Edição 320 | 21 Dezembro 2009

A Igreja e os secularismos. Campo para o profetismo

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Patricia Fachin e Moisés Sbardelotto

Bento XVI, ao ser eleito papa, “incrementou uma compreensão de Igreja de minoria consciente, fiel e comprometida com a doutrina de fé e com práticas eclesiais nos campos da disciplina e da moral”, assinala o teólogo João Batista Libânio

Essa perspectiva, acentua o teólogo João Batista Libânio, direciona a Igreja para uma minoria de fiéis que assumem “consciente, livre e comprometidamente os deveres católicos nos diversos níveis: doutrinal, litúrgico, disciplinar, canônico, moral”. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, Libânio frisa que Roma pensa o mundo a partir do seu centro e sair desta perspectiva lhe custaria esforço de inculturação. “Como fazê-lo se não por meio de uma Igreja cada vez mais plural em que experiências regionais se façam em liberdade e convivam com outras formas ocidentais?”, questiona. Segundo ele, “uma Igreja em rede levaria Roma a pensar diferentemente seu papel de ‘presidir a Igreja na caridade’”.

João Batista Libânio é mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de diversos livros, entre os quais citamos Teologia da revelação a partir da Modernidade (5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), Qual o caminho entre o crer e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e Qual o futuro do Cristianismo (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que perspectivas o pontificado de Bento XVI abre para o futuro da Igreja no século XXI?

João Batista Libânio - Ao eleger um Papa já idoso e intimamente ligado a João Paulo II, os cardeais sinalizaram o desejo de continuidade da linha teológica e pastoral vigente. Não se desejava, naquele momento, nenhuma mudança fundamental nela. Julgava-se que a marca do pontificado anterior carecia ainda de mais tempo para firmar-se. E, nesse sentido, os fatos confirmam tal expectativa.

No entanto, as características de personalidade influenciam na configuração do pontificado. Bento XVI não prosseguiu a maratona de viagens e a exposição midiática de João Paulo II. Optou por presença discreta e de cunho intelectual no grande mundo com menos viagens e menor acesso aos principais canais de comunicação. Com isso, incrementou uma compreensão de Igreja de minoria consciente, fiel e comprometida com a doutrina de fé e com práticas eclesiais nos campos da disciplina e da moral. A preocupação se desloca da busca de atrair para a Igreja grandes massas para o cultivo aprofundado dos que nela estão.

Abriram-se as portas para aqueles que estavam fora, não por força da secularização ou de práticas humanistas, mas por quererem maior rigor na prática litúrgica – lefebvrianos afeitos à celebração do rito renovado de Pio V – e nas atitudes morais e sacramentais – anglicanos que não aceitaram as ordenações de mulheres e certa liberação no campo da sexualidade de ministros ordenados. 

Há esforço pelo cumprimento das normas da disciplina litúrgica, eclesiástica e da moral, além de rejeição de todo relativismo. Aqui se toca ponto fundamental do atual pontificado. Já na homilia, antes da eleição do Papa, o cardeal Ratzinger mostrou profunda preocupação com o relativismo. E este continua sendo grande adversário a ser combatido por corroer o núcleo do dogma.

No nível do ecumenismo, houve esforços de aproximação com as igrejas oriundas da Reforma, apesar de certos percalços advindos do documento do Pontificado anterior, mas de autoria do Card. Ratzinger: Dominus Jesus. No campo do diálogo inter-religioso, aconteceram hesitações. Momentos de proximidade, de amizade com rabinos, de visitas a países islâmicos, mas discursos que produziram mal-estar nessas mesmas relações.

As encíclicas se distanciaram do clássico estilo pontifício para assumirem o caráter de profundas reflexões teológicas. Permitem maior espaço para discussões nesse campo. A experiência de publicar um livro de cristologia, entregue ao debate teológico, mostra a relevância da teologia nesse pontificado e também certa abertura à discussão. Entretanto, continuam as punições de teólogos em nome da vigilância da sã doutrina.

