Edição 310 | 05 Outubro 2009

Uma originalidade que vem da especificidade

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Graziela Wolfart

Para Vera Haas, Cabral toca a História, a literatura e a paisagem do Brasil

A grande contribuição de João Cabral de Melo Neto para a literatura brasileira, segundo a professora da Unisinos, Vera Haas, é de que, no texto dramático do escritor, há o uso mais intenso de recursos de retomada de palavras e de sentidos. Outra contribuição importante, continua a professora, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “pode ser a escritura do Brasil, não por meio de narrativas, como vinha ocorrendo nos últimos anos, mas de textos dramáticos em que a tônica não é somar, acrescer características, mas tirar, diminuir, limpar dos excessos para cruzar sentidos aparentemente inconciliáveis”. Com essa poética, explica, “João Cabral responde criticamente ao aviltamento humano e à busca brasileira por uma identidade mediada pela natureza exuberante e pelo palavreado vivo e fácil tomado à oralidade”.

Vera Haas possui graduação em Comunicação Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, onde, atualmente, é professora, e em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Também na UFRGS, realizou o mestrado em Letras e sua dissertação intitula-se O Autor Implícito: um colecionador.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a originalidade de João Cabral? Qual sua especificidade dentro da literatura brasileira que justifica sua permanência?

Vera Haas - Bem, diria que a originalidade cabralina advém de sua especificidade. Primeiramente, percebemos que João Cabral produz um texto literário que, de um lado, busca romper com a tradição lírica literária brasileira (e, efetivamente, inova!) porque ele desmonta os recursos usuais de nossa lírica e desloca rimas, assonâncias e aliterações do centro (conceitual e formal) do poema lírico, lugar ocupado pela evidência das construções da imagem poética. E o tom que o escritor ensaia é o tom seco, sem fluidez: o tom da poesia deve permitir a composição de imagens como a seca e o rio, a moça e o trem, a mulher e a casa, o mar, o canavial, a bailarina, o edifício... Desse movimento de composição do escritor, provém o segundo passo: uma poesia que se desnuda, evidenciando o que a crítica convencionou chamar a máquina do poema (penso aqui em um texto de Benedito Nunes, A educação pela pedra). Nesse sentido, João Cabral talvez inove de tal maneira que ainda não encontramos muitos autores que dialogam com sua estética, senão parcialmente, como é o caso de Arnaldo Antunes, cuja poesia tem como uma das vertentes a poética cabralina.

IHU On-Line - Que leitura do Brasil é feita por João Cabral?

Vera Haas - A leitura do Brasil que encontramos em Cabral dependerá muito da obra que focalizarmos, afinal, todo escritor tem uma trajetória. Considerando a forma, os primeiros livros de João Cabral (Pedra do sono ou Os três mal-amados, por exemplo) apresentam um diálogo com a tradição brasileira. Particularmente, as obras revisam recursos técnicos e metáforas que, apesar dos movimentos estéticos passados, ainda se apresentavam como fórmulas residuais intocadas, apresentando a estagnação da herança literária. Formalmente, isso equivale a uma visão lúcida do cenário das letras no país e a uma consciência da atitude criadora e ousada do poeta brasileiro, uma vez que João Cabral pensa não apenas a poesia brasileira, mas a lírica do ponto de vista universal, como mostra seu ensaio Joan Miró, obra prima de teoria da arte e da literatura. As obras literárias acima destacadas demonstram, ainda, os gêneros literários caros ao autor, a lírica e o drama. Ou seja, Cabral diz o Brasil fugindo às narrativas. Aliás, convém lembrarmos que Cabral preferirá a forma do auto não para reproduzir o tom das vozes regionais, mas para desnudar as formas de dizer o mundo. Quanto à representação do país por meio de personagens e/ou vozes, se tomarmos como exemplo um de seus textos mais conhecidos, Vida e morte Severina ou auto de Natal pernambucano, encontramos uma representação do retirante nordestino, figura de um povo desvalido, sem nada seu que não o próprio corpo, ao qual caberá, apenas, em morte, uma cova rasa no latifúndio da seca. Nesse texto dramático, tanto a forma auto quanto o protagonista representam um país que abandona seu povo, um país de paisagens secas e povo mendicante. Ao final do texto, surpreende-nos uma esperança diversa daquela a que nos acostumamos como filhos de um país de matas e natureza abundante. Como percebeu Antonio Secchin  ao estudar a “poética do menos” cabralina, a esperança reside no menos, na pequena e esquálida vida de um Severino que nasce apesar de tudo o que não tem, e que cresce apesar das perdas já preditas em seu nascimento. Já em um texto formalmente mais ousado, como O auto do frade ou poema para vozes, o escritor utiliza recursos que vão da representação da “contação” de histórias à projeção de filmes. Desse modo, apesar do caráter datado dos eventos do auto, consegue colocar em cena uma nação em que progresso tecnológico, consciência intelectual e iluminista e práticas alicerçadas em expressões do saber popular convivem. Mas trata-se de uma convivência em que essas perspectivas de mundo não se harmonizam, antes, convivem como vozes fundamentalmente diferentes entre si, de modo que interagem apenas indiretamente. Possivelmente, esse seja um dos motivos pelos quais Cabral utiliza os três gêneros literários para a composição do seu Poema para Vozes. O texto representa um Brasil que, no curso de sua História, não conseguiu reunir essas vozes tão dissonantes.

