Edição 320 | 21 Dezembro 2009

O fim da “guerra fria” interna da Igreja: um desafio pastoral

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Moisés Sbardelotto | Tradução Moisés Sbardelotto

Para o correspondente do jornal National Catholic Reportere do canal CNN John L. Allen Jr, é preciso parar a “guerra tribal” interna da Igreja entre liberais e conservadores e focar naquilo que é melhor em cada um dos vários grupos envolvidos

Com uma ampla rede de contatos e um conhecimento pessoal sobre a vida das Igreja Católica que o levaram ao máximo patamar das coberturas de assuntos do Vaticano no Estados Unidos, John L. Allen Jr. é conhecido por sua linguagem irreverente ao analisar fatos da Igreja, passando, por exemplo, por analogias com o futebol americano, frases do Homem Aranha e trechos do livro “Alice no País das Maravilhas”.

Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, no entanto, Allen aborda com seriedade os grandes desafios da Igreja contemporânea, especialmente as “guerras” internas entre posições e movimentos contraditórios do catolicismo. Segundo ele, é preciso “parar a guerra tribal na Igreja entre pessoas “paz-e-justiça” e pessoas “oração-e-devoção” etc., e focar naquilo que é melhor em cada um dos vários eleitorados”. Encontrar a paz interna, afirma, é justamente um dos maiores desafios para a Igreja Católica do século XXI.

Outro “megadesafio” é encontrar um equilíbrio entre a afirmação da própria identidade da Igreja e o compromisso em um mundo sempre mais pluralista. “O verdadeiro desafio de base para a Igreja Católica em muitas partes do mundo não é o secularismo, mas sim as dinâmicas competitivas de um mercado religioso florescente”, especialmente no Brasil, defende.

John L. Allen Jr. é jornalista e correspondente do jornal National Catholic Reporter (NCR), do canal CNN e da National Public Radio (NPR) para assuntos sobre o Vaticano e a Igreja Católica. Natural do Kansas, é filósofo formado pela Fort Hays State University e mestre em estudos religiosos pela Universidade do Kansas. Ganhou notoriedade nacional pela sua cobertura da morte de João Paulo II pela CNN, o canal de notícias mais visto nos Estados Unidos. E, ao longo dos últimos anos, tem acompanhado todas as viagens papais de Bento XVI como correspondente do NCR e da CNN. Allen é casado e vive em Denver, no Colorado.

É autor de All the Pope's Men: The Inside Story of How the Vatican Really Thinks [Todos os homens do Papa: A história interna de como o Vaticano realmente pensa] Ed. Doubleday, 2004) e Pope Benedict XVI: A Biography of Joseph Ratzinger [Papa Bento XVI: Uma biografia de Joseph Ratzinger] (Ed. Continuum, 2005). Um de seus livros mais vendidos é Opus Dei: An Objective Look Behind the Myths and Reality of the Most Controversial Force in the Catholic Church [Opus Dei: Um olhar objetivo por trás dos mitos e da realidade da força mais controversa da Igreja Católica] (Ed. Doubleday, 2005). Seu mais novo livro, lançado neste ano, é The Future Church: How Ten Trends are Revolutionizing the Catholic Church [A Igreja do futuro: Como dez tendências estão revolucionando a Igreja Católica] (Ed. Doubleday, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que perspectivas o papado de Bento XVI, prestes a completar cinco anos, apresenta para o futuro da Igreja Católica do século XXI?

John L. Allen Jr. – Em poucas palavras, o papado de Bento está relacionado à “ortodoxia afirmativa”, no sentido de uma apresentação o mais positiva possível do magistério e da prática católica tradicional. Seu legado será o de um Papa professoral, em oposição ao grandes gestos diplomáticos ou extensas reformas internas. Eu suspeito que a “ortodoxia afirmativa” será uma peça do quebra-cabeças de conduzir a Igreja ao século XXI, mas é um grave erro, tanto descritiva quanto teologicamente, pensar que tudo depende do Papa.

IHU On-Line – Ao longo do ano, o senhor acompanhou de perto grandes polêmicas em torno da Igreja: a reconciliação com os lefebvrianos, a publicação da nova encíclica “Caritas in veritate”, os escândalos sexuais na Irlanda, a verdade revelada sobre o padre Marcial Maciel, fundador da Legião de Cristo, as investigações sobre as religiosas dos EUA, a questão anglicana etc. A partir de todos esses fatos, quais são os caminhos que a Igreja vem tomando ultimamente?

John L. Allen Jr. – Cada um dos pontos que você menciona é obviamente complicado e deve ser avaliado sobre seus próprios méritos, mas uma ameaça comum é que a Igreja Católica frequentemente não é muito boa em contar a sua própria história. Há diversas coisas positivas acontecendo também, mas a classe profissional de especialistas em relações públicas da Igreja às vezes não parece particularmente imaginativa sobre como se pronunciar.

IHU On-Line – O maior desafio da Igreja hoje, segundo alguns analistas, é o secularismo, como ficou claro pelas declarações do Papa em sua viagem à República Tcheca, em setembro deste ano. Com relação a isso, o senhor defende a existência de um “catolicismo evangélico”. Como o senhor define essa tendência católica e como ela está relacionada à luta contra o secularismo?

John L. Allen Jr. – O catolicismo evangélico é uma estratégia cuidadosamente elaborada contra o secularismo, com a intenção de oferecer um sentido robusto e autoconfiante da identidade católica como uma alternativa aos valores e hipóteses seculares. Ainda não se sabe quanto sucesso ele terá, mas devemos ter clareza de que fora do Leste Europeu, o secularismo é comumente encontrado apenas em alguns bolsões elitistas da vida. O verdadeiro desafio de base para a Igreja Católica em muitas partes do mundo não é o secularismo, mas sim as dinâmicas competitivas de um mercado religioso florescente. No Brasil, vocês sabem muito bem disso por causa da ascensão dos movimentos pentecostais e de seu sucesso em atrair pessoas para fora do catolicismo.

IHU On-Line – Em seu livro mais recente, “The Future Church”, o senhor afirma que “a questão real não é se os bispos estão à altura dos desafios do século XXI. A questão é se o resto de nós está”. Você tem alguma resposta a essa sua pergunta? Como “o resto de nós” pode se preparar melhor para esses desafios?

John L. Allen Jr. – Duas coisas: primeiro, podemos aprender a pensar sobre a Igreja em uma chave global, mas simplesmente com base em nossa própria experiência local. Segundo, nós podemos parar a guerra tribal na Igreja entre liberais e conservadores, entre pessoas “paz-e-justiça” e pessoas “oração-e-devoção” etc., e focar naquilo que é melhor em cada um dos vários grupos envolvidos.

IHU On-Line – De acordo com o padre jesuíta John W. O'Malley, que publicou uma resenha sobre seu livro, o senhor revela em sua obra “uma verdade básica sobre a trajetória histórica da Igreja: o que acontece fora da Igreja é mais importante para ela do que aquilo que acontece dentro dela”. Quais são os principais eventos externos que são fontes importantes de renovação para a Igreja nos próximos anos?

John L. Allen Jr. – Para citar alguns: o avanço do Islã, a globalização de estruturas econômicas e sistemas comunicacionais, a revolução biotécnica, as demografias globais em mudança (incluindo o rápido envelhecimento de populações em muitas partes do mundo), o movimento ambientalista e o avanço do pentecostalismo em todo o mundo.

IHU On-Line – Em sua opinião, que direção as disputas da Igreja por espaço social podem tomar nos próximos anos?

John L. Allen Jr. – Para responder de forma simples, elas não vão desaparecer. Um dos megadesafios diante do catolicismo é atingir o equilíbrio certo entre afirmar sua própria identidade e, ao mesmo tempo, atrair um mundo sempre mais pluralista.

IHU On-Line – A partir de uma visão de mundo diferente, como o senhor vê a igreja Católica contemporânea na América Latina, especialmente no Brasil? Quais são as luzes e as sombras da presença católica nessa região?

John L. Allen Jr. – Em geral, há como que um renascimento em andamento no catolicismo latino-americano (veja o novo livro do Pe. Ed Cleary, “How Latin America Saved the Soul of the Catholic Church” [Como a América Latina salvou a alma da Igreja Católica]). Depois de séculos em que o catolicismo foi um monopólio imposto pelo Estado, as autoridades católicas na América Latina finalmente parecem ter se dado conta de que o mundo mudou e que eles têm que desenvolver uma atitude muito mais “missionária” e pastoral para ir ao encontro das necessidades das pessoas comuns. Isso, claro, foi a ideia que serviu de base para a “Grande Missão Continental”, proclamada pelo encontro do Celam [Conselho Episcopal Latino-Americano], em Aparecida no ano passado, mesmo que ainda seja mais um sonho do que uma realidade. Tudo isso apresenta esperanças. Eu não sou especialista em Brasil, mas minha percepção é de que a “guerra quente” depois de décadas sobre a Teologia da Libertação tornou-se agora algo como uma “guerra fria”, em que os dois lados ainda veem um ao outro com um pouco de suspeita, mas em grande parte deixam cada um no seu canto. Um desafio pastoral, portanto, é transformar essa “guerra fria” em uma paz real.

IHU On-Line – Em sua opinião, quais deveriam ser os principais focos de atenção da Igreja diante do mundo e da sociedade contemporâneos na próxima década?

John L. Allen Jr. – Eu não posso lhe dar um “foco”, mas posso propor um pouco de perspectiva. A Igreja Católica está enfrentando novos desafios gigantescos no começo do século XXI, e se não pararmos de brigar entre nós mesmos e desenvolvermos uma nova forma de usar todos os recursos dentro da Igreja, não estaremos à altura desses desafios – seremos esmagados por eles.

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