Edição 320 | 21 Dezembro 2009

A crescente “latinização” da Igreja dos EUA: uma inculturação às avessas

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Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Para Claudio Burgaleta, as altas taxas de natalidade entre os católicos latino-americanos e de ascendência mexicana nos Estados Unidos são uma resposta ao declínio da população católica tradicional do país

A sétima arte já nos mostrou o que seria dos Estados Unidos se todos os mexicanos desaparecessem do mapa por um dia. Pelas tendências atuais, a Igreja Católica norte-americana também sofreria um impacto tremendo se passasse um dia sem seus fiéis hispano-americanos.
Para Claudio M. Burgaleta, jesuíta, professor da Fordham University, em Nova York, o declínio dos números do catolicismo norte-americano, em geral, só não é maior devido às altas taxas de natalidade dos novos imigrantes, principalmente latino-americanos. Segundo ele, o catolicismo norte-americano está ficando “mais moreno”, e, em algumas dioceses, como Los Angeles, Miami e Nova Iorque, os católicos hispano-americanos representam mais da metade da população católica. “A Igreja está se tornando mais uma vez a Igreja dos pobres e dos imigrantes”, afirma. Exemplo disso são as maiores reuniões de católicos nos Estados Unidos, em torno à devoção mariana, uma devoção pouco fomentada entre os católicos norte-americanos de ascendência europeia. A festa de Nossa Senhora de Guadalupe, em Maryville, Illinois, por exemplo, chega a reunir 100 mil pessoas.

Tendo realizado seu doutorado sobre as Reduções Jesuíticas, Burgaleta afirma que uma das grandes contribuições da Companhia de Jesus latino-americana, tanto no passado quanto no presente, é a promoção dos direitos humanos dos ameríndios, dos escravos africanos e, em nossos tempos, dos pobres. “Um dos aspectos mais desafiadores nesse campo atualmente é o de servir de ponte entre o pensamento da Santa Sé e a América Latina. A última Congregação Geral pediu que os jesuítas trabalhassem nesse sentido, contestando uma certa mentalidade teológica que entende o ensino e a pesquisa como uma dialética irreconciliável com o Magistério da Igreja”, diz.

Claudio M. Burgaleta é sacerdote jesuíta, nascido em Cuba, em 1960, tendo-se mudado ainda jovem para Nova Jersey, nos Estados Unidos. Em 1996, doutorou-se pelo Boston College em Teologia Histórica e Sistêmica, onde estudou com o jesuíta Pe. John W. O'Malley. Sua tese abordava a vida e o pensamento do Pe. José de Acosta, S.J. (1540-1600), o chamado “autor intelectual” das Reduções Jesuíticas na América Latina. Sua tese de doutorado foi publicada em 1999 pela Loyola Press, intitulada José de Acosta: His Life and Thought. Além dessa obra, já publicou os livros Manual de la teología para los católicos de hoy (Liguori Publications, 2009), um texto de iniciação à teologia católica que recebeu a distinção de best-seller católico em espanhol da Catholic Book Publishers Association. Atualmente, é professor assistente de teologia e coordenador do Instituto de Estudos Hispano e Latino-Americanos da Escola de Graduação de Religião e Educação Religiosa da Fordham University, em Nova York. Ex-diretor de um instituto de pastoral e espiritualidade para hispano-americanos, criou a página Isidoro, uma fonte de materiais para formação pastoral do público de fala hispânica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a sua avaliação do papado de Bento XVI em seus quase cinco anos? Que futuro a Igreja pode vislumbrar para os próximos anos a partir desse pontificado?

Claudio Burgaleta – O pontificado de Bento XVI tem sido uma grande surpresa para a Igreja. Uma surpresa porque, para muitas pessoas – e eu me incluo entre essas muitas –, a notícia da eleição de Joseph Ratzinger, em 2005, causou a preocupação de que o Sacro Colégio tivesse eleito um homem severo, inflexível e rigidamente ortodoxo. Nós temíamos Ratzinger – o Rottweiler de Deus, como alguns o designavam zombeteiramente antes de sua eleição –, e, para surpresa de muitas pessoas – incluindo a mim mesmo –, nos deparamos com o Bento Pastor Alemão, como um blog pró-Bento o batizou, em tom de brincadeira e admiração, após sua eleição.

