Edição 314 | 09 Novembro 2009

A filosofia de Kierkegaard como aporte ético à alteridade

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Márcia Junges e Jasson Martins | Tradução: Jasson Martins

Ainda que partindo do eu, filosofia do pensador dinamarquês pode fundamentar a defesa pela alteridade, pontua Patricia Carina Dip. Preeminência do ético sobre o metafísico é tributária a Levinas.

Mesmo que o “eu” seja o ponto de partida de Kierkegaard, “sua filosofia pode ser entendida como um aporte ético para os que desejam defender uma verdadeira alteridade, e não apenas pronunciar um discurso ‘politicamente correto’ sobre a diferença e a tolerância, porém ‘praticamente’ estéril”. A afirmação faz parte da entrevista a seguir, concedida, por e-mail, pela filósofa argentina Patricia Carina Dip à IHU On-Line. “Acredito que em Kierkegaard aparece a preeminência do ético por sobre o metafísico, da qual é devedor Levinas”, completa. Analisando as contribuições do pensador dinamarquês à política atual, ela considera que sua filosofia pode realmente inspirar a uma transformação nesse campo. “O descrédito no qual tem caído a participação política tradicional obedece a distintos fatores; não obstante, disso não se deduz a ‘morte’ do político, mas a necessidade de sua ‘ressurreição’. Neste sentido, a América Latina ocupa um papel certamente privilegiado, especialmente quando muitos intelectuais do primeiro mundo europeu tentaram convencer-nos de que havíamos ingressado na ‘pós-modernidade ou no pós-marxismo’. Ao contrário, creio que ainda não saímos da ilustração”, provoca. Outro tema discutido por Dip é a contraposição e aproximação entre Kierkegaard e Marx. O primeiro, diz ela, descreve a alienação psicológica da sociedade burguesa, enquanto o segundo se refere à alienação social. “A diferença reside na perspectiva da análise que cada um assume”.

Dip é doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires - UBA, professora da Universidad Nacional de General Sarmiento – UNGS, e pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas - CONICET. Durante os últimos dez anos, dedicou-se a estudar, discutir e traduzir a obra de S. Kierkegaard. Publicou artigos em diversas revistas e participou de várias publicações conjuntas. No ano de 2007, publicou sua tradução (com um estudo preliminar) de S. Kierkegaard, Johannes Climacus o el dudar de todas las cosas (Buenos Aires: Editorial Gorla, 2007). Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard, apresentou o tema Subjetividade e Praxis: a recepção fenomenológica de Kierkegaard na obra de Michel Henry.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Na sua percepção, qual é a situação atual dos estudos de Kierkegaard no campo latino-americano de fala espanhola?

Patricia Carina Dip - Em minha opinião, os estudos da obra de Kierkegaard na América Latina de fala hispânica têm progredido consideravelmente nos últimos vinte anos. Tanto no México como na Argentina, foram fundadas bibliotecas e sociedades dedicadas exclusivamente ao estudo, tradução e divulgação da obra do pensador dinamarquês. Além disso, a figura de Kierkegaard foi ingressando paulatinamente na academia. Isso permitiu que se escrevessem vários trabalhos de doutorado discutindo suas ideias. Apesar de tudo isso ser muito positivo, ainda falta a tradução das obras completas em espanhol.

Por outra parte, apesar de que o maior impacto das ideias de Kierkegaard seja um fenômeno que pode ser observado em escala mundial, isso não significa que tenha surgido interpretações “integrais” de sua obra ou pensadores que pensem “com” Kierkegaard, inclusive distantes de seus pressupostos básicos. Espero que isto seja só um sintoma momentâneo dos estudos sobre o dinamarquês. Quer dizer, que em uma primeira etapa se produzam estudos especializados, porém que logo possamos observar a influência de sua obra em escritos originais.

“Compreender” corretamente um filósofo da estatura de Kierkegaard supõe abandonar seu caminho teórico com o objetivo de formular o próprio caminho. Ainda que este tipo de formulações não tenha sido realizado na América Latina, confio que formarão parte do que me atrevo a denominar “segunda etapa” na recepção do pensamento do dinamarquês. Esta consistiria no abandono da “letra” e a elaboração de um pensar atual.

IHU On-Line - Kierkegaard nos inspira a compreender e a mudar a política atual? Por quê? Se sim, em que aspectos?

Patricia Carina Dip - É difícil responder ao que nos induz Kierkegaard na primeira pessoa do plural. Por isso direi apenas ao que induz a mim. Acredito que o “subjetivismo” da filosofia kierkegaardiana, quer dizer, seu acento na compreensão do homem como uma espécie de “animal” que “valora”, pode servir de inspiração para transformar o atual funcionamento da política. O descrédito no qual tem caído a participação política tradicional obedece a distintos fatores; não obstante, disso não se deduz a “morte” do político, mas a necessidade de sua “ressurreição”. Neste sentido, a América Latina ocupa um papel certamente privilegiado, especialmente quando muitos intelectuais do primeiro mundo europeu tentaram convencer-nos de que havíamos ingressado na “pós-modernidade ou no pós-marxismo”. Ao contrário, creio que ainda não saímos da ilustração.

Neste sentido, considero fundamental recuperar um dos elementos essenciais da atitude ilustrada, a saber, o “anticonformismo”. Acredito que não devemos “conformar-nos” nem com leituras herdadas, nem com visões de mundo e interpretações do político que procuram aquietar as tensões sociais que podem ser observadas no seio do capitalismo global.

Kierkegaard pode servir de porta-voz da necessidade de “interessar-se” pela existência do atual estado de coisas, no sentido de sermos capazes de julgar o que sucede na história com nossas próprias vozes. Na Crítica de la Ilustración Agnes Heller  diz que a alternativa é hoje “ou Kierkegaard, ou Marx”. Ela entende esta disjunção nos termos de ou bem elegemos o existencialismo individualista, ou bem a revolução socialista. Em certo sentido, me vejo inclinada a dar-lhe razão.

IHU On-Line - Como você analisa as trajetórias pessoais de Kierkegaard e Marx  e os impactos que estas (a biografia) tiveram em suas filosofias?

Patricia Carina Dip - Em termos gerais sou inimiga das biografias. Especialmente do abuso em torno  de sua utilização de que têm sido objeto os leitores de Kierkegaard. Não tem sentido tentar fundamentar o desenvolvimento de uma filosofia em aspectos relativos à vida íntima de quem a elabora. Um trauma infantil não conduz necessariamente à formulação de uma filosofia existencial, assim como tampouco a pobreza à teorização sobre a revolução social. Este tipo de abordagem me parece totalmente absurdo.

No entanto, acredito que há um modo muito mais rico de pensar a relação entre a “vida” e a “obra”. Trata-se de observar até que ponto o autor foi “consequente” com sua proposta. Um pensador como Hume  nos induziria a crer que este tipo de exigência é quase “irrealizável”. Apesar de que, em certo sentido, isto seja correto, penso que um pensamento incapaz de ser consequente com seus próprios pressupostos, se torna indefectivelmente estéril.

Neste sentido, tanto Kierkegaard como Marx são modelos de intelectuais que expressam a necessidade de viver de maneira comprometida. Podemos inclusive pensá-los como autores complementares. Enquanto Kierkegaard nos exige um compromisso individual e privado, seja com o divino ou com o demoníaco, ou para dizê-lo com Nietzsche,  que elejamos o bem ou o mal, o compromisso ao qual nos propõe Marx possui um sentido político social, ou bem nos identificamos com os valores da burguesia, ou bem com os do proletariado.

IHU On-Line - Pensando no aspecto do indivíduo, como entende a contraposição de suas filosofias, de Marx e Kierkegaard?

Patricia Carina Dip - Existe uma tendência habitual, baseada na leitura literal das declarações do próprio Kierkegaard, que leva a apresentá-lo como o filósofo cuja categoria fundamental é a noção de indivíduo. Embora de um ponto de vista filológico isto seja assim, é importante discutir que sentido tem a individualidade para Kierkegaard. Durante certo tempo, acreditei que se tratava do indivíduo apenas preocupado por suas circunstâncias, mesmo quando fosse apresentado sob o corretivo do “amor ao próximo”. Hoje tendo a considerar que, se a postura kierkegaardiana não é revolucionária, tampouco coincide plenamente com um mero reformismo. Inclino-me a pensar que o caráter do indivíduo kierkegaardiano é “psicológico”; e entendido em chave contemporânea acrescentaria que o modelo que o dinamarquês apresenta para evitar a recaída deste na “alienação” é a praxis cristã do amor ao próximo. Neste sentido, o dinamarquês não está longe do jovem Marx, também preocupado por resolver o problema da alienação própria da sociedade capitalista. Em termos gerais, diria que enquanto Kierkegaard descreve a alienação “psicológica” da sociedade burguesa, Marx descreve a alienação “social”. Ambos diagnosticam que o mal do mundo burguês é a alienação. A diferença reside na perspectiva da análise que cada um assume. Esta diferença, não obstante, é fundamental, posto que dela se deduzem distintas filosofias. A filosofia kierkegaardiana que se centra na descrição de fenômenos psicológicos e a filosofia marxiana que descobre um novo modo de pensar a história.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da crítica de Kierkegaard e Marx para o pensamento continental?

Patricia Carina Dip - Levando em conta que considero a “globalização” como o modo no qual o capitalismo se expressa hoje, produzindo e justificando um fosso cada vez mais irrecuperável entre opressores e oprimidos, as condições históricas que se faziam necessárias para Marx pensar o socialismo não foram modificadas. Daí segue que ainda tem sentido trabalhar em prol da realização de um futuro socialista. Com isto quero dizer que as polêmicas em torno do fim das ideologias e a construção de democracias liberais me parecem parte de um programa teórico político que não compartilho e que denuncio como “tendenciosas”.

Neste contexto, Marx se torna mais atual do que nunca. Em algumas universidades latino-americanas, reaparece a necessidade de repensar o legado marxista, e isso me parece muito importante, ainda que insuficiente. Só poderemos avaliar até que ponto o marxismo se atualizou quando o modelo de produção capitalista tiver esgotado. Este esgotamento não é automático, mas depende de que os sujeitos históricos estejam dispostos a revitalizar a luta de classes. De modo que, em última instância, a atualidade do marxismo só poderá ser determinada pela história.

Pois bem, a atualidade de Marx não exclui a de Kierkegaard. Neste ponto me parece que a análise de Agnes Heller merece ser repensada. Um dos temas mais caros ao pensamento do dinamarquês, o problema da angústia, pode ser tomado como chave para entender a vigência de suas preocupações. Assim como as condições históricas que Marx tinha in mente ainda permanecem, as problemáticas da “psicologia da angústia” e a “ética da decisão” também. A profundidade do legado kierkegaardiano reside em certo grau de “universalidade” que possui seu discurso para compreender os fenômenos psicológicos e morais.

IHU On-Line - Quais são as principais chaves de leitura que esses pensadores nos fornecem para pensarmos a alteridade na sociedade pós-metafísica?

Patricia Carina Dip - Em primeiro lugar, o qualificativo “pós-metafísico” me parece complexo devido à infinidade de alternativas que abarca. Tanto Heidegger  como Nietzsche e o próprio Kierkegaard, entre outros, foram críticos de um certo modo de fazer metafísica. No entanto, isso não é suficiente para incluir todos eles em um mesmo modelo teórico. A ontologia fundamental, o niilismo e o cristianismo não podem ser identificados, simplesmente. Em segundo lugar, não acredito que seja possível defender a vigência da filosofia sem assumir algum modo, mais ou menos crítico, de entender a metafísica. Por último, me parece importante discutir a assunção de certas modas filosóficas que a maioria das vezes nos impedem de pensar.

Dito isto, acredito que em Kierkegaard aparece a preeminência do ético por sobre o metafísico, da qual é devedor Levinas.  Neste contexto, a ética cristã do amor ao próximo permite, ainda que o dinamarquês se ocupe de pensar o eu antes que ao outro, retirar derivações importantes para quem esteja interessado em formular uma “filosofia da alteridade”. Apesar de que o ponto de partida de Kierkegaard é o eu, sua filosofia pode ser entendida como um aporte ético para os que desejam defender uma verdadeira alteridade, e não apenas pronunciar um discurso “politicamente correto” sobre a diferença e a tolerância, porém “praticamente” estéril. Este aporte reside em compreender a singular presença do outro como um imperativo moral. Neste sentido, o dinamarquês nos obriga a atuar ainda quando não possamos formular uma “filosofia da alteridade” propriamente dita.

No que a elaboração de uma tal filosofia diz respeito, acredito que é iminente sua necessidade. Una análise clara sobre as exigências da mesma nos conduziria a uma crítica do discurso pós-moderno sobre a “diferença”. Na formulação desta crítica, o marxismo poderia ocupar um papel fundamental na hora de descrever o sentido ideológico do programa teórico da filosofia da diferença. O antídoto contra a ideologia que pretende ser inclusiva “na teoria” aceitando, não obstante, a exclusão na “prática” ser constituída pela “filosofia da praxis”.

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