Edição 314 | 09 Novembro 2009

Kierkegaard e Schopenhauer. Proximidades e rupturas

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Márcia Junges e Jasson Martins | Tradução: Jasson Martins

Música e tragédia são as formas mais belas de compreensão até mesmo do Absoluto. Kierkegaard eleva a arte como aspiração máxima do ser, explica Deyve Redyson Melo dos Santos. Rupturas se apresentam ao longo de suas obras

Natureza, arte, música são pontos que aproximam as filosofias de Søren Kierkegaard e Arthur Schopenhauer. A distância entre os pensadores se dá na maneira como veem Deus e compreendem alguns conceitos, além da percepção da existência, explica o teólogo e filósofo Deyve Redyson Melo dos Santos em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Quando Schopenhauer inicia sua obra O Mundo como vontade e como representação, afirmando que O mundo é minha representação, ele fundamenta o caráter objetivista de sua teoria e, de forma uníssona, se liga a Kierkegaard quando este pensa que o universo é dotado de grandes características, e uma delas é a vontade”, assinala. Deyve acentua que a arte, para Schopenhauer, como a música e a tragédia, “são as mais belas formas de se compreender até mesmo o absoluto. Kierkegaard, em seu ensaio sobre o belo musical, também eleva a arte como a aspiração máxima do ser. As rupturas estão inseridas no contexto de suas obras, a identificação do ideal de arte ou da arte ideal, da beleza e de suas formas, da interpretação do gênio e do artista e, por fim, de toda uma série de conceitos que encontramos no conjunto de suas obras”.

Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual Vale do Aracajú (UVA-CE) e em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), é mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e doutor em Filosofia pela Universidade de Oslo, na Noruega. Deyve é professor adjunto da Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Pesquisa na área de Filosofia da Religião com ênfase em Schopenhauer, Feuerbach, Kierkegaard, Nietzsche, Cioran e Idealismo Alemão. Escreveu, entre outros, Dossiê Schopenhauer (São Paulo: Universo dos Livros, 2009) e A Filosofia de Søren Kierkegaard (Recife: Elógica, 2004). Membro do Grupo de Pesquisa sobre a obra de Kierkegaard (CNPq), é o atual presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são os pontos de contato entre liberdade e vontade em Kierkegaard e Schopenhauer?

Deyve Melo dos Santos - A vontade para Schopenhauer será um dos pontos principais de sua concepção de filosofia. Para ele, a vontade é a coisa em si kantiana, e esta é a resposta que nenhum pensador conseguiu alcançar. Já a liberdade é o caminho para o encontro de si mesmo, isto é, Schopenhauer entende a liberdade como a ação primordial que fará do homem um ser que possa interagir com o mundo, com as coisas e com os seres. Interessante é pensar essas duas teorias juntamente com o pensamento de Kierkegaard, que tinha em Schopenhauer um exemplo de pensador, que elabora as categorias da filosofia e se põe a respondê-las. Ainda existe muita coisa a ser dita sobre a relação do pensamento de Schopenhauer e Kierkegaard, seja sobre a natureza, sobre a arte, sobre a música. Eles estão bastante próximos um do outro.

IHU On-Line - Não existe um antagonismo entre liberdade e vontade?

Deyve Melo dos Santos - Existe, e o fato deste antagonismo existir faz com que tanto em Schopenhauer como em Kierkegaard vejamos quais os questionamentos que hoje podemos fazer perante os conceitos de liberdade e vontade, se somos livres no pensar, ou se nossa vontade é condição de podermos ser quem somos. Penso que refletir sobre liberdade e vontade compreende duas tarefas difíceis, mas de importância fundamental à filosofia de hoje.

IHU On-Line - Como podemos compreender essas conexões de pensamento tomando em consideração a distância teórica que tem como ponto de partida tais autores?

Deyve Melo dos Santos - Realmente existe uma certa distância entre nossos dois autores, mas essa distância está presente na forma de ver Deus, na forma de compreender determinados conceitos e finalmente na forma de percepção da existência. Tentar fazer uma aproximação entre Schopenhauer e Kierkegaard é uma tarefa de constatar que a subjetividade e a objetividade são terrenos férteis quando falamos de natureza, de existência, de amor, de ironia, de vontade e, principalmente, do mundo como representação. Quando Schopenhauer inicia sua obra O Mundo como vontade e como representação, afirmando que O mundo é minha representação, ele fundamenta o caráter objetivista de sua teoria e, de forma uníssona, se liga a Kierkegaard quando este pensa que o universo é dotado de grandes características, e uma delas é a vontade.

IHU On-Line - E com relação aos seus pontos de vista sobre a religião, como é possível entender a aproximação entre ambos?

Deyve Melo dos Santos - No modo de entender a religião, a fé e o próprio conceito de Deus, Schopenhauer e Kierkegaard caminham diferentemente. A preocupação de Kierkegaard é com a instituição estatal que quer fazer de toda uma nação cristã e luta em busca de uma verdadeira concepção de cristandade. Schopenhauer condena toda e qualquer formulação de fé que seja baseada numa pretensa vida em dogmas e obrigações para com o divino. Na verdade, podemos também fazer um paralelo entre estas duas formas de ver a fé, pois ver o mundo como o pior dos mundos possíveis, como Schopenhauer faz, somente nos leva a entender que este mundo é um mundo de sentidos.

IHU On-Line - Qual é a diferença entre a crítica que fazem a Hegel?

Deyve Melo dos Santos - Schopenhauer é acusado de fazer muitos insultos a Hegel, Schelling,  Fichte.  É verdade. Schopenhauer afirma que Hegel é um filosofastro, um charlatão e várias coisas mais. Também podemos encontrar críticas bem formuladas com relação ao sistema da ciência de Hegel, que somente encontra espaço no absoluto. A crítica de Schopenhauer a Hegel está centralmente localizada na ideia do absoluto e na forma com que esse absoluto chega no sistema hegeliano. A típica pergunta que para Schopenhauer, e a mais importante é: por que, na Ciência da Lógica,  Hegel tem que começar com uma ideia de ser que não é o ser mesmo? ou o ser que podemos entender como ser? Kierkegaard segue o mesmo caminho: não aceita uma verdade absoluta, como Hegel quer entender no seu sistema. Kierkegaard acredita que Hegel nega a identidade de fundo irônico em Sócrates e por isso entendeu o mundo como universal. Para Kierkegaard, esta ironia como negatividade infinita absoluta é o eterno, isto é, a constituição máxima do real enquanto explicação dele mesmo. Interessante também é pensar o sistema da ciência de Hegel e de como sua influência fez com que tanto Schopenhauer e Kierkegaard estivessem tão próximos um do outro.

IHU On-Line - Como você entende as concepções de arte em Kierkegaard e Schopenhauer? Que aspectos apontam em comum e quais são as maiores rupturas?

Deyve Melo dos Santos - Em Schopenhauer, a arte e sua vinculação com a estética é o belo, que ele chama de metafísica do belo, que eleva a noção de beleza e arte até o conhecimento objetivo, isto é, um conhecimento estético. A arte, para Schopenhauer, juntamente com a música e a tragédia, são as mais belas formas de se compreender até mesmo o absoluto. Kierkegaard, em seu ensaio sobre o belo musical, também eleva a arte como a aspiração máxima do ser. As rupturas estão inseridas no contexto de suas obras, a identificação do ideal de arte ou da arte ideal, da beleza e de suas formas, da interpretação do gênio e do artista e, por fim, de toda uma série de conceitos que encontramos no conjunto de suas obras.

IHU On-Line - Enquanto presidente da SOBRESKI, qual é a sua percepção sobre os estudos de Kierkegaard no Brasil?

Deyve Melo dos Santos - Esta já é a X Jornada de Estudos sobre Kierkegaard, e cada vez mais vem aumentando o número de alunos de graduação e pós-graduação nas universidades brasileiras que têm despertado interesse em estudar o pensamento de Kierkegaard. Hoje já é possível fazer uma leitura aprofundada na filosofia de Kierkegaard, pois, já se encontram traduzidas diversas de suas obras realizadas diretamente do dinamarquês para o português. Uma das coisas que mais contribuiu para uma leitura errada de Kierkegaard eram as deficientes traduções que tínhamos, que cometeram erros grosseiros e nos levaram a interpretações que fizeram de Kierkegaard um simples pensador. Com as traduções de O Conceito de Ironia, Migalhas Filosóficas, As Obras do Amor e o extenso volume traduzido por Ernani Reichmann  na década de 1970, é possível uma leitura legítima de Kierkegaard. Com as traduções, vieram também estudos publicados em diversas editoras e universidades do país, livros como os de Alvaro Valls,  Marcio Gimenes de Paula  e Jonas Roos  também revelam como Kierkegaard tem ainda muito a oferecer à filosofia de hoje. Outro grande passo que foi dado foi a formação do grupo brasileiro de estudos de Kierkegaard, a SOBRESKI, que anualmente se encontra para discutir, compartilhar e trocar ideias e informações sobre o pensador dinamarquês. Cada vez mais cresce o número de pesquisadores com mestrado e doutorado que efetivam suas contribuições em revistas especializadas em filosofia e apresentam comunicações em encontros e congressos dentro do país. Com a perspectiva de mais traduções irem aparecendo, mais estudos e a continuidade das reuniões anuais da SOBRESKI, o pensamento de Kierkegaard somente tenderá a crescer no Brasil.

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