FECHAR
Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).
Patricia Fachin
Na opinião do economista Carlos Lessa, as mudanças mais relevantes quando se analisa o capitalismo brasileiro estão diretamente relacionadas a “uma atrofia significativa do Estado e a uma redução do setor privado nacional”, uma vez que “importantes segmentos privados nacionais passaram ao controle estrangeiro”. Na entrevista que concedeu, com exclusividade, por telefone, à IHU On-Line, ele argumenta que o “Estado brasileiro perdeu muitas das suas funções e instrumentos porque o neoliberalismo multiplicou as agências reguladoras, que, na verdade, colocam fora da decisão política pública importantes segmentos da atividade econômica”.
Lessa analisa ainda os incentivos do BNDES na criação de gigantes nacionais e se demonstra favorável aos financiamentos que propiciaram fusões entre empresas brasileiras, como aconteceu recentemente com a Sadia/Perdigão e Aracruz Celulose/Votorantim. Ele frisa que caso o banco não apoiasse tais projetos, empresas nacionais seriam abocanhadas pelo capital estrangeiro, o que é muito mais preocupante. Por outro lado, ressalta, “isso faz com que essas entidades colossais não tenham mais as suas raízes no seu país de origem (...), elas não operam mais tendo como referência um país chamado Brasil, mas sim a sua dimensão como empresa a nível mundial. Isso não reforça em nada o desenvolvimento brasileiro, mas também não é contra”, pondera. As posições parecem contraditórias, mas o economista argumenta que “é difícil avaliar uma organização como o BNDES num país que não tem plano de desenvolvimento e nem tem política econômica maior”. E pergunta: “O BNDES por definição é um banco de curto prazo. Mas quem diz ao BNDES qual é o longo prazo para o Brasil? Esse é o problema”.
Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp). Em 2002, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e, em 2003, assumiu a presidência do BNDES.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O capitalismo brasileiro passa por uma reorganização?
Carlos Lessa – Objetivamente, está passando por uma reorganização. No passado, foi quase que tradicional, entre os economistas que estavam descrevendo a organização do capitalismo no Brasil, dizer que o país tinha algumas características singulares. A primeira delas era não dispor de um mercado de trabalho que incorporasse a totalidade da população, ou seja, um pedaço imenso da força de trabalho tinha que subsistir fora de uma articulação com sistema formal de trabalho, era o chamado emprego informal. Isso ainda continua; não mudou.
Falava-se também da existência de um tripé no capitalismo brasileiro, no qual uma das partes era formada pelas empresas nacionais, sob controle de capitais nacionais; a outra era formada por filiais estrangeiras; e a terceira, por empresas estatais. Nos últimos anos, debilitou-se profundamente a parte estatal. Não apenas uma quantidade muito expressiva de empresas estatais, federais e estaduais foram privatizadas, como, além disso, aquelas que continuaram sob o controle do Estado foram despojadas de muitas das suas dimensões. O exemplo mais importante é o da Petrobras, que era uma empresa integrada em todos os segmentos e que foi despojada da petroquímica, perdendo, assim, todos os subsetores fertilizantes, o monopólio das importações e, por conseguinte, ficou muito mutilada na sua composição. Além disso, um percentual muito grande do capital da empresa foi vendido na Bolsa de Nova York. É bem verdade que essas são ações preferenciais, mas, hoje, a diretoria da Petrobras tem de prestar muita atenção no que acontece na bolsa internacional, o que no passado não tinha a menor importância.
Trabalho e reorganização do capitalismo
Voltando à sua pergunta inicial, diria que no que diz respeito ao trabalho não houve modificações muito relevantes no capitalismo brasileiro. O que houve, sim, de relevante, foi uma atrofia significativa do Estado e uma redução também do setor privado nacional. Importantes segmentos privados nacionais passaram ao controle estrangeiro. Um fato torna isso visível: há 25 anos, toda a rede de comercialização por supermercado era nacional. Hoje, sobra apenas uma grande rede, mas que está dividida com uma rede francesa. Isso cria uma situação complicada. A soberania objetiva nacional foi muito atrofiada, e o Estado brasileiro perdeu muitas das suas funções e instrumentos porque o neoliberalismo multiplicou essas agências reguladoras, que na verdade colocam fora da decisão política pública importantes segmentos da atividade econômica.