IHU On-Line – A Igreja já foi alvo de diversas “polêmicas” como a revogação da excomunhão dos lefebvrianos e as investigações sobre religiosas nos EUA. Como avalia a condução da Igreja em relação a essas discussões e que modelo de Igreja irá se construir a partir disso?

João Batista Libânio - Estes fatos que você menciona confirmam o que vinha dizendo da linha central do pontificado de Bento XVI. Ele mostra abertura para aqueles que se afastaram em nome de maior rigor doutrinal e litúrgico, como os lefebvrianos. O papa julgou que a situação já estaria madura para superar as sensibilidades criadas no pós-Concílio. E já tinha manifestado antes que uma liturgia que se vivera durante séculos, como a de Pio V, não poderia ser motivo de separação e que se deveria ter compreensão em relação a ela, mesmo que disciplinarmente fora proibida. Estava aberta a porta de volta. Com isso, sem dúvida, relativizou-se a força da reforma litúrgica do Vaticano II, permitindo o ritual anterior a ele. Esperemos que isso não signifique um retrocesso de todo o processo litúrgico, mas se continue a avançar na linha do Concílio. Entendam-se, então, essas intervenções pontifícias, simplesmente como uma concessão reconciliatória com um grupo conservador reduzido e de maior incidência na França e em outros países europeus. Imagino que, no Brasil, uma liturgia na língua latina não terá repercussão popular. No máximo satisfará a grupos mínimos em via de extinção.

Caritas in veritate

A retomada da Doutrina Social da Igreja com a Encíclica Caritas in veritate é outro ponto importante. Enquanto se trata de um recordar a Encíclica Populorum progressio de Paulo VI, nada implica de retrocesso. No entanto, a insistência, logo no início da Encíclica, na verdade no sentido de iluminadora da caridade, se não bem entendida, permite o reforço de posições conservadoras doutrinalistas. O risco consiste em sobrepor a verdade doutrinal e ortodoxa à caridade em vez de julgar a verdade a partir da caridade, como Jesus o fez em vários momentos no confronto com os fariseus.  Evidentemente, o Papa não vai nessa direção. O perigo vem de correntes conservadoras lançarem mão da supervalorização da verdade objetiva, da doutrina a ponto de engessar a prática cristã. A encíclica teme que a verdade na sua objetividade universal seja sacrificada em nome de práticas que apelem para a caridade ou justiça social. Tal posição não flui sem perigos de conservadorismos.

Já aludi acima à questão dos anglicanos. Situa-se na mesma perspectiva de a Igreja oferecer abrigo a quem a ela quiser voltar e se aproxima de posições que ela oficialmente defende, como no caso da rejeição da ordenação das mulheres e de certos comportamentos sexuais. Tal proximidade permitiu que Roma a julgasse mais importante a outros inconvenientes ecumênicos. Daí a perplexidade que tal posição causou.  

IHU On-Line – Em sua opinião, quais deveriam ser os principais focos de atenção para a Igreja em sua relação com o mundo e a sociedade contemporânea na próxima década?

João Batista Libânio - Já se conhecem bem os maiores desafios da atualidade. No nível econômico, fica a questão até onde a Igreja tem condições de colaborar na gestação de uma economia solidária em resposta ao desvairado neoliberalismo financeiro. A crise do ano passado deu sinal da gravidade da crise, mas não suficiente para que o sistema pense transformações profundas. Aí existe campo para o profetismo da Igreja.

No campo político, evidencia-se a falência da democracia representativa, minada por corrupção, falta de credibilidade e conivência com um sistema econômico perverso. A novidade caminha na linha já ensaiada no Fórum Social Mundial de um sistema participativo popular. E a Igreja, com ampla experiência junto ao povo, de modo especial, com as CEBs e pastorais sociais, possui excelente contribuição a oferecer.

