Edição 317 | 30 Novembro 2009

Euclides da Cunha. Conhecimento e arte

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Gilda Carvalho e Patrícia Fachin

Na opinião de Joana Luíza Muylaert de Araújo, além de ver, ouvir e tentar interpretar os acontecimentos, Euclides da Cunha fez deles um relato mais próximo de uma arte poética nem tão lógica ou convincente, mas, nem por isso, menos verdadeira

Euclides da Cunha relatou os acontecimentos de um ponto de vista dramático e, defendendo a teoria da dominação pela força, ele tentou o impossível: “apontar saídas para o nosso atraso social, cultural e político, através de um esquema interpretativo que excluía qualquer saída para países como o Brasil”, assinala Joana Luíza Muylaert de Araújo, no artigo que segue, concedido, com exclusividade, para a IHU On-Line.  Nesse sentido, acrescenta, Os Sertões continua sendo um marco fundamental no campo literário brasileiro e no âmbito das Ciências Sociais. “A cada vez que o relemos, surpreendemo-nos com novas, inesperadas, dificuldades: Euclides também não nos ofereceu a chave de sua interpretação”, frisa.

Joana Luíza Muylaert de Araújo é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, e professora Associada do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, onde ministra aulas de Teoria Literária e Literatura Brasileira, e desenvolve trabalhos de orientação e pesquisa em Crítica e Historiografia Literária. A seguir, ela analisa a narrativa de Os Sertões, destacando a tensão entre a pretensão de um teórico Euclides e a sua efetiva realização de escritor que acreditava que o “verdadeiro conhecimento resultava da síntese entre o pensamento reflexivo-teórico e a criação artística”.

Confira o artigo.

Muitas foram as páginas escritas sobre a forma híbrida de Os Sertões. Mais recentemente, Luiz da Costa Lima dedicou ao assunto um capítulo à parte em História. Ficção. Literatura, livro publicado em 2006. O tema é espinhoso, envolvendo não apenas questões relacionadas ao antigo problema dos gêneros literários, como também as complexas noções em jogo nas escritas da história e da ficção. Proponho apresentá-lo em linhas bem gerais, apoiando-me no que Euclides nos deixou escrito em cartas e artigos a respeito do assunto.

Chamam a atenção, na escrita de Os Sertões, as contradições teóricas que, paradoxalmente, constituem uma das condições de sua sobrevivência como texto consagrado da literatura brasileira. Marco fundamental não apenas no campo literário brasileiro, mas também no âmbito mais geral das Ciências Sociais, Os Sertões continua a desafiar críticos, sociólogos e historiadores que se lançam à tarefa de interpretá-lo. Walnice Nogueira Galvão disse, certa vez, que Canudos e Canudenses não entregaram a chave de sua decifração aos métodos utilizados pelo escritor. O mesmo podemos dizer a respeito dele. A cada vez que o relemos, surpreendemo-nos com novas, inesperadas, dificuldades: Euclides também não nos ofereceu a chave de sua interpretação.

Retomando um lugar-comum na crítica euclidiana, cabe referir os impasses do ambicioso projeto do escritor, que pretendia nada menos que escrever o romance histórico que nos faltava, ou algo como uma épica, “estética para as grandes desgraças coletivas”, nas suas palavras. A que se deveriam então esses impasses? Em linhas bem gerais, destacam-se, no livro de 1902, dois modos de conhecimento que, em princípio, seriam incompatíveis: de um lado, o recurso aos métodos e conceitos em voga na Sociologia e ciências afins, com o claro propósito de compreender e interpretar os entraves de natureza social, política e econômica, que impediam a plena inserção do país no conjunto mais amplo das nações mais avançadas; de outro, uma espécie de empirismo que levava recorrentemente o autor à constatação de que a realidade observada bem de perto não se deixava apreender e explicar por aqueles mesmos métodos e conceitos utilizados.

Conforme afirma o próprio autor na epígrafe de Os Sertões, foi involuntariamente que seu livro se tornou um livro de ataque; ataque aos “singularíssimos civilizados que, nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiquezas”. Por que teria isso ocorrido? A hipótese a se considerar é que, ao escrever a história da Guerra de Canudos, Euclides da Cunha não foi apenas um teórico, mas, sobretudo, um narrador. É nessa condição que procurou fazer “jus ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero que encara a história como ela merece”, tentando ser fiel não somente aos “fatos”, “datas e genealogias”, mas, principalmente, aos “sentimentos e costumes”. Sobre o acerto dessa empreitada não nos cabe aqui julgar. O que realmente importa é ressaltar o empenho do escritor para sentir, ver e ouvir como “bárbaro entre os bárbaros”, como ele mesmo afirma ao transcrever as palavras do sociólogo francês mencionado. 

Reconhecida a cisão, presente na obra do escritor, entre o que ele pretendera enquanto teórico e o que ele efetivamente realizara enquanto narrador, penso que podemos arriscar uma outra hipótese: a de que, em Os Sertões, prevaleceu a arte como uma outra, diversa forma de conhecimento que, pela sensibilidade e intuição, iria corrigindo aqui e acolá os dogmas, as verdades cristalizadas pelos abstratos esquemas cientificistas. Por outro lado, cabe observar que não se trata de validar a tradição crítica segundo a qual Os Sertões é interpretado como “forma híbrida” a meio caminho entre a história e a literatura. Vejamos se me faço entender no espaço e tempo possíveis, no caso dessa publicação.