IHU On-Line – O Estado está incentivando a criação de potências nacionais na área da petroquímica, alimentação, telefonia entre outros setores. Isso representa algum sinal para recuperar a soberania econômica nacional?
Carlos Lessa – Infelizmente, penso que não recuperam a soberania. Essas grandes empresas nacionais, que são o sobrevivente do capital privado nacional – Grupo Gerdau, Grupo Perdigão/Sadia, alguns grandes frigoríficos, algumas empresas expressivas do setor de metalurgia, papel e celulose etc -, são organizações que estão cada vez mais adaptando sua dinâmica a uma dimensão global mundial. O Grupo Gerdau, por exemplo, tem hoje operações em muitos países da América do Sul, nos EUA. A Petrobras chegou a comprar uma refinaria no Japão. A Vale do Rio Doce espalhou-se pelo mundo inteiro, inclusive comprou empresas de níquel no Canadá, está explorando carvão metalúrgico na Mongólia etc. Essas instituições não operam mais tendo como referência um país chamado Brasil, mas sim a sua dimensão como empresa a nível mundial. Isso não reforça em nada o desenvolvimento brasileiro, mas também não é contra.
Desenvolvimento
Desenvolvimento se obtém quando se consegue combinar duas dimensões: a ampliação do mercado interno, principalmente por elevação do poder de compra das famílias, melhoria do padrão de vida da população; e quando as empresas públicas, privadas, nacionais e estrangeiras investem, ampliando a capacidade produtiva. É isso que empurra o país para frente. Só que, no Brasil, isso está mutilado porque a capacidade pública de investir está próxima a zero. O PAC é uma tentativa de restabelecer os investimentos de longo prazo, mas até agora os resultados foram certamente positivos, porém muito pouco significativos em relação ao que o país necessita.
IHU On-Line – A criação de potências nacionais é uma característica da política econômica atual ou é uma tendência mundial? Qual é a lógica desse comportamento?
Carlos Lessa – Parece ser uma tendência mundial porque, na competição entre gigantes, quem não se expandir no mundo vai ser atrofiado. Essa é a lógica desse padrão de comportamento. Só que isso faz com que essas entidades colossais não tenham mais as suas raízes no seu país de origem. Vou dar um exemplo: Tanto a Brahma quanto a Antarctica surgiram no Brasil no tempo de Pedro II, junto com dezenas de outras fábricas de cerveja. Essas duas cresceram, nos anos 30, foram poderosamente apoiadas pelo Banco do Brasil, que tinha, na ocasião, uma carteira chamada CREAI (Carteira de Crédito Agrícola Industrial), que foi o embrião de banco de desenvolvimento do Brasil. Quando começou a industrialização e a urbanização, essas empresas cresceram e engoliram seus adversários. Houve uma tentativa de o capital estrangeiro entrar no setor, mas não conseguiu. Há 20 anos, existiam duas grandes cervejarias no país. Mais tarde, elas se fundiram e surgiu um gigante no setor de bebidas (AmBev), o qual recebeu apoio do Estado para comprar a cervejaria Argentina. Isso significou um grupo brasileiro se movendo a nível mundial. Só que chegou um dado momento em que os donos da AmBev a fundiram com um grupo belga e ficaram minoritários no negócio. Veja que engraçado, de Pedro II à Bélgica. A trajetória certamente foi maravilhosa para os donos da empresa que se fundiram com o grupo internacional. Certamente estão milionários e vivem no exterior. No final das contas, isso tem pouco a ver com o Brasil.
