Edição 317 | 30 Novembro 2009

Os Sertões: a luta como forma

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Gilda Carvalho e Patrícia Fachin

De acordo com Leonardo Vieira de Almeida, a primeira parte de Os Sertões, “A terra”, representa mais que um diagnóstico mesológico de uma região do Brasil. Trata-se, segundo ele, “da confecção de mapas poéticos, cartografia de escrita que concilia em altas doses a melopeia e a fanopeia”

Na opinião de Leonardo Vieira de Almeida, “Euclides da Cunha faz parte do rol de escritores-etnógrafos que recolheram das regiões do interior do Brasil o material vivo para sua arte”. Ele considera Os Sertões uma crônica de guerra e o classifica como um estudo sociológico impar em nossas letras. “A luta, sem ser diretamente resultante da terra e do homem, seria, antes de tudo, o modus operandi de escrita de Os Sertões. Luta entre o material exógeno e o endógeno que entraram em sua confecção, derivando uma terceira margem da língua. Uma terceira margem do Brasil”, assinala. Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, Almeida diz que embora Euclides tenha sido um homem de espírito científico e republicano, em Os Sertões, o escritor “se anunciou como um terceiro Euclides, o artista, que deveria dar corpo ao episódio vivenciado”.
Leonardo Vieira de Almeida é escritor e doutorando em Estudos de Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Publicou o livro de contos Os que estão aí (Ibis Libris, 2002). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: ensaio, resenha, tradução e estudo do conto. Atualmente, pesquisa a problematização do espaço sertão, com destaque para o romance de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, e sua relação com a problemática do conto como carta de maioridade da Literatura na América. Mantém o site "Contando Contos", http://contandocontos.blog-br.com/.

Confira a entrevista feita em parceria com a PUC-Rio.

IHU On-Line - No centenário de Euclides da Cunha, de que modo pode ser avaliado o papel de Os sertões na literatura brasileira?

Leonardo Vieira de Almeida - Creio ser esta obra, após o procedimento notável de escritores como Machado de Assis e Raul Pompéia, no sentido de irem contra o ufanismo literário, calcado na suposição de um heroísmo que pudesse idear a imagem da nacionalidade, um ponto decisivo no que concerne à assunção da luta enquanto forma e conteúdo. Isto é, a divisão tripartite do livro corresponde a uma cisão no íntimo da estrutura narrativa. Ou, de outro modo, como conceber o sertão, sendo homem de espírito científico e republicano em amálgama com o poeta? Desse embate, não se operou uma síntese a partir dos opostos, mas se anunciou um terceiro Euclides, o artista, que deveria dar corpo ao episódio vivenciado. Os sertões foi elaborado no período de cinco anos. Sua publicação, em 1902, teria enorme contribuição para as letras nacionais. Porém, pela complexidade de sua escrita, envolvendo diversos gêneros e técnicas literárias, provoca até hoje uma dificuldade de análise inerente ao seu corpus narrativo. De fato, como classificá-lo: estudo sociológico, romance, crônica de guerra? Franklin de Oliveira negou-lhe peremptoriamente a alcunha de romance. Porém, sem deixar de me imiscuir na classificação de gêneros, prefiro antes ressaltar a importância de Os Sertões que, sem se amoldar na clássica divisão (poesia, romance, conto, novela), no entanto, se serve de elementos que se encontram em todos eles. Consegue ainda mais. Euclides, trabalhando com esses mesmos gêneros, descobre técnicas literárias que abrem novos campos de experimentação da literatura de temática sertanista. O sertão como um “jogo de antíteses”, como o “homizio”, não será a matéria-prima da obra de João Guimarães Rosa? E a exploração da fanopeia, pelo recurso abusivo da cor e de uma linguagem tortuosa como a caatinga, não se encontra nos melhores contos de Breno Accioly, como, por exemplo, em Dois enterros, de seu volume Cogumelos? Sem me esquecer dos áridos quadros da natureza, criados por Graciliano Ramos, em Vidas Secas.

IHU On-Line - Muito se tem discutido sobre este caráter poético do texto euclidiano. É possível encarar Euclides da Cunha como um geopoeta?

Leonardo Vieira de Almeida - Esta questão foi levantada em belo ensaio de Ronaldes de Melo e Souza, “A geopoética de Euclides da Cunha”. No meu entender, Euclides, leitor de Alexander von Humboldt, para quem o relato de viagens não poderia prescindir de uma cosmovisão, mediante a qual o que é dado ver se efetua por um contato intuitivo com a natureza em sua grandeza sublime, possuía um humanismo poético. Daí que se servisse diretamente da imaginação, de modo a manter o estreito contato entre a consciência interna e externa sobre a Natureza. Ao descrever a “terra ignota”, mediante um procedimento que partia tanto dos dados de campo (os escritos colhidos em seu diário de expedição) quanto dos textos científicos e ficcionais, o autor de Um paraíso perdido efetuou um autêntico gesto antropofágico. Além do que, a distância do campo de batalha, durante os anos em que se dedicou ao livro, acentuou-lhe ainda mais o trabalho da imaginação. Em verdade, a primeira parte de Os sertões, “A terra”, não é apenas um diagnóstico mesológico de determinada região do Brasil. Trata-se da confecção de mapas poéticos, cartografia de escrita que concilia em altas doses a melopeia e a fanopeia. De fato, ao lermos suas descrições, não podemos deixar de ouvir os desmoronamentos dos morros, o sopro dos ventos. Nem de percebermos as linhas tortuosas de sua flora raquítica ou exuberante. Tais fenômenos colocam o escritor carioca num lugar avant la lettre: ele se apresenta como um puro fazedor de misturas, agregando técnicas do expressionismo, do impressionismo, do parnasianismo etc. Isso para ficarmos apenas com a primeira parte do livro.