No campo cultural religioso, a tradição eclesial, nascida da prática e pessoa de Jesus, no sentido da opção pelos pobres, da valorização da dignidade humana dos marginalizados, da reconciliação e perdão, da sobriedade, da sensibilidade ecológica diante da obra criadora de Deus, enfim, de tantos outros elementos de sua fé, detém enorme riqueza simbólica para gestar novo paradigma de existência.

IHU On-Line – O secularismo é também uma preocupação latino-americana para a Igreja ou é um fenômeno restrito à Europa?

João Batista Libânio - O termo secularismo sofre de enorme ambiguidade semântica. Num primeiro sentido, ele significa o término extremo da secularização. E esta se define pela perda da localização do Sagrado e de sua força institucional. Esse processo chegou a ser acolhido auspiciosamente por cristãos, como o teólogo alemão Gogarten . Libertou o cristianismo de ganga impura de elementos religiosos herdados do paganismo. Foi saudado como vitória da fé bíblico-cristã desde as origens bíblicas da criação até a figura de Jesus como dessacralização do mundo, fazendo-o tarefa do ser humano com sua inteligência, vontade e liberdade.

Outros viram nela o início do secularismo ateu e, sobretudo, por influência do marxismo que transformou o ser humano no Prometeu divino, de criador da sociedade perfeita pelo socialismo. Talvez tal leitura subjaza à crítica do Papa num país que fez parte do bloco socialista. A teologia da libertação, por sua vez, propôs-se como programa precisamente para mostrar que o processo de secularização no campo social se casa perfeitamente com a prática cristã. Purifica-a de alianças espúrias com poderes opressores.

Há um outro secularismo que solapa em profundidade a fé cristã, mas que não assume nenhuma forma de luta política. A sociedade capitalista avançada neoliberal propugna uma sociedade de consumismo e de materialismo, que não impede por coação externa nenhuma prática religiosa, antes incentiva as que a favorecem. No entanto, na terrível força corrosiva do consumismo e materialismo até levando aos países tradicionalmente cristãos a um secularismo materialista. Já não mais dialético, e sim neoliberal. Esse se mostra o pior secularismo.

IHU On-Line – Em uma perspectiva geral, Roma está realmente aberta aos problemas mundiais ou ainda mantém uma mentalidade europeia, mesmo ao lidar com aqueles?

João Batista Libânio - Naturalmente Roma, enquanto sediada na Europa, e nascida, criada e alimentada pela cultura ocidental, pensa o mundo a partir dela. Considerou-se como centro de cultura e irradiação colonizadora. Portanto, para sair dessa perspectiva, custa-lhe enorme esforço de inculturação. Como fazê-lo se não por meio de uma Igreja cada vez mais plural em que experiências regionais se façam em liberdade e convivam com outras formas ocidentais? Por aí se anuncia o futuro, sobretudo, se o capitalismo entrar em colapso e for substituído por formas econômicas múltiplas, ligadas em rede. Assim também uma Igreja em rede levaria Roma a pensar diferentemente seu papel de “presidir a Igreja na caridade”.
 
IHU On-Line – Outra questão que merece atenção é a relação da Igreja com o feminino, especialmente no que se refere ao papel das religiosas dentro das estruturas da Igreja. Reconhecendo que a ordenação de mulheres ao sacerdócio parece ser algo ainda distante no horizonte da Igreja, como as mulheres – religiosas ou leigas – podem assumir um papel de maior relevância no contexto eclesial dos próximos anos?

João Batista Libânio - O cristianismo situa-se na tradição semita com fortes traços machistas. Inegável. A cultura ocidental marcou-se por tal tradição. Conhecemos outras culturas matriarcais. Não se trata de nosso caso. Portanto, antes de tudo, encontramo-nos diante de um fator cultural de longuíssima vigência.

No entanto, a cultura ocidental machista desencadeou outro processo que lhe ajudou a perceber esse traço. A modernidade produziu, em dois níveis, profundo choque com o machismo ocidental.

No plano material, a economia precisou cada vez mais da mão-de-obra da mulher, já não na simples expressão rural dependente, mas de uma forma independente do marido. Ao tornar-se operária e autônoma no mundo do trabalho, tomou consciência da própria dignidade, valor, capacidade de ação. Estava posto um ingrediente de independência que ninguém deterá.

Além disso, a modernidade propiciou o surgimento da subjetividade. Fenômeno amplo. A mulher, ao apropriar-se dele, descobriu como tinha sido tratada muitas vezes como objeto e não sujeito. Inseriu-se no processo de conscientização que gestou os movimentos de libertação. E a Igreja tinha sido um reduto em que a situação de dependência e até inferioridade da mulher contrasta fortemente com sua crescente consciência de autonomia e liberdade. Estamos apenas no início desse movimento de valorização da mulher. Embora o discurso eclesiástico já soe aberto ao papel da mulher na Igreja, a prática ainda resiste, presa aos preconceitos e elementos da tradição.

Resulta difícil para o magistério distinguir o tributo que a linguagem bíblica pagou ao machismo semita e o que realmente significa a vontade expressa de Jesus. Até o momento, são vedadas à mulher certas funções na Igreja em nome duma tradição vinculante, oriunda de Jesus. Questão, no momento, fechada, mas que, teologicamente, poderá, mais tarde, avançar, caso consigam melhores esclarecimentos exegéticos.

Dois pontos parecem cruciais no papel da mulher na Igreja: sua participação no ministério ordenado e um papel no poder decisório nas diferentes instâncias eclesiásticas em nível de igualdade com os homens. Nem o diaconato feminino, que já houve na Igreja, conseguiu ir avante.  E sua presença no poder decisório apenas acontece em conselhos de menor relevância e em função da benevolência de certos membros do clero, mas não em virtude do batismo. A teologia do batismo tem muito que avançar.

IHU On-Line – O conceito de “minoria criativa” também saiu dos lábios do Papa ao se referir à Igreja com relação ao seu futuro. Qual a sua opinião sobre essa perspectiva de Igreja na sociedade contemporânea?

João Batista Libânio - A perspectiva teológica alemã valoriza principalmente a seriedade nos compromissos. Não conhece o jeitinho brasileiro, nem certa condescendência de uma prática frouxa. Portanto, minoria criativa soa uma Igreja em que os fiéis assumam consciente, livre e comprometidamente os deveres católicos nos diversos níveis: doutrinal, litúrgico, disciplinar, canônico, moral. Ora, assumir o “pacote” completo do ensinamento do magistério não combina com uma Igreja de massa, de pessoas que cumprem somente parte dos requisitos considerados fundamentais para a plena vivência eclesial. Essa minoria aguerrida garantirá a continuidade da Igreja, sem preocupar-se com angariar publicitariamente membros para ela. Desconfia daqueles fiéis que, imbuídos da mentalidade pós-moderna, selecionam os elementos de uma religião ou Igreja para satisfazer-lhes a sensibilidade, a afetividade e as disposições do momento. Essa “minoria criativa” reage contra tal atitude. Prefere a alternativa: ou tudo ou nada em oposição radical ao anything goes –tudo vale do  momento presente. No entanto, outros preferem uma participação na Igreja diversificada em grau desde a fidelidade completa até incursões esporádicas. Optam por maior tolerância, ao acreditar que vale melhor pouco do que nada. Duas visões que têm argumentos pesados para seu lado.

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Libânio à IHU On-Line.

• “A morte não deve ser o critério de leitura dos acontecimentos”. Publicada em 10-4-2009;

• “A Teologia não se dá mal com o discurso não metafísico, por isso ela pode falar muito bem na pós-modernidade”. Entrevista publicada no dia 16-8-2008;

• A greve de fome de Dom Cappio: um ato de nítido alcance político. Entrevista publicada em 15-1-2008;

• “Aparecida significou quase uma surpresa”. Entrevista publicada em 17-6-2007;

• Mais que Teologia, trata-se de uma Igreja da Libertação. Entrevista publicada na IHU On-Line número 214, de 02-04-2007.

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