Euclides da Cunha acreditava que o verdadeiro conhecimento resultava da síntese entre o pensamento reflexivo-teórico e a criação artística e, nessa direção, tentou elaborar sua obra. Em carta a José Veríssimo, alude aos pressupostos de uma literatura em bases científicas, com o objetivo de refutar seu interlocutor que havia criticado a presença excessiva de “termos técnicos” em Os Sertões. Nas palavras de Euclides, “nada justifica o sistemático desprezo que lhes votam os homens de letras – sobretudo se considerarmos que o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano”. Em trecho logo a seguir, prossegue: “o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a avidez característica das análises e das experiências”.

Em outra carta, cujo destinatário é Araripe Júnior, escreve Euclides, referindo-se ao descompasso da literatura brasileira comparada em relação às literaturas europeias consagradas:
 
 “Não temos romances históricos, sendo a nossa vida nacional tão farta de episódios interessantíssimos e originais. A este propósito, estou quase a lhe dar o mesmo conselho que me deu há poucos dias, em carta, o Dr. Lúcio de Mendonça: aviventar com a fantasia criadora um dos mil incidentes da nossa história. Temos quadros e sucessos que fariam o delírio de Dumas e Walter Scott. Aí está, para citar um só exemplo, esta arrebatadora figura de D. Pedro I, lindíssimo tipo de um rei-cortesão da liberdade, a desafiar os mais ardentes artistas. E deixamo-lo na eterna mudez da estátua do Rocio...”

Embora haja recorrido ao termo já consagrado romance histórico e à proposta também conhecida de síntese entre arte e ciência, tão cara aos escritores cientificistas da época, o fato é que essas mesmas noções adquirem um sentido bem específico nos textos do autor. Destaco, no trecho acima transcrito o termo “fantasia”, que Euclides da Cunha considerava elemento constitutivo do conhecimento; não a fantasia “imaginosa arbitrária”, dizia ele, mas a fantasia essencial à “pintura sugestiva dos homens e das coisas”, dos “costumes”, enfim, “que são a imprimidura indispensável ao desenho dos acontecimentos”. Ainda sobre o projeto de romance histórico, retomamos uma passagem acima para ressaltar um outro aspecto a essa ideia intimamente entrelaçado. Refiro-me aqui à perspectiva do narrador Euclides. Num ensaio a respeito das secas no norte, escreve ele, em tom de lamento, que, no Brasil, “não havendo uma estética para as grandes desgraças coletivas”, como na Europa, “estes transes tão profundamente dramáticos não deixam traços duradouros”, não se acham expressos nas produções artísticas.

Temos aí o teórico Euclides da Cunha falando da história como um esteta: um esteta com sensibilidade para os acontecimentos dramáticos, ou melhor, um escritor que relatou os acontecimentos de um ponto de vista dramático.

A essa altura de nossa argumentação, penso que temos lançadas algumas âncoras que nos permitam dizer que foi por caminhos outros que não os métodos empregados - e na verdade em franca contradição com a ciência em particular, como já fora observado - que o escritor chegou a apontar este outro sentido para o drama de Canudos.  O que ficou ainda para ser compreendido está suspenso nas reticências e entrelinhas das últimas páginas de Os Sertões.

Defendendo a teoria da dominação, pela força, das raças superiores, Euclides da Cunha tentou o impossível: apontar saídas para o nosso atraso social, cultural e político, através de um esquema interpretativo que excluía qualquer saída para países como o Brasil. Ao final, teve que abandonar este esquema teórico de interpretação. A suposta racionalidade cientificista cede lugar, passo a passo, para uma narrativa apaixonada e inequivocamente comprometida. Vai-se desarticulando a argumentação positivista pelo poder de uma argumentação, em sentido contrário, que paralelamente se insinua.  A verossimilhança obtida com a exposição, a princípio tão segura e afirmativa, das causas (o meio, a raça e o momento) do conflito perde a força diante de outro discurso tecido de dúvidas, reticências, silêncios e frases entrecortadas, à medida que a narrativa se aproxima do final.  Outras causas são então apontadas nas fraturas do discurso científico: as desigualdades de toda ordem, as disparidades entre os “dois Brasis” e por aí afora.  A retórica cientificista revela-se, deste modo, vazia frente a um discurso indignado e tenso de denúncia: o teórico positivista “sistematiza a dúvida”.

Euclides da Cunha não sustentou a racionalidade do discurso do mais forte. Certamente porque, além de ver e ouvir os acontecimentos, e tentar interpretá-los segundo o instrumental teórico cientificista, o escritor brasileiro fez deles um relato mais próximo de uma arte poética, de uma narrativa literária, nem tão lógica, ou tão convincente, mas, nem por isso, menos verdadeira. Que outro fator levaria um positivista a atravessar a opacidade do seu próprio discurso?

Ciência e literatura, ciência e arte, fantasia e história, romance histórico: eis algumas palavras-chave que talvez nos auxiliem a compreender Os Sertões no interior de um projeto maior, que encaminha o debate para além do território circunscrito da retórica dos gêneros. Nesse caso, seria irrelevante, senão inaceitável, como quer Costa Lima, afirmar que em Os Sertões se pode perceber “uma obra simultaneamente de história e literatura”? De seus escritos, não se pode deduzir que o autor considerava seu texto sobre Canudos um texto literário, mais especificamente um romance histórico? 

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