A Gerdau, por outro lado, tem comprado o controle de empresas no exterior e não tem diminuído o peso no grupo. O que eu não sei é onde está o controle da Gerdau. Muitos dizem que a holding das empresas Gerdau está na Holanda.
IHU On-Line – O senhor está dizendo que o incentivo do Estado à criação de gigantes é equivocado?
Carlos Lessa – O Estado não deveria fazer nenhuma linha de apoio para isso, porque o grande apoio que ele tem é dispor do mercado brasileiro sob suas rédeas. Esses grupos tiveram um enorme apoio do Estado brasileiro para crescerem. Eu era presidente do BNDES quando a AmBev decidiu se fundir com os belgas. Fiquei muito zangado e fui verificar quantas operações o banco havia feito com o Grupo AmBev desde que ele foi fundado: dual mil operações com crédito favorecido. E a empresa sequer nos comunicou que iria fundir com os belgas. Imediatamente parei a linha de financiamento, mas, quando fui demitido, restabeleceram essas políticas de incentivo.
Um país que fez a Petrobras e construiu Brasília pode fazer coisas muito mais espantosas. O problema é que a alma brasileira está pequena. Nós podemos pensar grande porque somos grandes e temos um passado de grandes coisas feitas. A única coisa que nunca fizemos nesse país foi justiça social.
IHU On-Line – Diante de tantas fusões, é possível saber se ainda há bastante capital nacional no Brasil?
Carlos Lessa – Existe muito, inclusive um pedaço muito grande do capital dito estrangeiro pertence a nacionais. Uma parte enorme do investimento do exterior é dinheiro de brasileiros que vivem no exterior e que preferem entrar no Brasil como capital estrangeiro, porque tem maiores vantagens, inclusive fiscais.
Os Argentinos avaliaram em 90 bilhões de dólares o capital argentino que estava no exterior. O Brasil deve ter um valor parecido com o da Argentina, ou muito mais. Mas se for 90 bilhões, isso já é uma porcentagem colossal do dinheiro que está por trás das operações de financiamento de dívida pública, que está em aplicação na bolsa de valores. O Brasil tem muito capital e multinacionais que vivem em Miami. Acho muito engraçado o número de brasileiros que têm apartamento em Miami. É algo assustador. Mas é mais fácil ter conta no Caribe do que apartamento no exterior.
IHU On-Line - Quais os pontos positivos e negativos da iniciativa do BNDES de apoiar e financiar a criação de grandes grupos econômicos, mistos ou privados?
Carlos Lessa – Alguns pontos são positivos e imediatamente visíveis. Por exemplo, quando a Aracruz Celulose, por causa de erro de especulação e má gestão, ficou ameaçada de quebrar, o BNDES apoiou pesadamente o Grupo Votorantim na compra do controle da Aracruz. Certíssimo, porque se não fosse o Grupo Ermírio de Moraes, a Aracruz ia cair na mão da finlandesa Stora Enso, que, com isso, seria a maior empresa de celulose do mundo. Então, ao invés disso, o BNDES deu apoio ao Grupo Ermírio de Moraes, que comprou o controle da Aracruz e fundiu com suas empresas de papel, dando origem a Fibria, que é, provavelmente, a maior papeleira do mundo. Acredito que o BNDES acertou integralmente nesse caso. Uma coisa parecida aconteceu quando a Sadia estava ameaçando falir. Ou a Perdigão absorvia, ou ia para a mão do capital estrangeiro. É péssimo passar o controle de uma empresa como a Sadia para um grupo estrangeiro. Então, o BNDES apostou tudo para que a Perdigão assumisse a Sadia. Não tinha nenhuma outra empresa com capacidade de fazer uma operação desse tipo. Agora, o BNDES devia fazer cláusulas muito duras para evitar que esses gigantes passem para a mão do capital estrangeiro. Deveria existir uma ação com cláusula ouro, que não permitisse passar o controle da empresa para o exterior sem o BNDES ser ouvido. Isso é o mínimo que se espera. O que o BNDES fez para salvar enormes empresas nacionais e fazê-las gigantescas não é errado, porque, tecnicamente, um país precisa ter esses gigantes.