IHU On-Line - Quanto à segunda parte, “O homem”, é verdade que podemos observar o determinismo como condicionante dos tipos sertanejos escravizados à fatalidade da terra?

Leonardo Vieira de Almeida - O ponto é especioso e, defendido por determinada linhagem crítica, necessita ser refutado. Para tanto, refiro-me apenas a dois trechos do livro: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” / “É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos”. Por meio do exame de ambos os momentos, posso refletir sobre a questão do “jogo de antíteses” como inerente à forma com a qual lida o autor na estruturação narrativa de Os sertões. Em verdade, ao sentido de determinada frase segue um sentido oposto. O sertanejo é um “forte”, mas também “desgracioso, desengonçado, torto”. O próprio onomástico “Hércules-Quasímodo” constitui-se em um oxímoro. Detendo-se na desgraciosidade do sertanejo, o autor procede a um longo desenvolvimento dessa característica, para, logo depois, mudar seu enfoque, quando diz: “Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude”. O uso das conjunções adversativas (entretanto, porém) é exaustivamente explorado em Os sertões. Esse procedimento, em grande parte, refuta a ideia de um determinismo arraigado como força motriz do estilo euclidiano. Após traçar seu retrato do sertanejo, o escritor passa a uma descrição do gaúcho, para quem o vaqueiro do norte é “a sua antítese”. Enquanto, para o primeiro, a natureza é carinhosa, para o segundo, é adusta, quando este conhece os horrores da seca e tem de combater a terra árida. Porém, tal fato não provoca um desequilíbrio em suas qualidades “heróicas”, ambos são elevados à categoria de entidades míticas, seja dos sertões, seja dos pampas. O autor também desenvolve um vasto painel das tradições desses dois tipos emblemáticos: suas vaquejadas, desafios, danças, indumentária etc. Em verdade, Euclides da Cunha faz parte do rol de escritores-etnógrafos que recolheram das regiões do interior do Brasil o material vivo para sua arte: José de Alencar, com seus romances rurais e históricos (O tronco do ipê, As minas de Prata, O gaúcho, O sertanejo); Simões Lopes Neto, criador de Blau Nunes, o mítico pampeiro de Contos gauchescos. E, em escala mais ampla, os criadores dos ícones regionais da literatura latino-americana: José Hernández (Martín Fierro) e Ricardo Güiraldes (Don Segundo Sombra).

IHU On-Line - E a questão religiosa, como ela se encontra associada a este “jogo de antíteses”?

Leonardo Vieira de Almeida - Se a mestiçagem da raça é examinada de forma exaustiva, convergindo para o vasto panorama de tipos humanos, o estudo da mestiçagem religiosa funciona como uma espécie de prólogo para a análise de Antônio Conselheiro e de seus sectários. Na figura do mártir de Canudos, também transparece uma tríade, pois nos diz Euclides: “É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual a aparência protéica – de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso, e de bonzo claudicante – estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças.” A “terra do exílio” ou “terra ignota”, abrigo para degredados de distintas nações, para a mescla de culturas e raças, foi solo fecundo onde o sincretismo religioso chegou a unir o animismo africano, o catolicismo peninsular, o misticismo político do sebastianismo, além das divindades indígenas. Esse caudal de crenças, encontrando no hiato formado pelas regiões do interior (separadas das vastidões litorâneas por acidentes geográficos), uma população ansiosa por um novo El Dorado, precisaria apenas de um líder que, por sua própria natureza proteiforme, servisse de intérprete da condição paradoxal da realidade brasileira. O “grande homem pelo avesso” que foi Antônio Mendes Maciel, o Conselheiro, poderia ser visto, em verdade, como metonímia de uma mestiçagem conflitante. Ou ainda, de uma mestiçagem como hiato, derivada de uma tríade: o Conselheiro, refém de uma luta atávica entre sua família, os Macieis, e os Araújos - primeira estrutura; o refém de uma traição matrimonial - segunda estrutura; o refém de uma população de deserdados em sua própria terra - terceira e última estrutura. Todos esses elementos, por sua vez, amalgamados pela lenda, ou seja, por mais uma lacuna que marca o modo fragmentário, povoado de interstícios, do relato de Euclides da Cunha.

IHU On-Line - No seu entender, a última parte de Os sertões, “A luta”, enfeixa as questões anteriormente apontadas?

Leonardo Vieira de Almeida - É evidente, se considero que o trabalho de Euclides não oferece, em seu fim, uma resposta peremptória. O crânio do Conselheiro, como prêmio da guerra de Canudos, servirá como “última palavra” à ciência, para que esta possa descobrir nas “circunvoluções expressivas” as “linhas essenciais do crime e da loucura”. Definitivo gesto irônico de Euclides: pode a fisiologia explicar a batalha cerrada entre o litoral e o interior? Essa estrutura narrativa feita de hiatos, conflituosa em cada um de seus objetos de análise, semeada de oxímoros e paradoxos, além de ser um relato “mestiço”, no sentido das inúmeras referências intertextuais e combinações estilísticas, coloca o autor carioca em uma posição particular na literatura brasileira. Assim, o “jogo de antíteses” opera tanto na forma como no conteúdo. Os sertões, crônica de guerra, estudo sociológico ímpar em nossas letras, é uma obra do conflito. Conflito no próprio cerne do autor, e, também, no âmago da cultura do país. A luta, sem ser diretamente uma resultante da terra e do homem, seria, antes de tudo, o modus operandi de escrita de Os sertões. Luta entre o material exógeno e o endógeno que entraram em sua confecção, derivando uma terceira margem da língua. Uma terceira margem do Brasil.

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