Edição 315 | 16 Novembro 2009

Em defesa da liberdade e da justiça

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Patrícia Fachin | Tradução Moisés Sbardelotto

Na opinião de Rodolfo Cardenal, o destino martirial de Ellacuría e de seus companheiros é explicado porque se converteram em razão pública e processada da razão das maiorias salvadorenhas empobrecidas e silenciadas.

“A vida e a morte dos mártires da UCA nos mostram o caminho para nos aproximar ao mistério de Deus e nos animam a responder com eles a pergunta que dirige à humanidade desde o começo da história: O que fizeste de teu irmão e de tua irmã?”. A reflexão é de Rodolfo Cardenal, docente de História da Universidade Centroamericana "José Simeón Cañas" de San Salvador (UCA), El Salvador. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, ele menciona a importância de recordar a vida e morte das testemunhas e assinala que mesmo sendo difícil aceitar o mistério da entrega da vida por amor, devemos compreender os mártires como “modelos dos quais estamos muito necessitados”. “São pessoas boas, que nos oferecem sua fé, sua esperança e sua generosidade e amor desmedidos. Neles, encontramos os valores fundamentais que podem nos converter à solidariedade, à compaixão e à paixão pela justiça. Neles encontramos uma possibilidade real para ser humanos”, assegura.

Esta segunda-feira, 16-11-2009, marca o vigésimo aniversário dos mártires de El Salvador e, segundo Cardenal, a cada ano, os mártires “convocam incontáveis comunidades salvadorenhas e de muitas outras partes do mundo, que se reúnem para venerá-los e agradecer pelo seu testemunho”. E conclui: “O aniversário dos mártires da UCA é o preâmbulo de um tempo forte de comemorações, um tempo para recordar e agradecer”.

Rodolfo Cardenal é licenciado em Filosofia pela Universidade Centroamericana "José Simeón Cañas" de San Salvador (UCA), El Salvador. Cursou Teologia pela Faculdade San Francisco de Borja, Sant Cugat del Valles, Barcelona, Espanha. Também é especialista em História da América Central e América Latina, em particular história da Igreja. Ex-vice-reitor de projeção social, ex-vice-reitor acadêmico e ex-diretor da revista Estudios Centroamericanos, atua como docente na área de história, na UCA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor descreve a dimensão humana e cristã de Ellacuría?

Rodolfo Cardenal - Mesmo que sua natureza austera, muito basca, não animava a aproximação, ele era uma pessoa muito sensível e carinhosa. Sempre, segundo ele, desde muito jovem, foi um grande lutador. Trabalhador incansável, nunca deu espaço ao desalento, sempre olhava além. Demonstrou uma enorme criatividade no campo intelectual, universitário e político. Possuía grande fineza mental, era muito crítico inclusive de si mesmo, nunca estava satisfeito com o conseguido, sempre via além e tinha capacidade para entusiasmar as pessoas que se encontravam do seu lado. Sempre tinha algo a dizer, sempre ruminava uma ideia, sempre sugeria mais do que afirmava.

Exigente consigo mesmo e com os demais, não tolerava a mediocridade, nem a superficialidade. Era dotado de uma inteligência superior e tinha uma formação acadêmica de primeira qualidade. Ao mesmo tempo, era carinhoso e muito sensível à dor humana, principalmente dos mais frágeis. Gostava da poesia, da zarzuela [gênero lírico-dramático espanhol], do futebol e de sorvete.

Homem de fé profunda e forte, mesmo que pouco dado a manifestar isso de forma expressa. Em Dom Oscar Romero, encontrou um desafio para a sua fé.

IHU On-Line - Quais são as principais contribuições de Ignacio Ellacuría como filósofo, teólogo, politólogo e reitor da UCA na defesa dos direitos humanos em El Salvador e na América Latina?

