Edição 319 | 14 Dezembro 2009

Um diálogo entre religião, educação e pós-modernidade

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin

Na opinião do teólogo Marcos Sandrini, modernidade e religiosidade não conseguiram dialogar

“Hoje há muita religiosidade e um decréscimo da religião”, diz Marcos Sandrini, teólogo e docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, à IHU On-Line. Para ele, a explicação desse fenômeno encontra suas raízes na Idade Média, onde havia um forte fundamento religioso, e na Idade Moderna, onde tem um forte fundamento racional. Ambas, argumenta, apresentam um fundamento forte. Já a nova época, diz, denominada por alguns como pós-modernidade, “não propõe uma troca de fundamento, mas a ausência de fundamentação”. Embasado em Vattimo, ele acentua que nós caminhamos para uma época de pensamento fraco. E explica: “Pensamento fraco não é ausência de pensamento, mas admissão de diversas formas de pensamento. Não há mais o fundamento, mas fundamentos”. Nessa nova perspectiva, menciona, as religiões perdem força e são rejeitadas, pois “se estruturam em cima do pensamento forte”.

Marcos Sandrini é graduado em Letras e Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia Ciências e Letras, em São Paulo, e em Teologia pela Università Pontifícia Salesiana, em Roma. Na mesma instituição, cursou o mestrado em Teologia Pastoral e doutorou-se em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com a tese Religiosidade e Educação no contexto da Pós-modernidade (Petrópolis: Vozes, 2009). Hoje é diretor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que acha importante essa interface entre educação e religiosidade? Quais são os pontos ou espaços de aproximação e quais espaços deveriam ser mais respeitados ou demarcados?

Marcos Sandrini - Minha intenção foi fazer um diálogo entre três grandes realidades: educação, religiosidade e pós-modernidade. A experiência que temos é que a modernidade não conseguiu fazer um diálogo com a religiosidade e vice-versa. A modernidade desembocou nos grandes mestres da suspeita, e a religião, sobretudo a católica, desembocou no Syllabus de Pio IX.  O tempo dos anátemas mútuos precisa acabar. Ou dialogamos ou, então, caímos em radicalismos. A educação, hoje, não consegue mais ser uma doutrinação pura e simples, como queria Kant  e Durkheim.  O contexto pluralista que vislumbramos nos leva a educar para e na pluralidade.

IHU On-Line - De que forma a pós-modernidade tende a pensar o religioso?

Marcos Sandrini – Primeiramente, é preciso que façamos algumas diferenciações fundamentais. Para isto, me vali muito de Paul Tillich.  Há quatro conceitos fundamentais: religiosidade, religião, religiões, fé. Por religiosidade entendemos a radicalidade, a profundidade. Onde minha vida se enraíza. Nesse sentido, o grande inimigo da religiosidade é a superficialidade. Poderíamos dizer que a religiosidade é o instituinte. Já a religião é o instituído. É a vivência comunitária da religiosidade. Nesse sentido, pode-se dizer que hoje há muita religiosidade e um decréscimo da religião. As religiões são as diversas formas como a religiosidade se apresenta com seus dogmas, sua moral, suas leis, costumes. Fé envolve revelação uma vez que é a procura do divino em relação ao humano.

A Idade Média tem forte fundamento religioso. A Idade Moderna tem um forte fundamento racional. Ambas têm em comum o fato de apresentarem um fundamento ou, se quisermos, um pensamento forte. Já a nova época sem nome (muitos a chamam de pós-modernidade) não propõe uma troca de fundamento, mas a ausência de fundamento. Diria Vattimo  que caminhamos para uma época de pensamento fraco. Pensamento fraco não é ausência de pensamento, mas admissão de diversas formas de pensamento. Não há mais o fundamento, mas fundamentos.

Como as religiões se estruturaram em cima do pensamento forte, em princípio, há uma forte rejeição a elas. Acredito, porém, que o diálogo religioso com a modernidade e vice-versa deverá ser sobre este ponto. O pensamento forte leva ao fundamentalismo, e o pensamento fraco ao relativismo. Ambos são deletérios para a convivência. Uma coisa é o fundamento, e outra o fundamentalismo, bem como o relativismo e o relativo. Posso ser relativo sem ser relativista. Posso ter fundamento sem ser fundamentalista.

IHU On-Line - Quais os pontos de encontro entre religiosidade e pós-modernidade? Como essa relação pode contribuir para o diálogo eficaz entre ambas, tendo em vista a educação das novas gerações?

Marcos Sandrini - O grande ponto de encontro entre religiosidade e pós-modernidade é o respeito pelo outro. O outro existe. Tanto existe que tenho pensamento fraco diante dele. Ele não pode ser absorvido por mim e, muito menos, ser eliminado por mim. Agora, o outro tem rosto. Eu tenho de admitir que ele tem pensamento e fundamento diferente do meu, mas também tenho que admitir que o primeiro que aparece é seu direito de viver, de existir. As marginalizações, as exclusões, não condizem com a pós-modernidade. Fome, doença, opressão, exploração não condizem com a existência do outro. Aqui as religiões e a educação se encontram para o diálogo profundo com a pós-modernidade.

Na escola, por exemplo, temos crianças e adolescentes que provêm de famílias com constituições diversas, religiões diferentes, filosofias de vida distintas. A missão do educador não é nivelar tudo, mas propor o diálogo e o respeito às diferenças. As religiões também. A Igreja Católica é católica não porque vai se impor a todos, mas porque é capaz de acolher a todos, de respeitar e compreender a todos, de lutar contra os radicalismos e imperialismos de todos os tipos.
 
IHU On-Line - Nas escolas, existe uma discussão em torno do ensino religioso, mas, na universidade, quais são os espaços onde acontecem de forma crítica e celebrativa a interface da educação e da religiosidade?

Marcos Sandrini - Não é possível excluir a dimensão religiosa da vida, de fato, na realidade. O povo brasileiro, por exemplo, é muito religioso, mesmo os que não têm religião. Como é possível esquecer e excluir isto? No jogo interdisciplinar, a dimensão religiosa está presente. No Rio Grande do Sul, há espaços de reflexão tanto nas Universidades públicas quanto confessionais sobre a espiritualidade. Este é o grande espaço da interface entre religiosidade e educação. Dois extremos devem ser evitados: o fideismo e o racionalismo. Não se pode ser contra a fé, mas ela não pode ser colocada num trono de absolutismo, o mesmo se diga da razão. O que faz mal não é a religiosidade, mas o seu excesso. A unidimensionalidade sempre foi e é deletéria. A Idade Média matou, torturou, perseguiu. A Idade Moderna também fez isto e com muita eficácia. Lembremo-nos que a Idade Moderna começou com o genocídio dos povos indígenas da América e continuou com o genocídio dos judeus e com o massacre de civis em Hiroshima e Nagasaki.
 
IHU On-Line - Quais são os maiores desafios que a educação tem em relação às diferentes religiosidades?

Marcos Sandrini - A escola não é uma continuação da família. Ela é uma ruptura. A escola é importante não pelos “conteúdos” que apresenta, mas pelas relações que promove. Uma sala de aula é um laboratório da sociedade. Aí temos questões de gênero: homem, mulher, homossexualidade. Temos questões de etnia. Há diferentes religiões, culturas. Há um filme muito significativo que se chama Entre os muros da escola,  que aborda a questão cultural. O professor é um grande interlocutor, um mediador cultural. A escola e o professor não são um computador que armazena conhecimentos e devolve para os alunos. Eles são a mediação da inovação, das relações. Também a religiosidade encontra espaço na escola.

IHU On-Line - Os temas religiosidade, espiritualidade, mística se aproximam? Quais seriam suas características?

Marcos Sandrini - Podemos entender religiosidade no sentido de radicalidade. Neste sentido todos somos religiosos, mesmo que não numa visão de transcendência. Em geral, as pessoas que refletem mais a fundo percebem que a pessoa humana não encontra em si o sentido de sua vida. Ela precisa se transcender! A espiritualidade da pessoa é seu projeto de vida. A mística é a paixão com que a pessoa executa seu projeto de vida. Mística é a paixão que seduz, o fogo que arrasta, a água que faz florescer. Geralmente costuma-se trabalhar a espiritualidade como sendo o contrário da materialidade. Em latim spiritus quer dizer vida, sopro vital. Os gregos é que contrapõem espírito a matéria. Uma boa espiritualidade deve abranger também a materialidade, sem esgotar-se aí. Quem não sabe tratar com o dinheiro, por exemplo, não tem uma boa espiritualidade. Há gente, grupos e instituições que têm uma espiritualidade, um projeto de vida de destruição e morte e faz isto com uma mística tão profunda que é capaz de matar, destruir, excluir. Esta é a sua paixão. Um traficante de droga tem uma espiritualidade ao inverso, uma mística avassaladora.

IHU On-Line - Quais são os referenciais teóricos que mais ajudam na reflexão do diálogo entre educação e religiosidade?

Marcos Sandrini - Em meu livro, tenho abordado vários referenciais teóricos. Gosto muito das abordagens de Zygmunt Bauman,  sobretudo no que diz respeito à ética. Ele diz que em ética não há reciprocidade, nem propósito e nem o contrato. A ética é aporética e ambivalente, se quiser ser ética. A abordagem de Vattimo no que diz respeito ao pensamento fraco também é fundamental. A morte de Cristo na cruz e sua ressurreição são lidas como um enfrentamento a todos os fundamentalismos e radicalismos que matam. As reflexões de Morin  sobre a complexidade são essenciais para a vivência do pluralismo não só numa visão humana, mas também ecológica. Também Nietzsche nos traz algumas reflexões interessantes sobre seu apelo: “Torna-te quem tu és”.

IHU On-Line - Sendo a religiosidade uma experiência que envolve vivências, afetos, contextos culturais diferentes, como seria esse diálogo proposto por Hans Küng na educação?

Marcos Sandrini - Hoje se defrontam dois grandes olhares sobre a contribuição da religiosidade para a paz no mundo. Um deles é representado por Hans Küng  que afirma que só haverá paz no mundo quando houver paz entre as religiões. Outros, entre os quais está Luc Férry,  afirmam que as religiões são fonte de violência e de sofrimento, portanto, o melhor é aboli-las. O fato é que as religiões estão aí e, talvez, seja a realidade mais profunda e mais universal que existe no mundo de hoje. Por que não aproveitar seu potencial e sua universalidade para construir um projeto humano em que todos sejam incluídos? Isto desde que as religiões estejam dispostas a ser mais acolhedoras do diferente e do outro enquanto marginalizado e excluído.

Tenho lido as obras do Hans Küng e não entendo como, em seu livro Uma ética global para a política e a economia mundiais, a África está tão marginalizada. Em suas centenas de páginas aparece apenas uma vez a África e ainda de forma muito marginal. O grande outro, o grande diferente da realidade mundial, hoje, é a África. Como as nações do Norte vão propor uma ética global se foram e são as que mais excluem? Neste sentido, também o ateísmo do Norte pouca contribuição traz para a paz mundial porque não é capaz de se transcender e, numa visão de complexidade, revestir-se do pensamento fraco e acolher quem mais precisa de voz e vez.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição