Edição 310 | 05 Outubro 2009

A poesia de Cabral: puro olhar em movimento

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Graziela Wolfart

Conhecedor de João Cabral como poucos, José Castello lembra que o escritor tinha claro que viver é lutar, viver é movimentar. O poeta, de certa forma, é um toureiro, que gira e gira (escreve e escreve) para dominar a vida.

“João Cabral foi um homem dividido. Mais de uma vez admitiu que vivia em estado de forte turbulência e desordem interiores, e que, para conter essa turbulência, precisou criar a poesia seca, substantiva, áspera que todos conhecemos. Quando falo do homem sem alma, falo do ideal que Cabral criou para si mesmo. Ele desprezava o lirismo, a música e tudo o que lembrasse os sentimentos. Seu ideal (sua couraça, sua proteção) foi a imagem do homem sem alma que construiu como poeta. Mas, sob essa capa, uma grande agitação fervia, e sua poesia, na verdade, é o resultado desse conflito”. É assim que José Castello busca definir o escritor João Cabral de Melo Neto. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, Castello destaca que João Cabral “é um poeta que nega os princípios dominantes da poesia e a imagem dominante do poeta. Por isso também foi um gênio”. 

José Castello, nascido em 1951, no Rio de Janeiro, é um dos mais prolíficos críticos literários do Brasil hoje. Colabora regularmente com O Globo, Valor Econômico e Rascunho, entre outras publicações. Depois de 20 anos trabalhando com jornalismo literário, Castello escreveu o livro Inventário das sombras (Rio de Janeiro: Record, 1997), no qual conta os detalhes dos encontros que teve com escritores como Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar, Nelson Rodrigues, Manoel de Barros e José Saramago, com o jornalista João Rath e com o artista plástico Arthur Bispo do Rosário. É também autor de perfis e biografias, como Vinicius de Moraes: o poeta da paixão (São Paulo: Companhia das Letras, 1993); Pelé – Os dez corações do rei (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004); e João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo (2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006). Também é autor do romance Fantasma (Rio de Janeiro: Record, 2001), originalmente concebido como um volume sobre Curitiba, cidade onde Castello está atualmente radicado.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - João Cabral é um homem sem alma ou um homem de alma sufocada?

José Castello - João Cabral foi um homem dividido. Mais de uma vez admitiu que vivia em estado de forte turbulência e desordem interiores, e que, para conter essa turbulência, precisou criar a poesia seca, substantiva, áspera que todos conhecemos. Quando falo do homem sem alma, falo do ideal que Cabral criou para si mesmo. Ele desprezava o lirismo, a música e tudo o que lembrasse os sentimentos. Seu ideal (sua couraça, sua proteção) foi a imagem do homem sem alma que construiu como poeta. Mas, sob essa capa, uma grande agitação fervia, e sua poesia, na verdade, é o resultado desse conflito.

IHU On-Line - Quem foi João Cabral de Melo Neto? Quais as principais características de sua personalidade? O que mais marcou sua vida e morte severina?

José Castello - Foi um homem discreto, tímido, seco. Na companhia dos amigos mais chegados, porém, se abria, falava muito, derramava-se. Foi um homem contraditório, como todos somos. A diferença é que soube arrancar dessa ambiguidade uma poesia genial.

IHU On-Line - O que a trajetória pessoal de João Cabral denuncia que justificaria sua dificuldade em lidar com os próprios sentimentos? Como isso aparece na sua obra?

José Castello - Suas poesias são secas, substantivas. Desprezam a retórica, o derramamento, trabalham com versos curtos, chegam ao osso das coisas. Ora, um homem que precisa se conter tanto, se vigiar tanto, se reduzir tanto, é porque carrega dentro de si um grande derramamento. Se temos um mundo interior tranquilo, não precisamos de tantas defesas, de tantas armaduras. As defesas e armaduras são a prova da agitação que carregava dentro de si.

IHU On-Line - O que o senhor guarda de mais significativo dos encontros que teve com João Cabral?

José Castello - Justamente a maneira como Cabral se vigiava, se continha. A toda hora, me pedia para desligar o gravador, porque não queria gravar confidências ou intimidades. Censurava-se com grande rigor. Era, porém, uma censura rica, ela o levava à “alma” das coisas. Cabral dizia que o poeta é como um escultor, que corta, corta e corta a sua pedra, até que a escultura surja de dentro dela.

IHU On-Line - Como a melancolia do poeta se refletia em suas obras?

José Castello - A melancolia de Cabral era difusa e discreta. Ele a escondia e disfarçava. Se expressa na dor de cabeça crônica que o acometeu durante toda a vida e que, na juventude, um tio, que era psiquiatra, chegou a tratar, sem sucesso, com internamento e choques de insulina. Ela só aparece na obra de modo discreto. Aparece pelo avesso – na secura e avareza que tinha com as palavras. O João Cabral que conheci era um homem muito melancólico. Ele reclamava porque a melancolia, dizia, era um mal do século XIX, e, no século XX, os médicos insistiam em tratá-lo como um deprimido. “Não sofro de depressão, sou melancólico”, insistia em me dizer, “mas os médicos não entendem isso”. A melancolia, ao contrário da depressão, não é uma doença, é uma marca do temperamento e do mundo íntimo.

IHU On-Line - Como João Cabral via a morte?

José Castello - Cabral tinha medo da morte. Declarava-se ateu, mas, apesar disso, afirmava que acreditava no inferno. Tinha medo da morte porque tinha medo do inferno. E não se importava com essa contradição – que, aliás, é profundamente humana.

IHU On-Line - Como entender a ênfase de João Cabral no aspecto geográfico em suas obras?

José Castello - É resultado de sua vida de diplomata. Viveu em muitos países e continentes diferentes. Foi um andarilho compulsivo, conhecia intimamente os países e cidades em que viveu. Tudo isso o converteu em uma espécie de poeta andarilho, um poeta andante. Andava para escrever, escrevia para andar. Sua poesia é puro olhar em movimento.

IHU On-Line - Na sua visão, a obra de João Cabral se sobrepõe à vida dele?

José Castello - Vida e obra estão sempre interligadas. Mas essa ligação não é mecânica, não é porque vivi tal coisa que devo obrigatoriamente escrever tal poema ou tal poesia. É essa também uma relação contraditória, de choque, de luta. João tinha claro que viver é lutar, viver é movimentar. O poeta, de certa forma, é um toureiro, que gira e gira (escreve e escreve) para dominar a vida.

IHU On-Line - Podemos estabelecer algum paralelo entre Clarice Lispector e João Cabral?

José Castello - Cabral era pernambucano, Clarice  viveu alguns anos de sua infância em Pernambuco. É o único paralelo que vejo. Aliás, vejo outro: no meu entender, são os dois maiores escritores da literatura brasileira no século XX. São dois gênios. Dois escritores absolutamente singulares, cuja escrita não se confunde com a de ninguém.

IHU On-Line - Pode explicar sua frase "É negando a poesia que Cabral se faz poeta"?

José Castello - Quando falo em “negar a poesia”, falo em negar a poesia dominante, a imagem oficial e banal do poeta. O poeta é visto em geral como um lírico – Cabral odiava o lirismo. Como um homem que vive no mundo da lua – Cabral era um realista. Como um homem que trabalha com as subjetividades – o objeto da poesia de Cabral é o mundo objetivo. Ele é um poeta que nega os princípios dominantes da poesia e a imagem dominante do poeta. Por isso também foi um gênio. 

Leia mais...

José Castello já concedeu outra entrevista à revista IHU On-Line.

* Ninguém lê Clarice sem ser devastado pelo que lê”. Entrevista publicada na IHU On-Line número 228, de 16-07-2007.

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