Edição 321 | 15 Março 2010

Gestão das águas: um campo de permanente tensão

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Graziela Wolfart

Na visão de Gerôncio Rocha, a solução mais eficaz para a distribuição equitativa da água consiste na construção de cisternas domiciliares nos pequenos povoados e sítios

Em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o geógrafo Gerôncio Rocha lembra a importância de ser respeitado o princípio de que o abastecimento público é sempre prioritário. “Na prática, isso não acontece, porque a disputa pela água é constante”, lamenta. Gerôncio reflete sobre o sistema de gestão dos recursos hídricos no Brasil e explica que “a gestão das águas é um campo de permanente tensão entre dois estilos: o tradicional, tecnoburocrático, em que o órgão público se julga autossuficiente, e o estilo aberto, participativo, apoiado em colegiados”. E conclui: “apesar de tudo, os comitês de bacia são exemplos de gestão democrática dos recursos hídricos”. 

Graduado em Geologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Gerôncio Rocha é geólogo da Coordenadoria de Recursos Hídricos da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. É autor de Um copo d’água (São Leopoldo: Unisinos, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como a questão do saneamento básico afeta diretamente a qualidade da água?

Gerôncio Rocha - Em condições naturais, as águas dos rios são limpas e contêm certa quantidade de oxigênio dissolvido, da ordem de 10 miligramas por litro, que garante a vida aquática. Graças a isso, as águas têm alguma capacidade de autodepuração, podendo limpar parte do esgoto lançado. O que acontece é que as bactérias se alimentam da matéria orgânica dos esgotos, consumindo parte do oxigênio dissolvido. Quando o volume de esgoto lançado é elevado e constante, a taxa de oxigênio decai, e os peixes morrem. O rio está poluído. Quando, além dos esgotos, são lançados efluentes de indústrias, a situação piora porque os produtos químicos não são biodegradáveis. É isto o que acontece no Rio dos Sinos,  na grande Porto Alegre, no rio Tietê, na grande São Paulo, e em quase todas as cidades grandes e pequenas do país.

IHU On-Line - O que mais provoca a escassez de água potável: sua má utilização ou a poluição por esgotos domésticos e industriais?

Gerôncio Rocha - São causas concomitantes. A má utilização se revela no desperdício e nos altos índices de consumo. Com o passar do tempo, isto se torna coisa corriqueira, e os órgãos de governo acabam adotando valores elevados de demanda por água em seus planos, o que induz a realização de obras e mais obras, em vez de ações de controle da demanda. Por outro lado, à medida que os esgotos lançados no rio ficam sem coleta e tratamento, a mancha de poluição vai se estendendo por quilômetros, tornando inviável o aproveitamento da água próxima à cidade. É um circuito perverso, e as duas causas devem ser enfrentadas ao mesmo tempo.

IHU On-Line - Como poderia ser proposta uma distribuição mais equitativa da água entre os setores da irrigação, do abastecimento público, da indústria e do setor hidroelétrico?

Gerôncio Rocha - Em tese, a utilização da água por esses setores deve obedecer a um plano — plano de bacia — em que os usos da água são hierarquizados de acordo com o perfil socioeconômico de cada região. Deve, também, ser respeitado o princípio de que o abastecimento público é sempre prioritário. Na prática, isso não acontece, porque a disputa pela água é constante. Na última década, houve um importante movimento de construção dos “comitês de bacia hidrográfica”, colegiados de gestão das águas, onde os conflitos e disputas são em boa parte resolvidos por meio de entendimento e negociação. Atualmente, há cerca de 150 comitês de bacia em todo o país. Um exemplo interessante de distribuição negociada da água é praticado no interior do Ceará. Em torno da “bacia” de um açude, são organizadas comissões de usuários que, em assembleia, avaliam a disponibilidade de água no ano e estabelecem as quantidades de água (cotas) para cada categoria. Modelos matemáticos de tomada de decisão são expostos à votação do plenário. O resultado é aprovado pelo comitê e acatado por todos. Conhecendo a história do poder político dos “coronéis” do interior e do favorecimento aos mais fortes, esse tipo de prática é um notável avanço.

IHU On-Line - Como o senhor avalia o tratamento da água e do esgoto no Brasil, de modo geral, e em São Paulo, especificamente? Quais os principais desafios?