Cinco anos mais tarde, sinto-me confiante em escrever que a Igreja foi surpreendida por um avô afetuoso e sábio que também é inovador. Essa presença de avô abençoa a Igreja com seus dons de profundidade intelectual, clareza teológica, uma profunda espiritualidade pessoal e litúrgica e um estilo pastoral sensivelmente afinado. Por exemplo, durante sua visita pastoral aos EUA na primavera de 2008, ele conquistou a imprensa secular com a audiência privada que deu a várias vítimas de abuso sexual por parte de clérigos da Arquidiocese de Boston, o marco zero da crise de abusos sexuais na Igreja dos EUA. Os relatos feitos pelas vítimas que se encontraram com ele convenceram muitas pessoas da mídia de que Bento XVI entendia e tinha empatia com o mal que essas pessoas sofreram nas mãos de sacerdotes pederastas. Sobretudo, foi a descrição feita pelas vítimas a respeito da solicitude pastoral que o Santo Padre demonstrou para com elas durante a reunião que convenceu a muitos na mídia. Foi uma solicitude pastoral caracterizada não tanto por palavras, mas por gestos e olhares compassivos dirigidos às vítimas que comunicaram que ele as apoiava em sua dor.

Outro exemplo do Ratzinger pastoral que não era esperado são suas frequentes sessões de perguntas e respostas com diferentes grupos de clérigos diocesanos e até com crianças que estão se preparando para sua Primeira Comunhão. O Papa tem mostrado sua capacidade de diálogo pastoral. Um dos grandes teólogos pós-conciliares mostrou seu lado prático ao conseguir dar respostas simples que demonstram flexibilidade pastoral.

Muitas pessoas disseram que depois do Servo de Deus João Paulo II, que se caracterizava por sua qualidade de estrela midiática e em que a mídia quase parecia viciada, era imprescindível ter um Santo Padre jovem, fotogênico e capaz de cativar e usar o mundo das imagens para o ministério petrino. Entretanto, Bento XVI, em sua oitava década de vida, tem sido quieto e retraído em comparação com seu predecessor. Ele não é o papa jovem que João Paulo II era quando iniciou seu pontificado. Suas aparições públicas são mais raras, menos espontâneas, mesmo que suas mensagens em geral sejam impecavelmente preparadas. É claro que houve algumas gafes midiáticas, como algumas pessoas chamaram o discurso em Regensburg e as afirmações sobre preservativos feitas na última primavera durante uma coletiva de imprensa a bordo do voo do papa para a África, para mencionar apenas algumas. Seja como for, Bento XVI mostrou que tem sua própria mensagem a comunicar, e um mundo que parece sedento da profundidade espiritual e tranquilidade irradiadas pelo Papa está comparecendo em número recorde para ouvi-la.

Programaticamente, eu destacaria que certas iniciativas que já temos visto terão continuidade no futuro do pontificado de Bento XVI. Além disso, não há dúvida de que veremos algumas iniciativas novas. Em primeiro lugar, ele parece concentrado num ministério de reconciliação e na restauração da unidade com católicos tradicionais que veem o Vaticano II como uma ruptura com a tradição da Igreja e, mais importante ainda, com a Ortodoxia, especialmente a Ortodoxia russa.

Em segundo lugar, como no caso de João Paulo II, Bento XVI está comprometido com a promoção das reformas do Vaticano II. Para João Paulo II, os principais documentos interpretativos do concílio eram Lumen Gentium,  Gaudium et Spes  e Dignitatis Humanae . Estas opções ajudam, em parte, a explicar a ênfase nos direitos humanos e nas encíclicas sociais que caracterizaram o pontificado do papa polonês. O papa bávaro identificou a tríade formada por Lumen Gentium, Sacrosanctum Concilium  e Dei Verbum  como a chave interpretativa para entender o Concílio. Em consonância com suas ligações com o grupo de peritos adeptos do ressourcement [volta às fontes] no concílio, como o cardeal Henri de Lubac,  por exemplo, ele está preocupado com uma hermenêutica da reforma que ressalte a continuidade do ensino conciliar com o que veio antes, especialmente com as formulações dos grandes teólogos da época patrística. Esperem para continuar vendo elementos das três constituições conciliares mencionadas acima, que Bento XVI considera insuficientemente desenvolvidos no ensino pós-conciliar, por exemplo, a eclesiologia da comunhão, uma espiritualidade da palavra de Deus especialmente através da prática monástica da Lectio Divina e uma liturgia mais no estilo de Otto Casel que enfatize a dimensão transcendente dos sagrados mistérios.

