Edição 318 | 07 Dezembro 2009

A psicologia da Libertação segundo Ignacio Martín-Baró

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patrícia Fachin | Tradução Benno Dischinger

Para a psicóloga Cecília Santiago, falar dos mártires de El Salvador é necessário e atual, principalmente considerando as situações de opressão que ainda persistem na América Central

Ignacio Martín-Baró, um dos seis jesuítas assassinados brutalmente pelo exército salvadorenho no dia 16 de novembro de 1989, em El Salvador, foi o precursor da psicologia da libertação. Defensor de uma psicologia que se dedicasse ao atendimento dos problemas das maiorias populares, ele argumentava que era preciso “fazer uma psicologia política que leve em conta o poder social na configuração do psiquismo humano e que, portanto, contribua para construir um novo poder histórico como requisito de uma nova identidade psicossocial das maiorias até hoje dominada”, disse Cecília Santiago, psicóloga de Chiapas, à IHU On-Line, na entrevista que segue, concedida, por e-mail.

Baró ficou conhecido na América Latina após divulgar o contexto social e político de El Salvador, mostrando a realidade sofredora do povo salvadorenho. Recordando o martírio, Cecília Santiago diz que, como psicóloga chiapaneca e centro-americana, acredita “que estas pessoas, que há vinte anos deram sua vida, nos falaram com tal clareza que a vigência de suas palavras nos alenta e nos orienta nesta época de injustiça e opressão”.

Na opinião de Cecília, o sofrimento ainda está presente na América Central e, por isso, a realidade centro-americana de pobreza extrema, de violência e morte “nos chama a participar no fortalecimento de uma trama social que busca a vida, a paz e a dignidade”. Ela informa que em Chiapas, o governo e empresários “assassinaram lideres comunitários e jovens integrantes de organizações camponesas e indígenas”. Aqueles que mantêm Honduras sob estado de sítio, acrescenta, “são os mesmos que mataram Martín-Baró, os que assessoram o exército salvadorenho e mataram centenas de milhares de pessoas, de jovens, de crianças”.

Em homenagem aos seis jesuítas e às duas mulheres que foram brutalmente assassinados em El Salvador, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU inaugura, na quinta-feira, 10-12-2009, a sala Ignacio Ellacuría e Companheiros. Na ocasião, será exibido o debate Memory and it Strength: The martyrs of El Salvador (A memória e sua força: Os mártires de El Salvador), que ocorreu no Boston College, nos EUA, no dia 30 de novembro. Mediados pelo jesuíta e reitor emérito do Boston College, J. Donald Monan, Noam Chomsky e o jesuíta e teólogo Jon Sobrino discutem a importância dessa memória. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como você descreve a participação de Ignacio Martín-Baró nas lutas sociais em El Salvador na década de 80?

Cecília Santiago - Na universidade, ele promoveu a desideologização de professores, alunos e da sociedade em geral. Como professor, promoveu a conscientização de seus alunos e a participação ativa em analisar e transformar a realidade de seu país.

Como pesquisador, pôde situar o contexto em que se vivia no país, definindo os conteúdos de uma guerra na qual os perdedores eram a população civil. Localizou as consequências psicossociais na população, dando pistas para a atividade pastoral e de acompanhamento. 

Como acadêmico, promoveu a criação de instâncias universitárias que mantiveram a vinculação direta com a cidadania, como o instituto de opinião pública, a partir do qual fazia pesquisas de opinião que permitiam dar a voz à população em geral e, simultaneamente, mediante estas perguntas, as pessoas podiam questionar a realidade em que viviam. Dando, assim, importância à participação da população civil em meio a um conflito.

Este papel ativo a partir da universidade lhe possibilitou abrir as fronteiras do país, ministrando conferências em diversos países, mostrando a realidade sofredora do povo salvadorenho, além de promover laços de solidariedade. 

Como sacerdote, acompanhou sua Igreja, o povo mais pobre com uma cotidianidade em meio aos confrontos armados, massacres, perseguições e cárceres. Brindava espaços de reflexão à luz do Evangelho, análises da realidade para situar o papel dos atores políticos locais e internacionais, e promovia a motivação para viver, para a solidariedade e a compaixão entre irmãos.

IHU On-Line - Em que consiste a psicologia da libertação de Ignacio Martín-Baró? Quais são as fontes de inspiração e sua contribuição fundamental?

Cecília Santiago - Martín-Baró assinalou que a psicologia devia estar orientada para a libertação dos povos oprimidos. Falou de como libertar a psicologia de sua origem como ciência ao lado dos opressores e com base na cultura ocidental, como uma ciência que não contribui à humanização das pessoas, e sim a sua alienação. Citou os objetivos da psicologia social latino-americana: re-estabelecimento de toda a sua bagagem teórica e fortalecimento das opções populares. Delineia três tarefas libertadoras: o estudo sistemático das formas de consciência popular, o resgate e potenciação das virtudes populares e a análise das organizações populares como instrumento de libertação histórica. 