IHU On-Line - Como a senhora analisa a representação de Frei Caneca na poesia “Auto do Frade”, de João Cabral de Melo Neto?

Vera Haas - Quando escrevi minha dissertação, O autor implicado: um colecionador, analisei as gentes e o frade, personagens que ocupam boa parte do auto. Frei Caneca existe nessa inter-relação porque o Auto do frade é um texto dramático. Caneca é a voz racional, lúcida como o sol do Recife, ou seja, clara demais para as gentes (aliás, claridade dos ossos, do Iluminismo e do sol nordestino, na perspectiva do escritor). Embora almeje a civil geometria, sabe que não a conquistou e não a verá. Frei Caneca é um homem brasileiro que, embebido pela paisagem escaldante e clara e pelo povo que apadrinhou, usufrui intensamente de sua consciência e de tudo o que o cerca nessa caminhada à forca. Segundo os espectadores, bêbado, Caneca está pleno de lucidez, de tal modo, que não consegue alcançar a lógica do povo que o acompanha (numa oposição à História). Ainda pela poética do menos, o frei faz-se homem para ser glorificado pelo povo. A excomunhão o aproxima da gente comum e, na visão dessa gente, de Nossa Senhora do Carmo. Cabral subverte o tema de origem dos autos ao colocar em foco não um homem que se santifica, mas um frade que, excomungado, ganha a beatitude e a lenda. Com essa representação, o escritor realça o homem e suas ideias, as dicotomias entre os intelectuais esclarecidos e o povo ao qual se dirigiam.

IHU On-Line - De que maneira João Cabral unia, em sua obra, a arte da poesia, a história e a questão social?

Vera Haas - Bem, o modo pelo qual Cabral pratica essa união deve-se aos recursos que utiliza para a composição do poema. Como mencionei acima, o desnudamento da máquina do poema permite que, pari passu, o autor (ou, ainda, o auto implicado) possa evidenciar a sobreposição de campos de sentido. Podemos retomar as metáforas que compõem o perfil de Frei Caneca do Amor Divino: claridade dos ossos, do Iluminismo e do sol nordestino. Ou ainda, as palavras claras como a geometria, as palavras de bêbado porque palavras do coração. Com imagens que remetem a elementos concretos ou a ideias, ao interseccionar os campos de sentido que as palavras evocam, João Cabral demonstra a sagacidade e a intelectualidade do frei e, ao mesmo tempo, suas parciais cegueira e surdez. Cabral toca a História, a literatura e a paisagem do Brasil.

IHU On-Line - Em que medida os versos de “Auto do Frade” exprimem a força política e revolucionária das palavras de Frei Caneca?

