiro, Francisco de Oliveira ressalta que está se configurando, a partir da reorganização do capitalismo brasileiro, algo jamais visto. “O Brasil está se encaminhando para um modelo muito estranho, crítico, para o qual a experiência internacional é fraca”. E reitera: “Estamos formando uma sociedade muito desigual, com um vazio no meio (...), estão se formando setores muito ricos e um largo setor muito pobre, que está tendo acesso a consumo, Casas Bahia, telefone celular. O modelo é inédito, mas não sabemos no que vai dar”.
Francisco de Oliveira formou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo - USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O capitalismo brasileiro está sendo reorganizado? Que aspectos demonstram isso?
Francisco de Oliveira – Está passando por uma forte reorganização. Ele está passando por um processo que Marx chamava de centralização dos capitais, um conceito que quer dizer que o mesmo grupo econômico controla o maior número de capitais. Isso se reflete, na prática, nesse processo de fusões entre empresas. Essa é uma característica dos capitalismos muito desenvolvidos, e o Brasil está entrando nesse modelo.
IHU On-Line – Qual é o papel das estatais e dos fundos de pensão nesse processo?
Francisco de Oliveira – Muito forte. O BNDES, que é um banco estatal, está presente em todas essas fusões e centralizações de capitais. Os fundos de pensão são os principais promotores dos tentáculos desses processos. Veja que para fundir a Perdigão com a Sadia, o BNDES entrou para garantir a fusão. A fusão da AmBev já tinha ocorrido antes, de modo que não foi no governo Lula. Todos os novos processos de reforço do capital têm sido fortemente patrocinados por fundos públicos, incluindo ai os fundos de pensão.
IHU On-Line – Como avalia a postura do BNDES nessa iniciativa? Quais as implicações desses financiamentos para a economia e para a sociedade brasileira?
Francisco de Oliveira – A justificativa é que é preciso tornar as empresas competitivas internacionalmente. A economia brasileira cresceu muito do ponto de vista da projeção internacional e as empresas brasileiras são realmente nanicas. Para se meter em briga de cachorro grande não adianta ser luluzinha, tem de ser buldogue.
Em geral, a centralização de capitais, que ocorre em economias muito desenvolvidas, significa sempre um menor poder da classe trabalhadora. Portanto, isso desbalanceia novamente para o lado do capital o equilíbrio de forças na sociedade. Não o vejo com bons olhos, principalmente pela minha orientação socialista, mas esse é um processo que ocorre em todo o sistema capitalista.
Essa é uma tendência mundial. Todas as empresas internacionais que estão no país são produto de fortíssima centralização de capitais em seus respectivos países. Então, estamos seguindo uma tendência, com a diferença de que o Brasil e o governo brasileiro resolveram apostar nisso como sendo um elemento positivo para a presença das empresas brasileiras no comércio internacional.
IHU On-Line – O senhor propõe que o governo radicalize suas políticas de investimentos, criando cinco Embraers por ano, em diversos setores, como uma maneira de defender a maior participação do Estado na economia. De que forma está percebendo a atuação do Estado na condução da política econômica?
Francisco de Oliveira – Para o sistema capitalista, o Estado está correto. O paradoxo é que, ou o Estado se arma de uma musculatura poderosa ou não se mete, porque a briga em jogo não é para nanicos. O Brasil quer desempenhar um papel importante no cenário internacional: quer apoiar o Irã, Cuba, desestimular agressões. Sem musculatura, isso não se faz. Quer dizer, se grita e fica por isso mesmo. Sem poder de retaliação não dá em nada. Lamentavelmente, para nós socialistas, pelo menos para mim, é uma tendência mundial, e o Brasil está fazendo a lição de casa.
IHU On-Line – Quais os prós e contras do Estado enquanto financiador do capital privado? Esse processo beneficia quem?
Francisco de Oliveira – Beneficia os grupos que são proprietários das empresas e círculos de empresas em torno delas. Depois da fusão da Sadia com a Perdigão, o que sobrou? Quem vai se meter a besta no ramo de carnes e frangos? Então, esse processo beneficia diretamente essas empresas. Aumenta o poder delas na competição interna e, possivelmente, externa, se bem que na competição externa ainda falta muito. É o benefício direto, e isso significou, sempre, no sistema capitalista, uma queda do poder real da força de trabalho, isto é, a classe trabalhadora passa a se enfrentar com coalizões de interesses do capital, que são amplíssimas e têm a capacidade de retalhar em qualquer setor. Veja os grupos que estão metidos em petroquímicas, em telefonia, em construção pesada.
O movimento de trabalhadores, cuja bandeira era a dos tempos de Marx, ou seja, trabalhadores unidos, está fragilizado. No sistema capitalista, a união que se opera é a das empresas, e não dos trabalhadores. Isso socialmente não é bom, nem politicamente. Os reflexos políticos logo aparecerão. Na disputa presidencial de 1989, tinha pelo menos quatro candidatos que eram respeitáveis, provaram que não tinham forças nas urnas, mas havia um velho Ulisses Guimarães, Mario Covas, Fernando Collor, o Lula e até o Paulo Maluff. Agora, quem são os candidatos? São dois. Isso mostra que essa concentração e centralização de poder econômico acaba se refletindo na política.
IHU On-Line – E como atuam os movimentos sociais diante dessa reorganização?
Francisco de Oliveira – Eles se enfraquecem. Havia movimentos sociais para atuar em processos específicos de trabalho. Esses movimentos rapidamente se enfraquecem porque passam a enfrentar-se com um adversário cujas proporções estão fora do alcance das organizações dos trabalhadores. O movimento social em geral perde com essa centralização de capitais. O ganho político é nulo, e o social é negativo.
IHU On-Line – A centralização de capitais vai na contramão da crise ecológica? Que papel o PAC desempenha nesse novo processo?
Francisco de Oliveira – Provavelmente, porque aumenta muito o poder de grupos e capitais de vários setores de mineração, petroquímica, construção civil, telefonia. Esse processo está se constituindo em torno de grupos como Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa. São grupos poderosíssimos com capacidade de desempregar em vários setores se houver resistência de trabalhadores. Além do mais, são organizações de difíceis fiscalização e controle, por isso atacam impunemente o meio ambiente, e nem o governo tem força para conter-lhes os exageros. Todos perdem, menos os grupos que fazem essas operações de centralização dos capitais. Mesmo o governo perde porque passa a enfrentar-se com empresas que são gigantescas. Nós já temos o Banco do Brasil e a Petrobras, que são estatais, mas nem o Estado pode se meter com elas. Elas são tão gigantescas, mexem com tantos interesses, que ninguém pode se meter a fiscalizá-las. Acrescentam-se mais aí todas essas que estão em processo de fusões. Esse processo é promissor do ponto de vista do capital e é sombrio do ponto de vista dos capitais.
O PAC só será reforçado, e a escala das empresas aumentará. A maior centralização de capitais e a formação de grandes grupos econômicos muitos fortes reforçam a presença dessas empresas no PAC e vão dar ao programa maiores condições de realizações. O Lula está se revelando um mestre no jogo de cartas.
IHU On-Line - O setor financeiro privado também tem esse poder na centralização de capitais?
Francisco de Oliveira – A atuação do setor financeiro privado é secundária. Esse setor vai aproveitar porque se trata de um movimento que vai ampliar a escala das empresas. Mas o setor financeiro privado não tem recursos para bancar essa centralização. Quem termina bancando é o setor público: o Estado, através de seus bancos, o Banco do Brasil e o BNDES, e através de incentivos fiscais, de isenção fiscal. A hegemonia é do setor financeiro estatal. É uma política deliberada, e o BNDES é o grande agente dessa centralização.
IHU On-Line – Em que consistiria uma reforma do sistema financeiro estatal na atual conjuntura?
Francisco de Oliveira – É muito difícil dizer em poucas palavras o que consistiria uma reforma do sistema financeiro estatal. Seria desnecessário desmontar simultaneamente os monopólios públicos e privados, porque, se desmontar só os monopólios públicos, ficam os privados reforçados. Se desmontam o Banco do Brasil, se fortalecem Itaú/Unibanco, Santander/Real, Bradesco. Então, uma reforma do sistema financeiro teria que ser mais ampla para incluir o sistema privado quanto o público. Mas em que precisamente é difícil dizer.
IHU On-Line - O senhor disse recentemente em uma entrevista ao Brasil de Fato que dizer que estatização é programa de esquerda é não ter entendido nada do capitalismo contemporâneo. O caracterizaria um programa de esquerda hoje?
Francisco de Oliveira – Um programa de esquerda hoje é o de sempre. A divisa da esquerda na famosa Revolução Francesa: o ponto da esquerda é a igualdade. Essa continua sendo a pedra angular de qualquer política de esquerda. Concretamente, no Brasil, significa reduzir e até eliminar onde for possível a desigualdade, que é, sobretudo, de base econômica. Nós estamos indo por caminhos no sentido de anular a desigualdade étnica, racial. É uma iniciativa louvável, mas não resolve o problema porque a desigualdade é fundamentalmente de natureza econômica. E é isso que precisamos atacar. Não há programas suficientemente no Brasil para isso. O Bolsa Família é o único programa que existe de redução das desigualdades e é pálido frente ao dinheiro que o governo gasta pagando o serviço da dívida interna. Então, o programa continua sendo o que a Revolução Francesa anunciou: atacar por todos os lados o tema da igualdade.
IHU On-Line – Com a crescente centralização do capital, o senhor ainda tem esperança?
Francisco de Oliveira – (Risos). Como eu sou daltônico, não vejo verde; só vejo vermelho.
IHU On-Line – Que Brasil está se configurando a partir dessa reorganização do capitalismo brasileiro?
Francisco de Oliveira – Está se configurando uma coisa muito estranha. Não é algo que já vimos. Há algum tempo, pensava-se que o Brasil caminhava para uma sociedade do tipo norte-americana, com uma grande classe média. O Brasil está se encaminhando para um modelo muito estranho, crítico, para o qual a experiência internacional é fraca. Estamos com uma base muito ampla de pobres, que constituem hoje a base social do fenômeno chamado lulismo e, por fim, temos uma classe constituída pelo processo de centralização e concentração de capitais, com empresas formidáveis, que o Brasil nunca conheceu. Estamos formando uma sociedade muito desigual, com um vazio no meio porque o crescimento da classe média que a imprensa anuncia é falso. Isso é crescimento de classe do ponto de vista de estratificação de consumidores, não é classe média do ponto de vista da sociologia. Estão se formando setores muito ricos e um largo setor muito pobre, que está tendo acesso a consumo, Casas Bahia, telefone celular. O modelo é inédito, mas não sabemos no que vai dar.
IHU On-Line – Liberação de crédito nem sempre significa desenvolvimento social?
Francisco de Oliveira – Para o capitalismo, significa, sim. Capitalismo é crédito. Ele pode piorar o âmbito social porque as famílias passam a viver num ciclo vicioso de endividamento. Mas, do ponto de vista econômico, não há do que se queixar.
IHU On-Line – Dependendo do resultado das eleições, podemos ter uma mudança na condução do Estado?
Francisco de Oliveira – Não. Haverá, certamente, formas mais personalizadas de condução dos negócios do Estado, alguma ou outra prioridade, que deve ser atribuída à preferência de um dos dois candidatos principais. Mas mudança de rota num sentido forte e mudanças do fundamento da política econômica de moeda, crédito, câmbio, isso não vai haver. Talvez a dona Dilma, como é mulher, coloque um lacinho de fita na cabeça do PIB; e o Serra, como é mais carrancudo e mais feio, coloca uma gravata borboleta, que é o símbolo de mau gosto. Mas, mais do que isso, não vai haver nada.
IHU On-Line – A candidatura de Marina representa hoje o que a candidatura de Lula representou há oito anos, no sentido de ser uma esperança para o país?
Francisco de Oliveira – Não. De jeito nenhum. Infelizmente, Marina Silva, que mostrou ser uma senadora muito positiva, uma novidade no senado brasileiro, aderiu ao ecocapitalismo e não tem muita coisa a prometer. Ela convidou para vice-presidente o presidente da Natura, Guilherme Leal. Isso é ecocapitalismo, ou seja, faz de conta que preserva a natureza, faz de conta que é verde. Quer dizer, quando ela sai candidata e escolhe para vice o presidente de uma empresa que explora os recursos da Amazônia, que é tida como exploradora de recursos indígenas, de trabalho infantil, aí a perspectiva é ruim.
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Francisco de Oliveira já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line:
* O pecado do PT: deixar de ser reformista, publicada na 123ª edição, de 16-11-2004
* “A política tornou-se irrelevante”, publicada nos Cadernos IHU em formação, número 9, de 2006, intitulado Política Econômica. É Possível mudá-la?