Assim ele propõe que a psicologia devia descentrar sua atenção de si mesma, de seu status científico e social, para dedicar-se ao atendimento dos problemas das maiorias populares. Ter nova práxis psicológica para a transformação da sociedade latino-americana. Propôs, assim, ter um novo horizonte e uma nova epistemologia.

Foi um acadêmico em sentido estrito, que buscou tanto o trabalho teórico como uma práxis sólida. Falou com dedicação e firme compromisso da atividade do psicólogo e do papel transcendente que desempenha entre contextos que laceram e humilham os pobres, para aprofundar-se no conceito psicossocial da libertação, consolidando uma psicologia popular e uma psicologia política.

IHU On-Line - Qual é, segundo Ignacio Martín-Baró, a função da psicologia da libertação ante a realidade da injustiça e da violência na América Latina e em El Salvador?

Cecília Santiago - 1. A recuperação da memória histórica, para haurir lições da própria experiência, encontrar as raízes da própria identidade para interpretar o presente e vislumbrar alternativas realmente úteis para a libertação;

2. Desideologizar a experiência cotidiana, para sair do fictício senso comum, enganoso e alienador, que é transferido pelos meios de comunicação de massa. Promover espaços para que o povo veja o que conseguiu, o que está fazendo e dê validez a seu próprio modo de entender o que se passa, fazendo-o para seu próprio bem;

3. Trabalhar para potenciar as virtudes de nossos povos. Tantos valores que estamos construindo para sobreviver à adversidade.

IHU On-Line - O que caracteriza a psicologia da libertação enquanto proposta crítica da psicologia social?

Cecília Santiago - Martín-Baró assinalou que a psicologia tinha que estar orientada para a libertação dos povos oprimidos e não para o hedonismo científico.

IHU On-Line - Como se integra a ética e a política no fazer da psicologia social de Martín-Baró?

Cecília Santiago - Se você se refere à ética, temos que perguntar-nos de que lado estão os psicólogos: do lado do opressor? Ou do oprimido? Aí está a opção ética que cada um deve fazer. Também é preciso repetir a pergunta constantemente ao longo de toda a vida. E se perguntar quais são as consequências históricas concretas que essa atividade está produzindo. 

Martín-Baró falou de fazer uma psicologia política que tome em conta o poder social na configuração do psiquismo humano e que, portanto, contribua para construir um novo poder histórico como requisito de uma nova identidade psicossocial das maiorias até hoje dominada.

IHU On-Line - 20 anos depois do martírio, quais são os reflexos da psicologia da libertação na América Central?

Cecília Santiago - A partir de Chiapas, posso dizer que a presença de Martín-Baró como sacerdote e amigo ainda está viva no meio do povo daquela que fora sua paróquia Jayaque. E suas análises de saúde mental em contexto de guerra recordam nas pessoas desmobilizadas de alguns departamentos, como Cabañas.

Suas contribuições foram e serão parte do povo porque dali vieram e sempre estarão presentes de uma ou outra forma, mais ou menos visível.

IHU On-Line - Qual a importância de recordar e celebrar a memória dos mártires? Como essas vítimas nos chamam à libertação?

Cecília Santiago - Como psicóloga chiapaneca, que também me sinto centro-americana, creio que estas pessoas, que há vinte anos deram sua vida, nos falaram com tal clareza que a vigência de suas palavras nos alenta e nos orienta nesta época de injustiça e opressão. 

Eles nos trouxeram valentia e determinação. A convicção de que nossa voz e nosso agir têm relevância. Por isso, falar deles e de nossa realidade atual é tão necessário como participar de movimentos amplos de transformação social. Os atores que mantêm Honduras sob estado de sítio após o golpe de Estado são os mesmos que mataram Martín-Baró, os que assessoraram o exército salvadorenho e mataram centenas de milhares de pessoas, de jovens, de crianças. Nossa realidade centro-americana de pobreza extrema, de violência e morte nos chama a participar no fortalecimento de uma trama social que busca a vida, a paz e a dignidade. Em Chiapas, nos últimos meses, o governo, empresários e sicários assassinaram líderes comunitários e jovens integrantes de organizações camponesas e indígenas, como  Trinidad Martínez, Mariano Abarca, entre outros, são nossos mártires de hoje. E eles nos chamam a não ter medo, a sentir sua presença que nos impele a buscar, dentro das profundezas de nossa identidade ancestral, caminhos iluminados para caminhar em meio às lutas de libertação.

Leia mais...

>> Para saber mais sobre Ignacio Martín-Baró, acesse o Memorial disponível na página do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;  

>> Confira detalhes sobre a inauguração da Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, que acontece nesta quinta-feira, dia 10 de dezembro, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição