Edição 314 | 09 Novembro 2009

Uma virada nos conceitos tradicionais religiosos

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Márcia Junges e Jasson Martins

Método semelhante de Kierkegaard e Tillich para trabalhar tais conceitos inspira o pensamento de uma religiosidade que fale com a cultura de seu tempo, pontua Jonas Roos

Kierkegaard e Tillich trabalham de forma semelhante ao reelaborar e re-significar conceitos tradicionais religiosos. Ambos “são figuras inspiradoras para se pensar uma religiosidade que dialogue com a cultura de seu tempo e com as suas perguntas. Nesse diálogo é fundamental que se limpe os conceitos e se traduza fórmulas que já não comunicam mais muita coisa”. A análise é do filósofo Jonas Roos, com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. “Merece destaque nesses dois autores o método similar com o qual trabalham as questões existenciais e religiosas”, disse. É inconteste a influência de Kierkegaard sobre Tillich, mas deve ser mencionada, igualmente, a importância de Hegel, Schelling e Nietzsche para a composição de seu pensamento. Outro ponto interessante é que Tillich orientou Theodor Adorno, em 1933, em sua tese sobre o dinamarquês, frisa Roos. A tese intitulou-se A construção do estético, e está em fase de tradução pelo Prof. Dr. Álvaro Valls pela Editora Unesp.

Licenciado em Filosofia pela Unisinos, mestre e doutor em Teologia pela Fauldades EST, em São Leopoldo, Roos realizou pesquisa de pós-doutorado em Filosofia na Unisinos, em 2009. Atualmente, é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard apresenta em 13 de novembro a comunicação Kierkegaard e Tillich: pensadores de correlação. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o principal ponto de convergência entre o pensamento de Kierkegaard e o de Tillich?

Jonas Roos - Paul Tillich nasceu em Starzeddel, no leste da Alemanha (atualmente parte da Polônia). Em seu país, tornou-se pastor luterano e professor de Teologia Sistemática e Filosofia da Religião. Devido a sua filiação ao partido socialista religioso e oposição ao nazismo foi forçado a emigrar para os Estados Unidos em 1933, onde continuou publicando e exercendo a docência. Em seu pensamento, Tillich foi influenciado pela leitura de Kierkegaard, mas também pelo pensamento de Hegel, Schelling e Nietzsche, só para citar alguns dos nomes mais importantes. Importante dizer também que Tillich foi orientador de Adorno em sua tese sobre Kierkegaard. Há várias semelhanças entre os pensamentos de Kierkegaard e Tillich, assim como há diferenças importantes. Penso que merece destaque nesses dois autores o método similar com o qual trabalham as questões existenciais e religiosas.

Sabe-se que Kierkegaard desenvolveu toda uma estratégia de comunicação, muitas vezes usando a linguagem viva de seu tempo para colocar as perguntas existenciais a partir de situações concretas imaginadas em seu próprio contexto. Do interior dessas situações, surgem questões que são relacionadas a seu pensamento religioso. Ou seja, o religioso não é simplesmente apresentado em linguagem hermética e de modo distanciado, mas como algo que se relaciona às situações concretas e perguntas elaboradas a partir de situações vividas. Tillich parece ter aprendido com Kierkegaard esse modo de abordar as questões religiosas. O autor alemão desenvolve o que denomina “método de correlação”, onde, enquanto teólogo, procura elaborar as perguntas existenciais presentes na cultura e relacioná-las à mensagem cristã, interpretando esta para o contexto onde é recebida. Em ambos os autores, a elaboração de questões religiosas parte de perguntas existenciais presentes em situações culturais determinadas.

IHU On-Line - Há, nesses autores, uma busca de esclarecimento da relação entre religião e cultura?

Jonas Roos - Em Tillich esta relação está mais explícita. Um dos pontos fundamentais de seu pensamento é o que chama de Teologia da Cultura. Tillich entende as relações entre religião e cultura não como pólos opostos, mas como se esclarecendo mutuamente. No seu entendimento, a religião, em termos amplos, dá substância e sentido à cultura, e a cultura, por sua vez, engloba a totalidade das formas pelas quais a preocupação fundamental da religião pode se exprimir. A religião, por um lado, mesmo em suas formas mais secularizadas, e a cultura, por outro, estariam em uma relação de interdependência.

Kierkegaard é mais facilmente visto como crítico da cultura de seu tempo, principalmente em função de sua polêmica com a igreja dinamarquesa do séc. XIX. Entretanto, não se pode esquecer que a crítica já pressupõe uma relação. Kierkegaard tem toda uma preocupação com o modo como escreve seus textos e faz uso de uma comunicação indireta para tornar o seu leitor atento a certas questões. Nesse sentido, ele insere a sua comunicação na moldura cultural de seu tempo. Tal estratégia pressupõe um amplo conhecimento da própria cultura, pressupõe um conhecimento das questões existenciais-religiosas que trabalha e, além disso, o entendimento do modo de relacionar esses dois pólos, sem confundi-los, mas também sem eliminar a relação.

IHU On-Line - Nessa perspectiva de relação com a cultura, os conceitos religiosos tradicionais seriam abolidos?

Jonas Roos - Seria mais correto dizer que eles são reelaborados e ressignificados. Nesse sentido, Kierkegaard e Tillich trabalham de modo muito semelhante. Tillich escreveu um pequeno livro intitulado Dinâmica da fé (3ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985) – e que, sem dúvida, merece ser lido por quem se interessa por tais questões – onde inicia dizendo que fé é um desses termos que primeiro precisam ser curados antes de poder curar pessoas. Ou seja, há o reconhecimento de que existem grandes mal-entendidos com relação a termos religiosos e que o terreno precisa ser limpo antes de se poder trabalhar adequadamente nele. Há que se fazer uma limpeza de conceitos e procurar ressignificá-los e reinterpretá-los. Isso não significa, necessariamente, abolir. A respeito de seu trabalho, Kierkegaard disse que estaria escavando os conceitos cristãos, como que os limpando depois de séculos, tentando redescobrir suas formas originais. Ou seja, trata-se de um trabalho conceitual que tanto Kierkegaard quanto Tillich realizam com habilidade.

IHU On-Line - Este trabalho com conceitos religiosos envolve um processo filosófico?

Jonas Roos - Tillich entende que qualquer texto religioso lida com conceitos filosóficos como espaço, tempo, história, dever, liberdade, necessidade, etc. e que trabalhar com tais conceitos é tarefa filosófica, ainda que dentro da teologia ou da ciência da religião. Elaborar as perguntas existenciais presentes na cultura é trabalho filosófico. De semelhante modo, a articulação da resposta envolve, muitas vezes, uma tradução de conceitos religiosos para uma linguagem mais adequada a determinado contexto.

Tillich elabora a pergunta filosoficamente. Kierkegaard é mais socrático, elabora também a pergunta filosoficamente, mas realiza um processo de desconstrução das falsas respostas, colocando o ser humano diante de seu próprio vazio existencial. Kierkegaard parece consumir o falso conteúdo a partir de dentro, deixando a pessoa só com a casca, como fazia Sócrates. Mas, para Kierkegaard, a ironia não é a última palavra, é método que deve ser compreendido dentro da moldura de sua obra como um todo, o que, aliás, já se percebe com uma leitura atenta de sua tese sobre a ironia socrática.

IHU On-Line – Qual é a importância desta relação entre Kierkegaard e Tillich para os dias de hoje?

Jonas Roos - O alcance de obras de grandes pensadores é sempre amplo e difícil de estabelecer. Na relação específica que aqui proponho, entendo que tanto Kierkegaard quanto Tillich são figuras inspiradoras para se pensar uma religiosidade que dialogue com a cultura de seu tempo e com as suas perguntas. Nesse diálogo, é fundamental que se limpe os conceitos e se traduza fórmulas que já não comunicam mais muita coisa. Este procedimento é o que Tillich chamou de método de correlação e que, de certa forma, já estava presente em Kierkegaard.

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