Em terceiro lugar, depois do discurso de Regensburg, Bento XVI se tornou o Papa do islã. Viagens bem-sucedidas à Turquia, Jordânia, Israel e Palestina salientaram o interesse de Bento XVI em envolver o islã num diálogo sobre a influência da religião e de suas tradições intelectuais sobre as culturas. Relacionada a seu interesse pelo islã, está sua preocupação com a situação dos cristãos no Oriente Próximo. Ele convocou um sínodo especial em Roma para outubro próximo a fim de traçar estratégias para a situação, assim como convocou um sínodo especial para o continente africano no outono passado.

Em quarto lugar, embora ainda atrasado em comparação com o Patriarca ecumênico quanto à questão da ecoteologia, Bento XVI também mostrou grande interesse pela administração do meio ambiente por parte da humanidade como um imperativo religioso. E em seu próprio floreio de criatividade, ele associou, muitas vezes, o respeito pelo meio ambiente com o respeito pelo que chama de ecologia humana ou o plano de Deus para a pessoa humana a partir do respeito pela vida humana desde a concepção até o túmulo, com um respeito pela família tradicional e pelo casamento heterossexual.

Em quinto lugar, há uma série de nomeações episcopais bem conhecidas que revelam as preferências de Bento XVI por aqueles que exercem a autoridade apostólica com ele no colégio dos bispos. Alguns desses arcebispos – por exemplo, Timothy Dolan, de Nova Iorque, para mencionar meu próprio bispo – são menos combativos do que seus predecessores, mais mestres e comunicadores – mais ou menos como o próprio Bento XVI – do que especialistas em direito canônico e gerentes. Na Cúria Romana, ele parece favorecer aqueles com os quais trabalhou na Congregação para a Doutrina da Fé quando era cardeal prefeito. E, de fato, essa Congregação parece ter sido incumbida da supervisão de uma série de projetos importantes, e não a Secretaria de Estado: por exemplo, com a implementação da Constituição Apostólica que irá facilitar a comunhão plena dos anglicanos que desejam manter algumas de suas tradições.

Para concluir, uma palavra sobre a política externa de Bento XVI. Não há tempo para repassar as muitas iniciativas com as centenas de países que mantêm relações diplomáticas com a Santa Sé, mas algo deveria ser dito sobre a política de Bento XVI para a China. Como no caso de João Paulo II, Bento XVI parece muito interessado em ir ao encontro do governo e da Igreja da China, tanto da Igreja Patriótica quanto da clandestina. A recente nomeação de um arcebispo de Hong Kong mais conciliador indica que ele está seguindo uma abordagem que prioriza os incentivos em relação ao governo, e houve alguns sinais de que o governo está reagindo favoravelmente, ainda que com passos pequenos, como quando permitiu que uma série de bispos da Associação Patriótica buscasse a bênção da Santa Sé antes de sua nomeação oficial. Uma parte importante de sua política para a China é uma preocupação com a reconciliação interna entre os vários membros da Igreja. Isto é, novamente, uma expressão de sua eclesiologia da comunhão. Tanto sua carta à Igreja chinesa quanto uma mensagem recente aos sacerdotes chineses por ocasião do Ano do Sacerdote conclamam os católicos chineses, tanto os clandestinos quanto os da Igreja Patriótica, a superarem, com a graça de Deus, as divisões passadas e a trabalharem em busca da reconciliação mútua.

IHU On-Line – Nos EUA, o ano de 2009 foi marcado pela repercussão dos casos de abuso sexual, o silenciamento do padre mayknoll Roy Bourgeois e do padre jesuíta Roger Haight e a investigação das religiosas. Como o senhor avalia a vida da Igreja nos EUA durante o papado de Bento XVI? Nesse sentido, que outros sinais podem nos ajudar a compreender os rumos da Igreja?

Claudio Burgaleta – É verdade que esses exemplos causaram inquietação na Igreja norte-americana, especialmente em seus setores mais progressistas. Eu também acrescentaria a eleição do presidente Obama com o apoio de muitos eleitores católicos, apesar de muitos bispos terem condenado seu histórico de votos a favor do aborto, bem como a decisão da Universidade de Notre Dame de conceder ao presidente Obama um grau honorífico apesar de o ordinário local e muitos bispos terem condenado a decisão. Entretanto, eu apontaria para alguns outros sinais, mais positivos, que ajudam a dar um quadro mais completo da Igreja nos EUA e de sua relação com o papa Bento XVI.

Em primeiro lugar, como mencionei anteriormente, a visita pastoral dele aos EUA, em 2008, foi bem recebida, e as boas memórias daquele momento de graça, especialmente sua solicitude para com as vítimas de abuso sexual por parte de membros do clero, ajudaram a apresentar o novo Papa para nós e o fizeram continuar presente. A despeito das tensões entre o governo Obama e a Conferência Nacional dos Bispos dos Estados Unidos, a cordial recepção do primeiro presidente afro-americano no Vaticano por parte de Bento XVI e avaliações comedidas de uma série de suas políticas por parte de prelados de alta posição na Santa Sé ajudaram a diminuir uma visão unívoca da relação da Igreja Católica com o governo Obama e com o presidente e sua família em particular.

IHU On-Line – Ainda nesse sentido, o senhor defende que está ocorrendo uma espécie de “latinização” da Igreja Católica nos EUA com a forte presença de hispano-americanos no país. O que significa essa “inculturação às avessas” para a Igreja local? Que desafios apresenta?

Claudio Burgaleta – Um fator muito importante na vida da Igreja norte-americana é a crescente diversidade dos católicos que não são descendentes de europeus. Especialmente os católicos latino-americanos, e de ascendência mexicana em particular, dão conta da ausência de um declínio da população católica nos Estados Unidos. Também se devem mencionar números crescentes de católicos asiáticos provenientes das Filipinas, do Vietnã e da Coreia. A ausência de declínio na participação demográfica do catolicismo norte-americano não se deve primordialmente à imigração, mas sim às altas taxas de natalidade desses novos imigrantes. O catolicismo norte-americano está ficando mais moreno, e, em algumas dioceses, como Los Angeles, Miami e Nova Iorque, os católicos hispano-americanos representam a metade ou mais da metade da população católica. Ela está se tornando, mais uma vez, a Igreja dos pobres e imigrantes, como foi da década de 1830 até a de 1950, quando os católicos norte-americanos de descendência europeia se incorporaram mais à corrente principal da sociedade e da cultura dos EUA, caracterizadas pela ascensão econômica para a classe média.

Isso implica numerosos desafios e oportunidades para o catolicismo. Entre os desafios, eu destacaria a forma de lidar com essa crescente população hispano-americana com menos sacerdotes e até com menos sacerdotes hispano-americanos. Alguns estão sendo trazidos da América Latina para atender imigrantes desses países, mas isso tem causado alguns problemas na medida em que sacerdotes de diferentes países latino-americanos são solicitados a exercer o ministério entre hispano-americanos nascidos nos EUA, ou imigrantes hispano-americanos provenientes de países diferentes de seu país de origem, com os quais eles não estão familiarizados. A desconcertante diversidade de agentes pastorais também torna difícil desenvolver e promover uma pastoral de conjunto coerente e eficiente em muitas dioceses.

Um incremento fabuloso para o catolicismo americano é o entusiasmo da juventude e da espiritualidade carismática que caracterizam muitos católicos hispano-americanos. Outra grande dádiva é uma tradição de mais de meio milênio de um catolicismo que uniu a fé e a cultura e tornou a fé presente no âmbito público e, mais importante ainda, no cotidiano. Isso é uma diferença em relação ao catolicismo norte-americano que se centrava nas paróquias, de certa forma, privatizado e dominado pela religião cívica e pela cultura protestante e puritana dos EUA até muito recentemente.

Talvez o mais evidente exemplo disso sejam as várias expressões públicas de piedade mariana e católica por parte de católicos hispano-americanos e asiáticos que se veem cada vez mais nos Estados Unidos. Por exemplo, as maiores reuniões de católicos romanos nos Estados Unidos têm a ver com a devoção mariana: a festa de Nossa Senhora de Guadalupe em Maryville, Illinois, ao lado de Chicago, onde mais de 100 mil pessoas se reúnem anualmente, e os Dias Marianos, num santuário mariano vietnamita em Carthage, Missouri, perto de St. Louis, onde mais de 50 mil pessoas de todas as partes do país se juntam para passar vários dias dedicados à celebração litúrgica e à renovação espiritual.

Independentemente dessa tendência demográfica, outro fator que causa inquietação é o número crescente de católicos batizados que se identificam como sem filiação, não como ateus ou agnósticos, mas como homens e mulheres espirituais, abertos à possibilidade de serem convencidos de uma identidade católica mais robusta, mas sem compromisso com a Igreja institucional no momento. Esse fenômeno também se faz presente entre hispano-americanos mais jovens e com maior grau de instrução, mais bem remunerados e nascidos nos Estados Unidos. O desafio da formação na fé e da promoção da identidade católica é provavelmente o maior desafio do catolicismo norte-americano.

Várias dioceses, não apenas no norte do país, mais envelhecido, mas também, por exemplo, na Arquidiocese de Miami, tiveram de reestruturar e fechar uma série de paróquias e escolas. Os bispos americanos também estão preocupados com o declínio de vocações sacerdotais, especialmente entre os novos imigrantes hispano-americanos. E embora sacerdotes hispano-americanos estejam sendo ordenados a uma taxa bem menor do que sacerdotes anglo-americanos, a proporção de sacerdotes para leigos nos Estados Unidos é altamente favorável em comparação com o Brasil e outras partes do mundo católico.

IHU On-Line – Na República Tcheca, em setembro deste ano, Bento XVI manifestou-se abertamente contra o secularismo, especialmente europeu. Essa também é uma preocupação para a Igreja da América Latina ou é um fenômeno restrito ao Primeiro Mundo? Como enfrentá-lo?

Claudio Burgaleta – Não penso que o papa Bento XVI tenha uma compreensão monolítica de secularismo. É verdade que antes de se tornar o sucessor de Pedro e desde essa época ele tem falado contra um certo tipo de secularismo, muitas vezes, associado com certos países europeus, onde a religião é considerada um assunto exclusivamente privado e é de fato proibida de se expressar em termos culturais ou éticos no âmbito público. Com isso, está relacionada a preocupação de Bento XVI, já expressa por João Paulo II, de que a Europa não pode se entender à parte de sua herança e identidade cristã. Entretanto, Bento XVI reconhece que há outra forma de secularismo que não é tão hostil para com a religião e pode de fato ser um amigo e aliado da fé. Por exemplo, durante sua visita pastoral aos Estados Unidos, ele falou em tom de aprovação e com eloquência sobre a separação da Igreja e do Estado no país que criou um lar robusto para todas as espécies de tradições de fé, incluindo um importante papel ético no âmbito público.

O secularismo é um fenômeno disseminado e uma característica tanto dos modelos econômicos neoliberais quanto da globalização. Ele não se limita ao mundo desenvolvido, mas encontrou um lar tanto entre as elites quanto entre as classes mais populares, especialmente os jovens, no mundo em desenvolvimento. Por isso, ele é uma questão que uma comunidade universal de pessoas de fé tem de procurar abordar de maneira criativa e colaborativa, na medida em que certas características comuns do fenômeno do secularismo se replicam em muitas culturas diferentes. Ao mesmo tempo, uma abordagem indiferenciada do secularismo não seria prudente, tendo em vista suas variações regionais. Bento XVI compreendeu isso e talhou sua mensagem sobre o assunto a essa variedade, bem como a seus aspectos comuns.

IHU On-Line – Em sua opinião, como Bento XVI responde ao suposto desnorteamento da Igreja, tanto em nível teológico quanto litúrgico? A partir de qual “paradigma” é encarada a relação da Igreja com a cultura e a sociedade de hoje?

Claudio Burgaleta – No início do pontificado de Bento XVI, a mídia estava cheia de matérias sobre o Bento agostiniano, cuja concepção de Igreja e de sua relação com a sociedade refletia a de Santo Agostinho, o teólogo favorito de Bento XVI. Muitas pessoas achavam que o Papa tentaria implementar comentários que tinha feito quando era cardeal, em que falou da Igreja do futuro como uma comunidade pequena e comprometida em meio a uma sociedade depravada e secularizada. Essa Igreja ou esse cristianismo seria mais contracultural, separado da sociedade contemporânea, do que o tipo de casamento entre a Igreja e a sociedade que se encontra na Europa meridional e em grande parte da América Latina e nas Filipinas. Um modelo para essa visão mais agostiniana da Igreja seriam muitas das pequenas comunidades comprometidas associadas com os novos movimentos eclesiais, especialmente a predileta de Bento XVI, Comunhão e Libertação.