E quanto ao BNDES dizer que vai apoiar a Petrobras no pré-sal, está corretíssimo, para que não haja o argumento de que a Petrobras terá de abrir mão de suas potencialidades para obter financiamento.
IHU On-Line – Mas isso garante às empresas a oportunidade de especularem sem medo no mercado financeiro, pois serão apoiadas pelo Estado? Não lhe parece uma contradição? A crise de 2008 nos mostrou algo nesse sentido?
Carlos Lessa – No caso da Sadia e da Aracruz, elas especularam de forma errada. O problema é ruim. As empresas não poderiam especular da maneira como fazem, mas o Brasil virou um cassino. Nessa crise, esses foram dois perdedores colossais, fora outros frigoríficos, e uma porção de empresas que ficaram doentes.
IHU On-Line – O BNDES tem algum projeto de desenvolvimento para o país?
Carlos Lessa - É difícil avaliar uma organização como o BNDES num país que não tem plano de desenvolvimento e nem tem política econômica maior. Um país que vive apenas a partir do que o Banco Central decide em torno de juros e dólar, e que os donos do pedaço privado do Brasil são, na verdade, os bancos e o mercado de capitais, é um país que navega a curto prazo. O BNDES por definição é um banco de curto prazo. Mas quem diz ao BNDES qual é o longo prazo para o Brasil? Esse é o problema.
Em alguns aspectos, o banco está “comendo mosca”. O BNDES não deveria estar financiando de maneira tão espetacular a exportação de automóveis porque essas empresas que estão sendo apoiadas pelo banco exportariam de qualquer jeito. Poderiam pegar dinheiro no exterior. Na verdade, eu não tenho muita certeza se eles não estão fazendo uma brincadeira perversa: O BNDES empresta, mas os lucros deles são reciclados para dentro do país, aplicando em operações financeiras dentro do Brasil. Suspeito que muitos fazem isso, o que não é bom.
Projetos travados
Quando eu era presidente do BNDES, queria investir em 17 usinas hidroelétricas que já haviam sido examinadas. Já sabíamos que iria faltar energia hidroelétrica no Brasil. Não conseguia financiar porque não tinha licença do meio ambiente. Saí do BNDES e muitas delas ainda não foram aprovadas. Algumas que estavam lá no meu tempo foram aprovadas, mas duvido muito que sejam melhores para o Brasil. Essas grandes hidroelétricas que o Brasil está fazendo como Belo Monte e as duas imensas do Rio Madeira são a fio d’água, ou seja, reservatório de água pequeno. Então, se São Pedro estiver bem, gera energia. Se ele estiver de mau humor, se chover pouco, não gera a energia necessária. Então, o que fazem? Complementam com termoeletricidade, que é a usina mais cara que existe, poluente e que consome o material não-renovável. Aliás, está se fazendo uma coisa terrível com essas grandes usinas da região Amazônica, porque não estão instalando eclusas. Ainda hoje, a usina de Tucurui não tem eclusas. Os projetos de Belo Monte e Rio Madeira foram aprovados sem eclusa. Com ela se converte o sistema gerador de energia elétrica também numa via navegável. Tudo que o Brasil precisa é ampliar a navegação, ou seja, transporte sob modalidade aquática, que é muito mais barato do que a ferroviária ou rodoviária. Não entendo como o governo aprovou a construção dessas obras sem eclusa. Sei que tem uma objeção brutal dos ambientalistas. Eles ficam preocupados com o que vai acontecer com 3 mil índios e lavam as mãos com o que acontece com todos os nordestinos, que estão ameaçados de não ter mais energia elétrica. Depois, vão fazer duas usinas atômicas na margem do Rio São Francisco para suprir de energia o nordeste, porque Belo Monte está sendo vetada pelos ambientalistas. É algo que não dá para entender. Penso que isso é antinacional ou é uma estupidez de proporções monumentais.
IHU On-Line - Como o senhor analisa a proposta do possível Projeto Ômega, que visa transformar o Brasil no centro financeiro da América Latina? Como esse projeto se insere na reorganização do capitalismo?
Carlos Lessa – Não só penso que é precipitada como penso que é, no sentido mais profundo, antinacional, porque a soberania do Estado brasileiro já está muito enfraquecida com as regras que o Brasil adotou e com a política de juros e de taxa de câmbio. Os agentes financeiros privados do país estão fortíssimos, porém ainda existem grandes agentes financeiros públicos: Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES. Então, ainda existe um setor poderoso no Brasil. Agora, um projeto como esse cria para o setor financeiro privado nacional um paraíso. Cria-se um espaço institucional onde se pode fazer de tudo: ter contas bancárias em todas as moedas do mundo, comprar e vender qualquer papel financeiro do mundo, fazer operações derivativas. Dizem que o projeto visa apoiar a América do Sul. Isso é uma bobagem. Só apoiaria se o Brasil estivesse disposto a financiar os países da América do Sul, mas o país não tem condições para isso e sequer está crescendo.
Plano Ômega e sucessão presidencial
Então, essa história do Plano Ômega é terrível, sintomaticamente, isso aparece num cenário em que está se aproximando a sucessão presidencial. Estou absolutamente convencido de que isso vai ser colocado nas discussões dos dois candidatos principais, e o candidato que apoiar o projeto terá o apoio do sistema bancário. Isso é coordenado pelo ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, e, por trás dos panos, penso que o Dr. Meirelles gosta da ideia. Não posso afirmar, mas se conheço bem a cabeça dele, não tem nada contra porque ele gosta mesmo é de ver os bancos privados crescendo e o Brasil parado. Agora mesmo ele está querendo parar o Brasil e novamente os bancos continuarão crescendo porque os juros reais voltarão a subir. Esse é um jogo ligado à sucessão presidencial.
IHU On-Line – De fato, os relatórios mostram que os bancos tiveram lucro recorde no último ano.
Carlos Lessa – O Brasil está em crise, a indústria teve dois trimestres de perda, a agropecuária está com dificuldades grandes, e os bancos aumentaram os lucros de uma forma espetacular. Pode ser que eu me engane, mas o Grupo Itaú já está se abrindo para atuar em todas as Américas. A informação que eu tenho é essa. O banco deve assinar embaixo desse plano Ômega com fervor.
IHU On-Line – O senhor defende a produtividade local. Como esse projeto pode ser aplicado a partir da reorganização do capitalismo brasileiro?
Carlos Lessa – Quando observamos o atual cenário, pensamos se tudo está debilitando a soberania nacional e a nação. Sabe por que eu não posso ser internacionalista? Porque, no que diz respeito à força de trabalho e mão-de-obra, cada vez são maiores as barreiras de movimentação da mão-de-obra. Por exemplo, os americanos estão criando rigorosamente uma barreira militar para evitar a migração clandestina de mexicanos, sul-americanos, brasileiros. Os europeus estão endurecendo terrivelmente as regras. O mundo está ficando cada vez mais fechado para o trabalho, e os orçamentos ligados às políticas ditas sociais não existem a nível mundial. A questão social é responsabilidade de cada país. Então, tem uma perversidade total. Acaba com a soberania nacional, mas deixa a questão social no âmbito da nação. As assimetrias são terríveis.
Pequenas e médias empresas sobrevivem?
Nós não podemos abrir mão da soberania nacional, mas ela só existe quando um país tem protagonistas que querem que a nação exista. Então, os protagonistas na área da economia, à primeira vista, estão diminuindo, porque, se as grandes empresas vão para o mundo e as pequenas e médias estão ameaçadas por uma economia que não cresce, pergunto: quem vai apoiar? De certa forma, as pequenas e médias empresas estão inventando algumas coisas admiráveis, isto é, os chamados arranjos produtivos locais. Vou dar um exemplo na área industrial: Nova Serrana é uma pequena cidade de Minas Gerais que tem mais de 850 fábricas produzindo calçado esportivo: tênis, chuteira, bota. Produziu, no ano passado, 55% de todo calçado do Brasil. É maior que a Nike e a Adidas. É uma gigantesca empresa formada por uma colmeia de pequeninas. No Espírito Santo, tem uma colmeia com rochas ornamentais; em São José do Rio Preto, tem uma colmeia fazendo bijuteria. Temos, no Brasil, inclusive, empresas de software e também algumas coisas espetaculares no setor de serviços. No Rio de Janeiro, existem dois exemplos: o Saara, que é um shopping a céu aberto, usando prédios velhos. É um local onde os preços dos produtos são muito baratos. O povo da cidade que não tem automóvel gosta de ir ao Saara fazer compras porque é mais barato e não tem problema de estacionamento. O mesmo povão do Rio de Janeiro organizou a Feira de São Cristovão, que hoje tem um nome pomposo: Centro de Tradições Nordestinas Luis Gonzaga. Ali, 600 empresas operam juntas a partir de uma feira clandestina. Todo final de semana recebem 120 mil visitantes. Não tem na América do Sul nenhum local de lazer que receba tanta gente. 120 mil pessoas que gastam em média R$ 20,00. Tem tudo que os nordestinos gostam e que os cariocas gostam também. Não tem capital estrangeiro que compre isso. O bom é que estas feiras estão se reproduzindo. Estão surgindo duas outras, uma na Rocinha e uma em Nova Iguaçu. Eu quis convencer o Alckmin (ex-governador de São Paulo entre 2001 e 2006) a estimular uma dessas feiras em São Paulo. Ele não quis nem visitar o local. Bobo, porque a cidade brasileira que tem mais nordestino é São Paulo.
Em Pernambuco, está se desenvolvendo um arranjo produtivo a partir de um fato religioso: Nova Jerusalém. De certa maneira, Juazeiro também é um arranjo produtivo que gravita em torno do culto ao padre Cícero. A cidade atrai dois milhões de nordestinos por ano e cresce com uma velocidade espetacular. Isso é uma maravilha no sentido de que surge uma entidade econômica que cresce com o Brasil e não se vende ao capital estrangeiro, não se desnacionaliza, porque nenhum capital estrangeiro consegue controlar uma coisa dessas. Com isso, criam-se empresas nacionais muito fortes.
IHU On-Line – Dependendo de quem vença as eleições, pode haver uma mudança na conduta da política econômica e na atuação do Estado?
Carlos Lessa – Não sei se o (Roberto) Requião (governador do Paraná - PMDB)vai ser candidato. Suspeito que o PMDB vai empurrar o Meirelles como vice da Dilma. Não sei se o rumo vai mudar. Se essa turma que articula o plano Ômega tiver sucesso em vendê-lo, não muda rumo nenhum; reforça as piores tendências atuais. O Brasil caminha para ser uma Singapura colossal: Hong Kong da América do Sul. Vão dizer que Hong Kong tem um padrão de vida alto. Sim, tem. Mas também tem as maiores favelas da Ásia. Hong Kong é terrível. Uma grande porcentagem da população vive em barcos ancorados permanentemente na baía. É uma miséria terrível, mas tem Hong Kong e os banqueiros de Hong Kong.
>> Carlos Lessa já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira na página eletrônica (www.ihu.unisinos.br/ihu).
• “O mercado realiza a globalização dos infernos”. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, em 31-5-2009.