Edição 316 | 23 Novembro 2009

Calvino. Um revolucionário ou um conservador?

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Yves Krumenacker explica que verdadeira vontade de Calvino era reformar a Igreja devolvendo-lhe a forma primitiva. Por isso, seria um conservador. Hoje, redescobre-se um homem talvez “excessivo em suas ideias”, que se pensava um profeta

Quinhentos anos após seu nascimento, Calvino é redescoberto como um homem talvez “excessivo em suas ideias, que acreditava ser um profeta, mas que tinha um grande sentido da glória de Deus e de sua majestade, um homem que não podia aceitar superstições, ou seja, segundo ele, cultivar as falsas imagens de Deus e o falso culto prestado a Deus”. A análise do historiador francês Yves Krumenacker vai adiante: “Esta orientação de todo o seu ser para Deus, este cuidado exclusivo de Deus ainda podem, sem dúvida, falar aos cristãos de hoje, embora as épocas sejam muito diferentes”. Examinando a possibilidade de Calvino ser um revolucionário ou um conservador, Krumenacker aponta para a segunda como muito mais plausível. Isso porque o reformador queria restituir a forma primitiva da Igreja. No entanto, pondera, “sua ação teve consequências revolucionárias que certamente o ultrapassaram”. As relações entre a Companhia de Jesus e a Contra-Reforma são outro tema da entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.

Professor na Universidade Lyon 3, na França, desde 1998, Krumenacker foi aluno da Escola Normal Superior de Saint-Cloud. Desde 2008, é membro do Instituto Universitário da França. Pesquisa sobretudo a história religiosa da França moderna, nomeadamente sobre espiritualidade do século XVII e o protestantismo. Escreveu, entre outros, Les Protestants du Poitou au XVIIIe siècle (1681-1789) (Paris: H. Champion, 1998) e Calvin. Au-delà des legendes (Paris, Bayard, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O calvinismo foi uma reforma ou uma revolução?

Yves Krumenacker - Calvino jamais foi um revolucionário, ele antes teria sido um conservador. Os movimentos radicais, como os anabatistas, o horrorizam. Sua reforma é verdadeiramente uma vontade de reformar a Igreja, de formá-la novamente, restituindo-lhe sua forma primitiva, de retornar, portanto, à Igreja antiga. No entanto, sua ação teve consequências revolucionárias que certamente o ultrapassaram. Com efeito, Calvino contribuiu para fazer a Europa sair da cristandade medieval, ele trouxe a formação de Estados pluralistas, ele obrigou a se pensar mais a liberdade de consciência.

IHU On-Line - Em que medida podemos estar de acordo com a afirmação que Calvino teria sido para a língua francesa o que Lutero foi para a língua alemã – uma figura quase paternal?

Yves Krumenacker - Lutero realmente fundou o alemão moderno, o que não é o caso de Calvino para o francês. No entanto, ele é reconhecido, há alguns anos, como um escritor muito destacado, claro, sóbrio, elegante, com um estilo muito moderno; é um dos escritores de sua época mais legíveis para um francês de hoje. Calvino também é um dos primeiros a escrever teologia em francês.

IHU On-Line - Quais foram as circunstâncias nas quais se deu o exílio de Calvino?

Yves Krumenacker - Em sua preocupação de reencontrar uma Igreja pura, Calvino aproximou-se pouco a pouco dos ambientes franceses mais reformadores e mais próximos dos protestantes suíços. Ele esperava que a França pudesse reformar-se seguindo os conselhos dos evangélicos, como o humanista Lefèvre d’Etaples. Mas, o rei Francisco I se aproxima do papa por razões políticas. Calvino começa a compreender, em fins de 1533, que a reforma, tal como ele a deseja, é impossível. Ele pensa então que é preciso romper com “o papismo”. A partir de outubro de 1534, os que se opõem a Roma são perseguidos. Calvino se sente ameaçado e deixa a França.

IHU On-Line - Como os jesuítas e a Contra-Reforma reagiram ao calvinismo?

Yves Krumenacker - A Igreja católica reagiu primeiro ao luteranismo, e os primeiros calvinistas franceses são considerados como luteranos. Os livros de Calvino são condenados e dão lugar a controvérsias teológicas, mas os primeiros jesuítas não participam delas, pois é ainda demasiado cedo para a Companhia de Jesus.  Somente a partir de 1560, ou seja, no momento em que Calvino desaparece (ele morre em 1563), que os jesuítas são verdadeiramente ativos contra o calvinismo: posse de colégios em regiões marcadas pelo calvinismo, redação de catecismos (o do Pe. Auger é de 1563), missões nas zonas rurais, controvérsias. No Concílio de Trento,  os jesuítas contribuíram para precisar os dogmas católicos contra as ideias protestantes. Confessores ou conselheiros de numerosos príncipes católicos, eles irão atuar para que se realize uma reconquista católica das regiões protestantes, por exemplo, na Europa central, graças às missões, às pregações, mas também pela força. É, sobretudo, o lugar considerável que os jesuítas tomam na Contra-Reforma que faz com que se veja neles os principais adversários dos calvinistas. Mas, essa é apenas uma de suas numerosas atividades, e eles não são os únicos a se opor ao protestantismo: eles são simplesmente os mais eficazes.

IHU On-Line - Quais eram as relações entre Calvino e os jesuítas?

Yves Krumenacker - Calvino podia ter conhecido Inácio de Loyola. Ele deixa, com efeito, o colégio de Montaigu, em Paris, em 1528, quando Santo Inácio entra ali. Os dois homens seguem cursos em Paris ao mesmo tempo, em 1532. Ambos têm uma piedade muito cristocêntrica e têm quase a mesma divisa: Soli Deo gloria para Calvino; Ad majorem Dei gloriam para Santo Inácio. Aliás, Calvino jamais polemizou muito com os jesuítas; era antes a faculdade de teologia de Paris que ele atacava. Ele não devia gostar muito dos jesuítas por causa de sua ligação ao papa, mas ele não fala disso. De fato, como se viu, as polêmicas entre os jesuítas e os calvinistas são mais tardias.

IHU On-Line - Pode-se falar de uma “ética calvinista e o espírito do capitalismo”? Por quê?

Yves Krumenacker - Foi o sociólogo alemão Max Weber que desenvolveu, no início do século XX, a tese de elos muito fortes entre a ética calvinista e o espírito do capitalismo. Ele procurava mostrar a influência que as religiões puderam ter no advento do mundo moderno. Para ele, o calvinismo incita ao trabalho racional e consciencioso, recusando os prazeres da vida; isso permite acumular capital, que é, sem cessar, reinvestido. Ganhar dinheiro para fazê-lo frutificar também se torna uma virtude. Pessoalmente, sou muito cético em relação a essa ideia. Com efeito, o exame da vida real dos calvinistas mostra que seu comportamento não é sempre racional e que os pastores têm, frequentemente, muita dificuldade em lhes impor uma vida austera. De outra parte, diversas correntes de espiritualidade católica, de jesuítas a São Francisco de Sales, insistem também na necessidade de realizar da melhor forma sua vocação sobre a Terra.

IHU On-Line - Como explicar a reação de Calvino em relação à riqueza? Há relação entre o calvinismo grassar em países como Holanda, Escócia, França, Inglaterra e EUA e seu desempenho econômico positivo?

Yves Krumenacker - Minha resposta à questão precedente explica que a relação não me parece evidente. Calvino não condena a riqueza, mas gostaria que se tivesse dela um uso moderado e que ela permitisse aliviar os pobres. Ele aceita o empréstimo a juro, mas gostaria que se emprestasse gratuitamente aos pobres: isso não é muito capitalista!

Diversos grandes países capitalistas foram influenciados pelo calvinismo. Mas, na Holanda, são os calvinistas mais distantes de Calvino (os arminianos) que desenvolvem o comércio. Na Inglaterra, os verdadeiros calvinistas são os puritanos, e nenhum capitalista é puritano. Na França, o calvinismo não triunfou. O ponto comum entre estes países é antes o fato que eles se voltaram para o oceano Atlântico e que eles lucram pela transferência da economia do Mediterrâneo para o Atlântico. Portugal, politicamente muito frágil, não o pode fazer, e a Espanha atravessa uma crise econômica muito grave para lucrar plenamente. As circunstâncias políticas e econômicas tiveram, a meu ver, um papel mais preponderante do que as razões religiosas.

IHU On-Line - Qual é a atualidade de Calvino 500 anos após seu nascimento?

Yves Krumenacker - Calvino foi em parte esquecido pelos calvinistas durante diversos séculos. Sua teologia, em particular, a predestinação, foi muito criticada, mesmo pelos protestantes. Redescobre-se hoje um homem talvez excessivo em suas ideias, que acreditava ser um profeta, mas que tinha um grande sentido da glória de Deus e de sua majestade, um homem que não podia aceitar superstições, ou seja, segundo ele, cultivar as falsas imagens de Deus e o falso culto prestado a Deus. Isso o levou a romper com Roma, mas isso era para ele necessário caso quisesse prestar um culto puro a Deus. Esta orientação de todo o seu ser para Deus, este cuidado exclusivo de Deus ainda pode, sem dúvida, falar aos cristãos de hoje, embora as épocas sejam muito diferentes.

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