Gerôncio Rocha - Em linhas gerais, a cobertura dos serviços de abastecimento de água potável no país é da ordem de 90%, considerada boa, com exceção de porções das regiões Norte e Nordeste. Já com relação aos esgotos, a situação é crítica: apenas 48% da população dispõe de rede de coleta dos esgotos e apenas 25% do esgoto é tratado. Historicamente, tanto os governos como as empresas estaduais de saneamento têm boa dose de responsabilidade com essa dívida social. Uns e outros descuidaram dos investimentos nos períodos em que o desenvolvimento econômico acelerou os processos de urbanização. As empresas de saneamento, em especial, sempre alegaram que as obras de saneamento são caras, e os recursos arrecadados são insuficientes para melhorar os serviços. A desculpa não convence porque o contribuinte paga uma taxa de água e esgoto. Nestas condições, o índice de tratamento de esgotos deveria aumentar gradativamente, mas não é o que acontece.

Desde 2006, há uma lei e uma nova política nacional de saneamento. E há recursos financeiros anunciados pelo governo federal. Espera-se que estados e municípios avancem no tratamento dos esgotos e, portanto, na recuperação das águas.

Quanto à metrópole de São Paulo, a situação é particularmente complicada: são 20 milhões de pessoas concentradas num trecho relativamente pequeno do rio Tietê. A poluição das águas é extrema. De 1993 até hoje, o índice de tratamento aumentou de 10% para 40%, com investimento equivalente a 2 bilhões de dólares. Desafios: 1) ampliação do tratamento de esgotos; 2) redução da demanda por água, incluindo a cobrança pelo uso como indução à economia de água; 3) investimento em manutenção da rede de água para redução de perdas. Por fim, o maior desafio de todos: envolvimento e participação da população.

IHU On-Line - Qual sua opinião sobre a transposição do rio São Francisco  como proposta de distribuição equitativa da água?

Gerôncio Rocha - A transferência de água do São Francisco para o sertão nordestino é um projeto de eficácia duvidosa e benefício social limitado. Somente a população residente ao longo dos dois canais ramificados terá acesso à água para abastecimento doméstico e irrigação. Esta concepção geográfica do projeto contrasta com a distribuição da população sertaneja, que é espalhada e dispersa no território. Por causa disso, a solução mais eficaz consiste na construção de cisternas domiciliares nos pequenos povoados e sítios. É o que estão fazendo numerosas organizações sociais, igrejas e governos locais. Agora que a obra está em andamento, não adianta jogar pedra no governo federal. O mais sensato seria convergir os recursos do PAC para as três vertentes estratégicas de enfrentamento das secas: os canais, a multiplicação de cisternas e os serviços de revitalização do rio.

IHU On-Line - Deveria ser composto um modelo ideal de gestão dos recursos hídricos, em sua opinião? O que faria parte desse modelo?

Gerôncio Rocha - A gestão das águas é um campo de permanente tensão entre dois estilos: o tradicional, tecnoburocrático, em que o órgão público se julga autossuficiente, e o estilo aberto, participativo, apoiado em colegiados. No plano legal, institucional, o sistema de gestão é constituído pelos comitês de bacia hidrográfica, do qual fazem parte os órgãos governamentais, os usuários da água e representantes da sociedade civil. No sistema paulista, a composição é tripartite: 1/3 de representantes dos órgãos estaduais; 1/3 dos municípios e 1/3 da sociedade civil (incluindo os usuários). Já no sistema federal, a composição do comitê é mais equitativa: metade de representantes do poder público e metade da sociedade civil. A meu ver, o sistema paulista é mais descentralizado e democrático, com destaque para a participação dos municípios. Decorridos alguns anos de experiência, notam-se algumas fragilidades nesses colegiados. Em primeiro lugar, a representatividade: nos órgãos do governo, em vez de titulares, são designados os “subs” do “subs”, sem poder de decisão; já no segmento da sociedade civil, algumas entidades não têm independência e se comportam como “chapa branca”. Em segundo lugar, vem a efetividade do poder de decisão: para os assuntos simples; as deliberações dos comitês são tomadas quase sempre por consenso. Porém, quando o tema é muito importante, ou polêmico, a votação tem predomínio do governo. É o que aconteceu com o projeto de transposição do São Francisco: o comitê aprovou uma posição restritiva, com alguns condicionantes; quando o assunto foi ao Conselho Nacional, o projeto foi aprovado como queria o governo. Apesar de tudo, os comitês de bacia são exemplos de gestão democrática dos recursos hídricos.

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