Entretanto, desde que se tornou papa, Bento XVI tem feito declarações que parecem inverter sua anterior posição agostiniana sobre essa questão. Ele acentuou a importância de não se privar as crianças do sacramento do batismo pelo fato de seus pais não serem católicos praticantes. Em geral, ele tem parecido se sentir mais à vontade com uma concepção de Igreja que acolhe os mornos ao mesmo tempo em que procura fomentar o que ele chama de fé madura nas pessoas crentes. Com “fé madura”, ele se refere a cristãos que tenham clareza a respeito de sua identidade religiosa e se sintam suficientemente seguros nela para tomar posições contraculturais públicas no fórum público acerca de questões de política social. E, como Papa, Bento XVI deu continuidade à iniciativa de João Paulo II de se encontrar com representantes dos novos movimentos eclesiais em Pentecostes. Central para a visão de Igreja de Bento XVI é a noção de comunhão em todas as ricas e variadas nuances, especialmente como comunidade de credo e oração a serviço de Deus e do próximo, seguindo o exemplo do Mestre. Esses temas são desenvolvidos em seu discurso na conferência de Aparecida e em outros lugares.

IHU On-Line – Na América Latina, a luta social e a defesa dos direitos fazem parte da formação da própria Igreja. Exemplo disso são as grandes missões jesuítas espalhadas pela região. A partir dessa história de fé e de lutas históricas, como podemos nos posicionar diante do futuro?

Claudio Burgaleta – Penso que não cabe a mim dizer como os latino-americanos devem ler sua rica história de fé com vistas ao futuro. Embora sendo beneficiário desse legado por ter nascido em Cuba, estou profundamente consciente de que, apesar do fato de os Estados Unidos serem o quarto maior país hispano-americano do mundo, nosso contexto é muito diferente, e eu respeito essa realidade.

Seja como for, sou um jesuíta de origem cubana e historiador da Igreja, e, a partir dessas perspectivas, ofereço as seguintes observações sobre o legado latino-americano da Companhia de Jesus e a maneira como ele poderia moldar o serviço de fé e promoção de justiça da Companhia no futuro. Influências importantes em meu pensamento foram minhas visitas pastorais a Cuba, meu próprio estudo do autor intelectual das Reduções Jesuíticas, José de Acosta, S.J.  (1540-1600), bem como a obra dos historiadores jesuítas John W. O’Malley, S.J. e Jeffrey Klaiber, S.J. Klaiber tem dedicado sua vida ao ensino de história e à pesquisa histórica no Peru. Sua obra recentemente publicada sobre a história da Companhia é muito útil para pensar sobre a pergunta que você coloca aqui.

Concordo que uma das grandes contribuições da Companhia de Jesus latino-americana, tanto no passado quanto no presente, é a promoção dos direitos humanos dos ameríndios, dos escravos africanos e, em nossos tempos, dos pobres. Essa herança é bem conhecida e admirada no mundo todo como uma contribuição da Teologia da Libertação,  em que diversos jesuítas desempenharam e desempenham um papel notável. Tendo observado isso, devo dizer que o compromisso da Companhia com essa forma de servir a fé é muito antiga e tem suas raízes no período colonial.

Penso que é uma boa ideia ter essa perspectiva mais ampla e reconhecer que nosso compromisso com os marginalizados teve manifestações diversificadas e criativas. Ele não deveria ser reduzido à contribuição importante da Teologia da Libertação. No tocante a essa teologia, penso que sua contribuição para uma espiritualidade da libertação para os pobres e proveniente dos pobres que os entende como anawim e sacramentos de Deus no espírito de Mt 25,25ss e em toda a sua complexidade, profundidade e riqueza continua sendo, para mim pessoalmente, muito sugestiva e desafiadora.