Vera Haas - Bem, diria que, certamente, esses versos não exprimem as palavras de Frei Caneca. Força revolucionária, sim, mas distinta da empreendida por Caneca. Frei Caneca e João Cabral são homens de seu tempo, séculos os distanciam. João Cabral tem uma visão crítica, mas arejada, do Brasil. Ele não retoma temas históricos repisados. Ao contrário, desloca a centralidade de Tiradentes para a nossa Independência, colocando no lugar de centro outro andor, o excomungado Caneca, filho de tanoeiro. Essa é a figura histórica que escolhe para repensar a História brasileira e, em particular, a História do povo e dos intelectuais que buscavam uma República para a nação. Essa é a contribuição do diplomata, escritor e homem de esquerda. Talvez outro aspecto da força reflexiva e crítica de Cabral sejam algumas das fontes com as quais ele dialoga para compor esse texto. O escritor utiliza trechos de cartas de Caneca a uma de suas afilhadas. Nesses excertos, o frade descreve o calabouço, a escuridão e os ossos ali espalhados. Os eventos que envolveram a tentativa de enforcamento do frade carmelita, por outro lado, remetem a narrativas constantes em livros de História. E as metáforas cabralinas para a relação da forca com o condenado dialogam particularmente com expressões utilizadas para relatar a ida do condenado até a forca, presentes na coleção Grandes personagens da nossa História, publicação da editora Abril Cultural na década de 1970. Trata-se de um escritor que reflete sobre a escrita de sua História e sobre as escolhas de sua Literatura. A palavra como força coloca-se como o elemento que aproxima a força do escritor e do frade, filhos de Pernambuco.

IHU On-Line - Qual a principal contribuição de João Cabral em relação ao teatro poético brasileiro?

Vera Haas - No texto dramático cabralino, há o uso mais intenso de recursos de retomada de palavras e de sentidos. Essa é sua grande contribuição. Claro, podemos aliar a isso a ênfase a uma lírica que, permeando o texto dramático, traz à tona os recursos da lírica moderna na visão de Adorno  e Habermas.  Mas isso pode ser aplicado a toda a obra de João Cabral de Melo Neto. Outra contribuição importante pode ser a escritura do Brasil, não por meio de narrativas, como vinha ocorrendo nos últimos anos, mas de textos dramáticos em que a tônica não é somar, acrescer características, mas tirar, diminuir, limpar dos excessos para cruzar sentidos aparentemente inconciliáveis. Com essa poética, João Cabral responde criticamente ao aviltamento humano e à busca brasileira por uma identidade mediada pela natureza exuberante e pelo palavreado vivo e fácil tomado à oralidade.

IHU On-Line - Como a questão da morte aparece na obra de João Cabral de Melo Neto?

Vera Haas - Na obra do escritor, a morte aparece ligada aos problemas sociais. Ora relaciona-se à miséria, ora a eventos políticos e revolucionários. Por vezes, ainda utilizando o recurso da intersecção de sentidos, Cabral cruza a morte e a festa em que todos comem juntos e se reúnem, cruzando aspectos culturais e pobreza. Outras vezes, a morte pode ser equiparada ao sono, ou ainda à escuridão, à surdez, ou a uma incapacidade de escuta, à certa perda dos sentidos, como ocorre no Auto do frade.

IHU On-Line - Que aproximações podemos fazer entre João Simões Lopes Neto,  João Guimarães Rosa  e João Cabral de Melo Neto?

Vera Haas - Em que pese ter sido essa a pesquisa de minha dissertação, farei aqui uma aproximação grosso modo pelo espaço que temos. Analisei Contos gauchescos, Primeiras estórias e Auto do frade ou Poema para vozes. Os três escritores de nome João, o sul-rio-grandense, o mineiro e o pernambucano, aproveitam a “contação” de histórias e, particularmente, a atitude dos contadores como recursos para a representação de homens desvalidos e brasileiros. Mas cada um desses grandes escritores fará isso de modo diferente, daí o ineditismo que cada um alcançou em sua produção literária e o encantamento que nos oferecem até hoje.

Leia mais...

Vera Haas já concedeu outra entrevista à revista IHU On-Line.

* “Cinema como arte que incita ao questionamento”: Quanto vale ou é por quilo?. Entrevista publicada na IHU On-Line número 225, de 25-06-2007.

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