Rodolfo Cardenal - A principal contribuição de Ellacuría no campo da defesa dos direitos humanos é ter introduzido o conceito de historização. Esse conceito é fundamental em seu pensamento teológico e filosófico. Mas aplicado aos direitos humanos, significa que estes não devem ser tratados de forma abstrata e geral, mas sim histórica. Por isso, segundo Ellacuría, o bem comum é o fundamento e o marco de referência dos direitos humanos e seu princípio de concretização e obrigatoriedade. Os direitos humanos desdobram o bem comum da humanidade como um todo, que deve regulamentá-los, pois não existe bem comum se sua conservação implica na violação permanente e grave dos direitos da pessoa. O conteúdo dos direitos humanos é derivado do bem comum, ou seja, da preservação da vida. Concretamente, preservar a vida significa comunicar os bens para satisfazer as necessidades básicas da humanidade. A realização do ser humano e da sociedade comunitária, portanto, são incompatíveis com o interesse privado individual.

Os direitos só são humanos quando incluem toda a humanidade, cujo único bem é universal. Consequentemente, os bens particulares devem ser entendidos como o desdobramento desse bem universal e sempre subordinados a ele. Não se pode afirmar o bem comum e a unidade da humanidade sem superar a ordem econômico-social atual, que exclui, divide e nega a vida.

Bem comum e justiça

A busca do bem comum, portanto, conduz à justiça. O autêntico bem comum e a vigência dos direitos humanos universais exigem fazer justiça aos oprimidos. Por isso, os direitos humanos são também direitos dos oprimidos, e defendê-los é uma tarefa justa. Os opressores só têm direito de ser libertados do poder para despojar os demais. Nesse sentido, a justiça é fazer-se justiça, enquanto consiste em construir o bem comum. Por outro lado, este gera os direitos que a legislação deve reconhecer e defender. Nesse sentido, para Ellacuría, defender os direitos humanos é um ativo fazer direito e fazer justiça, fazer-se direito e fazer-se justiça. As raízes dessa proposta de Ellacuría se encontram no reverso da história, e sua matriz está no povo pobre, no qual há uma utopia para se construir. A consecução do bem comum é uma utopia, que aspira a se concretizar na história.

A busca do bem universal, a partir do seu pensamento teológico, se expressa em sua teologia da libertação, principalmente no desenvolvimento do conceito de salvação na história e história da salvação. No campo filosófico, a historização dos direitos humanos se encontra expressada em sua formulação de uma filosofia libertadora. Em seu pensamento político, esse enfoque se encontra em sua maneira de analisar a realidade salvadorenha, centro-americana e latino-americana.

IHU On-Line - Quais são as principais contribuições de Ellacuría à sociedade e à Igreja salvadorenha?

Rodolfo Cardenal - Antes da guerra civil de 12 anos, Ellacuría insistiu na necessidade e na urgência de se realizar reformas estruturais, precisamente para eliminar o conflito social e, definitivamente, a guerra. Prova dessa insistência encontra-se em seus escritos sobre a realidade nacional salvadorenha, na direção da revista Estudios Centroamericanos e em suas intervenções públicas. Durante a guerra civil, ele insistiu no respeito dos direitos humanos da população civil, assim como dos direitos dos combatentes de ambos os lados, ao mesmo tempo em que trabalhou arduamente para buscar uma saída política ao conflito. Definitivamente, seu assassinato e o dos outros cinco jesuítas e das duas colaboradoras foram uma contribuição fundamental para começar as negociações que concluíram com o final da guerra civil.

Ellacuría, desde muito jovem, contribuiu com a formação de várias gerações do clero salvadorenho, no Seminário Nacional San José de la Montaña e na Universidade Centroamericana “José Simeón Cañas”. Da mesma forma, sempre se preocupou pela formação teológica dos agentes de pastoral, tanto fora quanto dentro da universidade. Para isso, montou programas especiais de formação. Acompanhou o processo da Igreja salvadorenha depois de Medellín . De fato, seus primeiros escritos teológicos surgem como reflexões sobre esse processo. Com frequência, ele era chamado pelos bispos para assessorar nas questões complexas, principalmente pelos três arcebispos de San Salvador com os quais conviveu, particularmente com Dom Romero. O contexto de seus artigos teológicos mais importantes encontra-se na Igreja salvadorenha. São reflexões e contribuições à experiência histórica eclesial.

IHU On-Line - Qual é a maior contribuição dos mártires da UCA para nós?

Rodolfo Cardenal - Os mártires da UCA fazem parte da tradição da Igreja salvadorenha. Em El Salvador, chama-se mártires uma multidão de testemunhas. Entre eles, encontram-se os seis jesuítas da UCA e suas duas colaboradoras. Eles convocam para rememorar e agradecer sua vida e sua morte. O aniversário dos mártires da UCA é o preâmbulo de um tempo forte de comemorações, um tempo para recordar e agradecer. Agora, celebram-se os 20 anos do martírio dos jesuítas da UCA e de suas duas colaboradoras. Em março próximo, comemoram-se os 30 anos do martírio de Dom Oscar Romero e do massacre do rio Sumpul,  em maio. Em dezembro, comemoram-se os 30 anos do martírio das quatro religiosas norte-americanas, violentadas e assassinadas brutalmente. Esses mártires têm um poder de convocação muito particular. Em cada aniversário, convocam incontáveis comunidades salvadorenhas e de muitas outras partes do mundo, que se reúnem para venerá-los e agradecer pelo seu testemunho.

A memória desses mártires da justiça, no entanto, é enigmática. Por um lado, fascina e atrai a muitos. Mas, por outro, não deixa de suscitar temor, porque sempre interpela. Obriga a nos perguntarmos por que sua vida foi arrebatada, que causa defendiam e quem são os responsáveis pelo seu assassinato. Uma vez respondidas essas questões, surge outra mais inquietante, pelo que implica e por ser uma interpelação pessoal. Os mártires da justiça também perguntam como vamos dar continuidade à sua causa.

Percepções do martírio

Por isso, muitos o ignoram, apesar de ter havido muita crueldade e generosidade. Outros silenciam e ocultam as razões de seu martírio para tirar sua importância. Mas muitos, sem medo e com alegria, colocam-nos no centro de sua fé, porque sua páscoa é a atualização mais real da páscoa de Jesus. Veem que os mártires se parecem com Jesus na vida e na morte. Consideram-nos seus discípulos na compaixão diante do sofrimento humano, na denúncia profética da injustiça e na fortaleza durante a adversidade e a perseguição. Veem que sua morte é como a de Jesus, uma consequência de sua vida. Uma vida entregue até a morte. Essa é a vida que Deus ressuscita. Dom Oscar Romero é o melhor exemplo dessas três atitudes. Alguns o acusam de extremismo político. Outros reconhecem seu sacrifício, mas apresentam-no como um sacerdote bom e santo. Para a maioria do povo salvadorenho e para muitos outros, é o profeta que denunciou a injustiça e o pecado. O bispo que defendeu os pobres e as vítimas. Por isso, reconhecem-no como seu pastor até o dia de hoje. Nele, encontram confirmada sua fé e fortalecida a sua esperança. Na realidade, reconhecer esses mártires não é tarefa fácil, porque também é preciso aceitar o mistério de dar a vida pelos pobres e pelas vítimas.

Mártires como Dom Romero, os jesuítas da UCA e as religiosas norte-americanas existem porque houve vítimas às quais defenderam de seus verdugos e porque a crueldade da qual era preciso libertá-las era intolerável para a razão humana e para a fé cristã. O sofrimento das vítimas os comoveu de tal maneira que dedicaram sua vida para aliviá-lo. Nunca o relativizaram, nunca pactuaram com ele. O sofrimento das vítimas se converteu para eles em um absoluto, porque nelas descobriram Deus. Os mártires dedicaram sua vida para libertar e para salvar os demais da injustiça e da opressão. De uma perspectiva teológica, lutaram para tirar o pecado do mundo. Por isso, sua entrega é compaixão e amor, mas com a particularidade de ser também defesa da vida dos oprimidos. Neles, a misericórdia se tornou paixão pela justiça e opção radical pelos pobres e pelas vítimas. Por isso, perseguiram-nos e os assassinaram.

A vida pela salvação

Quando os colocamos do lado das vítimas, os mártires se tornam eloquentes. Revelam-nos o mistério do mal, que lhes tirou a vida, e o mistério do bem, que os seduziu. As vítimas apontam para o absoluto, para aquilo que não podemos manipular, para os famintos e para os pobres, e para Deus, que se encontra a seu lado. Portanto, os mártires não podem ser lembrados sem mencionar as vítimas, que os moveram a dar sua vida. Seria quase preciso nomear cada uma delas, sem esquecer de nenhuma. Dessa forma, repararíamos a barbárie e lhes devolveríamos sua dignidade, e também compreenderíamos por que existem os mártires. A vida e a morte dos mártires da UCA nos mostram o caminho para nos aproximar ao mistério de Deus e nos animam a responder com eles a pergunta que dirige à humanidade desde o começo da história: O que fizeste de teu irmão e de tua irmã? Eles disseram a verdade sobre a realidade salvadorenha e mundial, deram motivos para a esperança e puseram sinais concretos da presença ativa da bondade de Deus. Dessa maneira, serviram à Companhia de Jesus e à Igreja, mas, em última instância, serviram aos pobres e a Deus. Definitivamente, os mártires e as vítimas nos remetem ao mistério de Deus. O que vamos fazer para dar continuidade à sua causa, à causa dos pobres e de Deus, é uma questão em aberto.

Os mártires da UCA sempre buscaram "a maior glória de Deus", um princípio fundamental da espiritualidade de Santo Inácio de Loyola . Em sua busca, encontraram, assim como Dom Romero e muitos outros, que a maior glória de Deus é que o pobre viva. Por isso, em vez de se comprazer com as conquistas e os êxitos da UCA, escutaram o clamor do povo salvadorenho e se colocaram a serviço de sua libertação. Moisés  acredita escutar, sobressaltado, uma voz que o chama para escutar "o clamor de um povo oprimido", que chegou até Deus. Essa voz não o convoca para admirar a grandeza e a beleza das imensas estruturas de granito que hoje nos assombram. Nelas, não se escuta nenhuma voz, nem a dos oprimidos, nem a de Deus. Fiéis ao chamado de um Deus que deseja libertar da injustiça e da opressão, os mártires se introduziram no centro da conflitividade salvadorenha. Não penetraram nela movidos pelo ódio, mas sim porque se compadeceram do povo salvadorenho. Compreenderam que se tratava de um chamado para colaborar com a sua libertação. Isso explica o alto preço que pagaram pelo seu atrevimento. Mataram-nos por transpassar o limite do permitido pelo poder injusto. Dom Romero dizia que introduzir-se no abismo da iniquidade era como tocar um cabo de alta voltagem sem nenhuma proteção.

Os mistérios da entrega

O martírio não ocorre, pois, por fazer o bem, mas sim por se introduzir no centro do conflito histórico. Ali onde se decide a vida e a morte da humanidade. Ellacuría dizia, provocativamente, que era necessário subverter a história para transformar o mal comum predominante na atualidade em um bem comum. Os mártires da UCA estavam convencidos da possibilidade de subverter a história para que os bens que eram comuns pudessem ser compartilhados por toda a humanidade. Acreditavam que a promessa libertadora de Deus poderia se realizar na história, porque já se encontra presente nela, desde a morte e a ressurreição de Jesus.

Os mártires pela justiça nos colocam diante do mistério de um amor desmedido, que entrega a vida livre, generosa e totalmente. Na causa do martírio, podemos encontrar certa racionalidade. Mas o fato mesmo de dar a vida não tem explicação satisfatória. Entregar a vida é um mistério diante do qual, como diante de todo mistério, devemos guardar silêncio. No entanto, é muito difícil aceitar que haja pessoas dispostas a dar a vida e que esse mistério aconteça entre nós. A vida entregue livremente por amor torna-se incompreensível para uma sociedade em que nada é gratuito e em que sempre há interesses egoístas no meio. Às vezes, tentamos buscar argumentos, mas é inútil. O egoísmo, a arrogância e a frivolidade impedem que reconheçamos a entrega livre aos demais. Por isso, os mártires e a grandeza de sua generosidade e de seu amor são um sinal profético, que só os limpos de coração podem ver.

Mesmo quando é difícil aceitar o mistério da entrega da vida por amor, os mártires são modelos dos quais estamos muito necessitados. São pessoas boas, que nos oferecem sua fé, sua esperança e sua generosidade e amor desmedidos. Neles, encontramos os valores fundamentais que podem nos converter à solidariedade, à compaixão e à paixão pela justiça. Neles encontramos uma possibilidade real para ser humanos. Mas essa possibilidade só é real se nos voltamos para eles, se nos deixamos iluminar por eles e se aceitamos seu desafio. Assim como o mensageiro do primeiro dia da semana de páscoa disse às mulheres que voltassem para a Galileia para percorrer o caminho de Jesus , eles também nos convidam hoje a percorrer esse mesmo caminho. Sem dúvida, é difícil caminhar como eles. Mas, com eles, o caminhar junto ao pobre e à vítima para Deus se torna mais fácil.

IHU On-Line - Qual é a proposta de Ellacuría para criar uma civilização melhor em termos humanos e libertadores?

Rodolfo Cardenal - Ellacuría propôs uma utópica civilização da pobreza como alternativa ao mal comum. O ideal de vida dessa civilização não é a pauperização universal. A pobreza, em si mesmo, sempre é um mal. Ellacuría a usa aqui para sublinhar sua relação dialética com a riqueza. As maiorias empobrecidas são produto de uma minoria que aproveita seu poder para enriquecer. Por conseguinte, a civilização da pobreza se contrapõe a uma civilização que acumula riquezas sem escrúpulo e que esbanja com exibicionismo obsceno. Uma civilização que, mesmo com conquistas científicas, tecnológicas e culturais inegáveis, já teria dado de si tudo o que poderia dar, tal como a crise mundial evidencia. Ao mesmo tempo em que presume esses avanços, tolera o maior fracasso humano: a destruição sistemática da natureza, de grandes grupos humanos, da família e da pessoa. Nem sequer seus beneficiários imediatos se livram de seu poder destrutivo. O afã de riquezas e de poder os desumanizou e arrebatou deles o encanto e o sentido da vida. Vivem na abundância, mas vivem entediados e frustrados.

A civilização da pobreza, em troca, encontra-se do lado das maiorias vítimas do despojo e da violência. Portanto, rejeita a acumulação de capital como motor da história e a posse e o desfrute da riqueza como princípio de humanização. Em contrapartida, propõe a dignificação do trabalho como princípio dinâmico e a satisfação das necessidades básicas e a solidariedade como fundamentos da humanização. O trabalho não se orienta para produzir capital, mas sim para assegurar a satisfação das necessidades básicas da população. Assim, pois, é meio para a perfeição do trabalhador e para a auto-realização pessoal. O ideal utópico consiste em que todos e todas disponham do necessário para satisfazer suas necessidades básicas e que o comum seja acessível para o uso e o desfrute de todos e todas. É o objetivo mínimo sem o qual a vida humana é impossível. Quando esse mínimo não é alcançado, a morte prevalece sobre a vida, e a humanidade se desumaniza, tal como ocorreu. Portanto, nenhuma solução à crise sistêmica do capitalismo será real sem uma ordem econômica e social que satisfaça essas necessidades de forma permanente e viável, que garanta o acesso ao comum e possibilite as condições para o desenvolvimento pessoal.

A solução não se encontra, por conseguinte, em elevar o consumo das maiorias ao nível das minorias privilegiadas. Isso é impossível, porque seria preciso potencializar a produção e o emprego de maneira desproporcional, porque os recursos materiais são limitados e porque tentar fazer isso equivale ao suicídio coletivo, tal como advertem os prognósticos do meio ambiente. Assim, pois, o padrão de consumo que a minoria privilegiada desfruta à custa da maioria da humanidade e que já atenta contra a viabilidade da vida não é humano nem ético.

Pode se objetar que a primazia do comum anula a dimensão pessoal. Mas isso é, adverte Ellacuría, confundir a iniciativa privada e privatizadora com a iniciativa pessoal. A apropriação privada de algo que, por sua natureza, é social, e, portanto, comum, é uma injustiça, e todos os seus efeitos também são injustos. Distribuir o bem comum com critérios privados e interesses particulares ou setoriais, apropriar-se daquilo que pertence aos demais por meio do despojo e impedir que outros se aproveitem de algo ao qual têm direito é contrário ao bem comum e à justiça. Os bens, concretamente, os econômicos, fundamentais para a estruturação social, são um direito universal, que não compete aos indivíduos isolados, mas sim às pessoas como integrantes da sociedade. Nunca se insistirá suficientemente, diz Ellacuría, que todo ser humano tem direito a desenvolver sua própria vida, sempre e quando o exercício desse direito não suponha excluir os outros. Em consonância com a tradição humanista e cristã, Ellacuría defende que o bem comum está acima do bem particular, e que a relação entre ambos os bens equivale à relação do todo com a parte.

A negação do bem comum

Na civilização da riqueza, ao contrário, predomina a parte sobre o todo. Pior ainda, a parte menor se impõe sobre a maior. Portanto, nega o bem comum, em benefício do bem particular. Então, este último deixa de ser bem e se torna utilidade egoísta. Na civilização da pobreza, em troca, todo bem particular remete ao bem comum porque, sem ele, o bem particular não é possível. Nela, predomina o todo sobre as partes. Nenhum indivíduo pode gozar de um bem se essa possibilidade é positivamente negada aos outros, concretamente, à imensa maioria da humanidade. A satisfação das necessidades de uma pessoa depende da satisfação das necessidades dos outros. A sociedade se desvirtua e se torna perversa quando nega aos seus integrantes os recursos materiais suficientes para que todos e cada um deles satisfaça essas necessidades. Por isso, o bem próprio é alcançado com o trabalho a favor do bem de todos. Dessa maneira, o indivíduo aproveita aquilo que o bem comum lhe oferece para conseguir seu próprio bem. O bem de cada pessoa, sem excluir nenhuma, só é alcançado com a promoção estrutural do bem comum, que expressa o fim e o bem da sociedade. Assim, pois, a partir da e para a pessoa, o bem comum e o bem particular são bens pessoais.

Reestruturação do capitalismo

O critério fundamental para reestruturar o sistema capitalista é a inclusão de toda a humanidade e a satisfação de suas necessidades básicas por meio da comunicação de bens. Portanto, a busca do bem-estar de um país ou de um grupo de países está, por princípio, excluída. Pois bem, a superação da desigual distribuição dos bens comuns exige viver em pobreza, ou pelo menos em uma austeridade severa, durante muito tempo. De novo, não porque sejam valores em si mesmas, mas porque não existe outra forma de superar a exploração e a injustiça, origem de todas as dominações e antagonismos, nem de alcançar formas superiores de humanidade. As respostas concretas necessariamente serão diversas, segundo as possibilidades reais, mas todas elas devem propiciar a vida negada. As maiorias empobrecidas mostram como é possível construir a utopia de uma civilização da pobreza, quando, em seu despojo, compartilham entre elas o pouco daquilo que dispõem. Sua solidariedade compartilhada cria bem comum, luta contra a morte e gera salvação.

IHU On-Line - Qual deve ser a responsabilidade sócio-política das universidades diante dos problemas sociais? Qual é a mensagem de Ellacuría nesse sentido?

Rodolfo Cardenal - Ellacuría e seus companheiros colocaram o "mais"  inaciano na realidade histórica em que a universidade se encontra inserida. Uma realidade em que predomina a pobreza massiva, irracional e injusta. Portanto, o grande problema da universidade é a vida da imensa maioria da humanidade empobrecida. Por consequência, a universidade, por sua própria natureza, deve centrar sua atividade intelectual nesse problema de sobrevivência humana. Sua contribuição é única, dada a multiplicidade de saberes que reúne em seu seio, e também necessário, porque a superação dos problemas mundiais exige saber e ciência. Por isso, é incompreensível e eticamente inaceitável que a universidade não se encarregue dessa realidade. Fazer da injustiça e do sofrimento humano o centro da atividade intelectual descentra a universidade, pois a retira de seus muros e a introduz na política, que também necessita de muito saber, ciência e ética. Assim, pois, uma universidade jesuíta deveria se caracterizar por um serviço incondicional à humanização de uma humanidade desumanizada.

A tarefa universitária deveria ser determinada por esse serviço. Quando a universidade se pergunta o que fazer, ela deve se colocar no lugar da humanidade pobre e sofredora, porque ela lhe mostrará o caminho. Quando se perguntar como fazer, a razão e a ciência a ajudarão a descobrir a verdade profunda da injustiça e da violência. Só o reconhecimento dessa realidade, o esforço para compreendê-la cada vez melhor e para formular propostas eficazes e viáveis lhe permitem descobrir sua missão libertadora. Tudo isso, sem menosprezar a excelência acadêmica. É assim como a intelectualidade universitária se encarna nas maiorias pobres, ao mesmo tempo em que permite que seu mundo penetre nela. Dessa maneira, a universidade se converte em saber e ciência daqueles que não têm voz e assume como próprios seus legítimos interesses e os defende como tais.

A descoberta da verdade da injustiça e da violência nos força a pronunciar uma palavra de denúncia e a anunciar uma sociedade justa, ou pelo menos equitativa, e em paz consigo mesmo e com os demais. O dinamismo da descoberta impede que a universidade guarde para si seus achados e propostas. Como a universidade se pronuncia contra a irracionalidade positiva, que confira às pessoas e às sociedades, sua palavra adquire poder e eficácia históricas. Ao se declarar contra a irracionalidade positiva – não simples ausência de racionalidade –, sua palavra se torna beligerante e não poucas vezes, sem buscar isso, a introduz no conflito com os poderes deste mundo. O trabalho universitário, portanto, não é passividade, nem contemplação, mas sim princípio de ação histórica. O destino martirial de Ellacuría e de seus companheiros é explicado porque se converteram em razão pública e processada da razão das maiorias salvadorenhas empobrecidas e silenciadas. Essa opção implica, às vezes, em compartilhar a sua morte.

Missão universitária

A missão universitária, tal como Ellacuría a entendia, exige a identidade cristã – e jesuíta. Portanto, aquela não precisa ser introduzida artificiosamente de fora ou de cima. A partir da perspectiva da salvação da história, a universidade e o cristianismo se propõem a libertar a humanidade da injustiça irracional e do pecado do mundo e construir uma humanidade e uma terra novas a partir dos pobres. Mas essas coincidências nem sempre são compreendidas corretamente.

A verdade e a liberdade aparecem com frequência na definição da missão de muitas universidades. Afirmam que buscam a verdade para ser livres, segundo a promessa do evangelho de João, "a verdade vos libertará" (Jo 8, 32). Sem dúvida, a verdade deve ser buscada, mas, como se encontra aprisionada pela injustiça, também deve ser libertada. Em sua carta aos Romanos, Paulo chama a injustiça de a grande repressora da verdade . Isto é, não há liberdade sem justiça para todos e todas. Portanto, a busca da verdade para ser livres implica também em lutar a favor da justiça. Uma liberdade sem justiça, em geral, é o privilégio de alguns poucos que vivem na abundância e no esbanjamento às custas do despojo da maioria. Nesse caso, a liberdade é contrária à verdade. Portanto, uma universidade que busca a verdade e a liberdade deve apoiar aquelas ações orientadas a transformar as estruturas opressoras. A liberdade como autodeterminação só é alcançada por um processo de libertação gradual, pessoal e institucional, de tudo aquilo que desumaniza. A utopia da humanidade e do cristianismo é a liberdade de todos para que cada um seja livre. A credibilidade de uma universidade que fala de verdade, liberdade e justiça está em como se encarrega de seu entorno histórico.

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