Em relação a essa contribuição profética e acadêmica, não deveríamos nos esquecer do que é mais propriamente nosso como jesuítas, nossa espiritualidade inaciana, e de como os jesuítas latino-americanos a promoveram e desenvolveram de formas novas e inovadoras no passado, de modo que ela pudesse alcançar tanto os setores populares quanto as elites da sociedade e não permanecer dentro dos muros dos noviciados e casas de estudo jesuíticas. A obra de Elizondo, Antoncich, Magaña, Rey de Castro, Llorente, Javier, Huarte, Cabarrús e González Buelta não deveria ser esquecida e deveria servir de ímpeto para dar continuidade ao que foi realizado e buscar formas novas e criativas de compartilhar nossa pérola de grande valor, especialmente com nossos parceiros leigos no ministério.

Creio que outra contribuição da Companhia de Jesus latino-americana foi tentar entender o “Novo Mundo” a partir de uma perspectiva teológica. Acosta foi o primeiro a dar início a essa obra, sendo seguido por Sandoval, Alegre, Vieira, Clavijero, Viscardo, Landívar, Méndez Medina, Vives Solar, Hurtado, Albó, Falla, Marzal, Azevedo, para mencionar apenas alguns poucos autores jesuítas que deram contribuições importantes para esse empreendimento. Relacionados à teologia também estavam o estudo e a promoção de uma identidade latino-americana ou identidade crioula. Essa obra teológica e cultural é nossa, e a Igreja, através da Santa Sé, continua pedindo que nos envolvamos nela. Talvez um dos aspectos mais desafiadores nesse campo atualmente seja servir de ponte entre o pensamento da Santa Sé e a América Latina. Esta é uma tarefa em que a última Congregação Geral pediu que os jesuítas trabalhassem e que contesta uma certa mentalidade teológica que entende o ensino e a pesquisa como uma dialética irreconciliável com o Magistério da Igreja, para que possam ser fiéis à dimensão profética do evangelho.

Por fim, gostaria de mencionar nossa contribuição na área da educação, que talvez seja o que mais nos tornou conhecidos na América Latina e no mundo todo. Desde o início da presença da Companhia no “Novo Mundo”, abrimos colégios e depois universidades para formar homens cristãos e depois mulheres cristãs competentes que contribuíssem para o bem comum da sociedade. Sabemos, a partir da obra de John O’Malley, que nossa incursão na educação transformou a Companhia – e alguns diriam que a deformou – de um grupo de sacerdotes itinerantes e bem instruídos engajados no ministério da palavra e dos sacramentos num corpo apostólico que viria a ficar profundamente entrelaçado com o melhor e o pior da cultura europeia. Esse ministério para com a cultura continua sendo uma prioridade da Companhia que atualmente se expressa com a evangelização das culturas através de vários tipos de diálogo sobre a boa nova e de proclamação dela. Talvez seria bom que os jesuítas latino-americanos se perguntassem como as várias culturas da América Latina estão nos mudando para melhor e para pior atualmente.

Muitos jesuítas do período colonial se destacaram por seu amor às culturas ameríndias que tão profundamente queriam evangelizar. Eles aprenderam as línguas e tradições dessas culturas e contribuíram para preservá-las por meio de sua pesquisa e de seus escritos sobre elas. Parece-me que esse espírito douto de evangelização deveria ser preservado. Talvez um dos campos em que ele pode ser desenvolvido seja entre os milhares de imigrantes latino-americanos que agora vivem no hemisfério norte em busca de uma vida melhor. Como os jesuítas latino-americanos poderiam acompanhá-los e avaliar amorosamente a transformação de sua identidade cultural que está ocorrendo entre eles e seus filhos nesses países do Norte?

Como bons filhos do eclético Santo Inácio, que pouco hesitava em fazer uso das boas ideias e abordagens de outros se fosse em prol do magis, os membros da Companhia têm feito experimentos com diferentes modelos educacionais. A América Latina se destacou na época da colônia com as “escolas de caciques” e, mais tarde, na segunda metade do século XX, com suas iniciativas populares nas escolas Fé e Alegria. Não podemos abandonar a área da educação, que ainda é uma prioridade da Companhia, por causa do bem maior que sempre produziu. Mas temos de nos perguntar a respeito das formas criativas pelas quais nossa geração continuará exercendo esse ministério. Que novas adaptações são necessárias hoje em dia? Está claro que a parceria com os leigos e a formação online só vão aumentar no futuro e exigir formas novas e criativas de se envolver no ministério educacional que está tão identificado com a Companhia de Jesus.

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