Edição 310 | 05 Outubro 2009

Leitores tratados “a palo seco”

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Graziela Wolfart

Homero Araújo defende que a obra de João Cabral de Melo Neto, além de ser argumentativa, racional, elegante e formalizada, produz impacto e desestabiliza o leitor. Neste sentido, é uma poesia que está sempre disposta à provocação

Os traços mais evidentes da obra de João Cabral de Melo Neto na visão do professor Homero Araújo são: “concisão na frase, argumentação (muitas vezes irônica e maliciosa), vocabulário tendendo ao concreto e à precisão”. Já a poesia “tem métrica e ritmo destacados, embora seja uma métrica diversa da que geralmente se usa em língua portuguesa”. Araújo explica, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, que, na obra de João Cabral “adota-se uma espécie de linguagem elevada e limpa de coloquialidade, talvez para melhor transmitir o raciocínio e alguma abstração; os quais se dedicam, no entanto, a objetos definidos”. E entende ainda que “João Cabral tratou de estabelecer uma dicção muito própria e reconhecível, e sua perspectiva sempre foi de poeta crítico, que pensa e enuncia problemas”.

Homero José Vizeu Araújo possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-doutorado pela Sorbonne Nouvelle-Paris III. Atualmente, é professor no Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Tem várias obras publicadas, entre as quais citamos O Poema no Sistema - a peculiaridade do antilírico João Cabral na Literatura Brasileira. (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como entender a atualidade de João Cabral de Melo Neto? O que faz dele um clássico da literatura brasileira?

Homero Araújo - João Cabral, ao que se percebe, continua sendo lido, o que é já um dado da sua atualidade. Por outro lado, sua obra é usada na escola, não muito, mas está lá. Esta é uma definição de clássico, aquele autor que se lê em aula, na sala de aula, na classe. Seja como for, o andamento argumentativo da poesia cabralina e seu enunciado, mais ou menos linear, o afasta de metáforas sugestivas e misteriosas, como Murilo Mendes  e Jorge de Lima,  ou mesmo do Drummond dos anos 1950, de Claro Enigma. Sem falar que a disposição cerebral do poeta barra o sentimentalismo ou a emoção, tão evidentes em Cecília Meirelles ou mesmo em vários momentos de Fernando Pessoa.  Enfim, João Cabral tratou de estabelecer uma dicção muito própria e reconhecível, e sua perspectiva sempre foi de poeta crítico, que pensa e enuncia problemas. Há poemas que parecem ensaios. Por exemplo, este sobre Auden,  outro poeta.

W.H. AUDEN
(1905-1973)

Se morre da morte que ela quer.
É ela que escolhe seu estilo,
sem cogitar se a coisa que mata
rima com sua morte ou faz sentido.
Mas ela certo te respeitava,
de muito ler reler teus livros,
pois matou-te com a guilhotina,
fuzil limpo, do ataque cardíaco.

IHU On-Line - O que caracteriza a linguagem de João Cabral em suas obras?

Homero Araújo - Acho que críticos como João Alexandre Barbosa  e Benedito Nunes  já estabeleceram os traços mais evidentes: concisão na frase, argumentação (muitas vezes irônica e maliciosa), vocabulário tendendo ao concreto e à precisão. A poesia tem métrica e ritmo destacados, embora seja uma métrica diversa da que geralmente se usa em língua portuguesa.

IHU On-Line – O que faz de João Cabral de Melo Neto um poeta antilírico? Quais suas peculiaridades nesse sentido, principalmente em relação ao poema?

Homero Araújo - É o próprio João Cabral que se define como antilírico na dedicatória de A educação pela pedra: “A Manuel Bandeira esta antilira para seus oitent’anos”. Na poesia de João Cabral, retomar a linguagem prosaica e próxima da fala, com sua música e ritmos próprios, era uma tarefa que não implicava uso de gíria ou coloquialidade, pelo menos não no sentido mais óbvio. E nisso ele está muito distante de Drummond, quem ele muito admirava. Em sua obra, adota-se uma espécie de linguagem elevada e limpa de coloquialidade, talvez para melhor transmitir o raciocínio e alguma abstração; os quais se dedicam, no entanto, a objetos definidos. Exemplo?

A palavra seda

A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

É como a coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
(...)
 
IHU On-Line - Que visão João Cabral de Melo Neto tinha de seus leitores? Em que sentido ele enfrenta seus leitores?

Homero Araújo - Para tentar responder de forma simples uma questão complexa, é possível dizer que Cabral trata seus leitores “a palo seco”, nos termos do poema famoso. Enfim, o poeta não deixa de ser razoavelmente explícito sobre seu método.

A palo seco

(...)

A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra,
o ferro contra o ferro;

a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.

A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.
 
Assim, o resultado aponta para uma maneira que, para além de ser argumentativa, racional, elegante e formalizada, deve produzir impacto, desestabilizar o leitor. Neste sentido, é uma poesia que está sempre disposta à provocação.

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