Edição 310 | 05 Outubro 2009

O poeta da escassez, da antimusicalidade e da racionalidade

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Graziela Wolfart

Na visão de Nylcéa Pedra, João Cabral de Melo Neto encontra na literatura medieval espanhola a forma para expressar a secura do seu sertão

Ao esboçar as principais características da obra de João Cabral de Melo Neto, a professora Nylcéa Pedra aponta o racionalismo e o concretismo como elementos constantes em seus versos. “O controle da palavra, da emoção, o uso da palavra como ‘coisa’ e não sentimento são as características que mais se evidenciam. Não podemos deixar de falar da sua antimusicalidade, refletida no laborioso trabalho de construção dos versos, rompendo com as rimas comumente utilizadas na língua portuguesa e fazendo uma escolha pela rima toante. E destaco ainda outra característica, derivada do seu exercício de crítico na poesia, que é discutir e apresentar o seu próprio fazer poético em seus poemas”. Na entrevista que segue, concedida especialmente à IHU On-Line por e-mail, Nylcéa afirma acreditar que “o grande legado deixado por João Cabral tenha sido sim escrever à sua maneira, conceber a sua forma poética, única, cabralina. Pode haver maior legado que esse?”. E considera importante lembrar que o poeta “sempre professou seu antimusicalismo, sua aversão às rimas fáceis e melódicas. Encontrar uma estrutura rítmica, cortante, seca, foi como encontrar o sertão na poesia”.

Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra é licenciada em Língua Espanhola e mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Língua e Literatura Hispânicas pelo Consejo Superior de Investigaciones Científicas, de Madrid/Espanha. Atualmente, é aluna do programa de Doutorado em Letras da Universidade Federal do Paraná. É professora de língua, literaturas em língua espanhola e suas metodologias em faculdades particulares em Curitiba.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais os pontos centrais do tema escolhido pela senhora para a sua tese de doutorado em andamento “Um João caminha pela Espanha: a reconstrução do espaço na obra poética de João Cabral de Melo Neto”?

Nylcéa Pedra - Para responder a esta pergunta acho interessante explicar primeiro como conheci a relação de João Cabral de Melo Neto com a Espanha. Em uma aula de Teoria da Literatura, ainda na graduação, o professor Adalberto Müller levou certa manhã o poema “Lembrando a Manolete” e nos chamava a atenção para a construção formal do poema. Os encavalgamentos entre os versos recriavam o movimento do capote do toureiro em cada uma das passagens do touro. Aquilo me impressionou muito não apenas pelo trabalho de construção dos versos, mas pela habilidade do poeta em transitar por uma cultura que não era a sua (vale lembrar que nesta época tinha lido apenas “Morte e vida severina”). E fiquei com isso na cabeça. Anos depois, lendo a obra completa de João Cabral constatei que, além de touros, o poeta dedicava versos ao canto e baile flamencos, aos toureiros, pintores, escritores e ao espaço espanhol. A ideia central da tese surgiu desta constatação, e defendo uma progressiva e consciente aproximação do poeta à cultura e ao espaço espanhóis. É interessante observar este movimento nos versos. O primeiro olhar de João Cabral para a Espanha é o do intelectual que encontra seus pares nas artes ditas nobres como a pintura e a escritura. Dessa época são os poemas “Homenagem a Picasso”, “Encontro com um poeta”, “Medinaceli” e o importantíssimo estudo crítico de Cabral sobre a obra do pintor Joan Miró. Destaco um segundo encontro, o do poeta com as artes populares, a corrida de touros e o flamenco. Mais do que utilizá-las unicamente como argumento para os poemas, encontra nelas um símile do seu fazer poético. Assim, “A palo seco”, “Estudios para uma bailadora andaluza” e “Alguns toureiros” exemplificam a profunda identificação do poeta com as artes genuinamente espanholas. Neste “caminhar artístico” João Cabral chega a seus dois últimos livros (Sevilha Andando e Andando Sevilha) à Espanha que lhe calou mais profundamente: a Sevilha trianeira (cigana), das ruas estreitas que sabem acolher o homem, a uma Sevilha de bolso que a partir de então será sempre levada pelo poeta.

IHU On-Line - Como se dá a reconstrução do espaço na obra de João Cabral? 

Nylcéa Pedra - Gosto de comparar esta reconstrução ao movimento da lente de uma câmera fotográfica. Como disse antes, João Cabral vai se aproximando gradativa e conscientemente tanto da cultura como do espaço espanhol. Nos primeiros versos sobre a geografia espanhola, “Campos de Tarragona”, para colocar um exemplo, o poeta está com a lente totalmente aberta e observa de longe, sem tocar e sem deixar-se tocar por aquela terra. Lentamente começa a dar o zoom e encontramos um poema como “Chuvas”, no qual, ainda a contragosto, se empapa com a chuva galega. O grande zoom é feito então em Sevilha. Tudo é percebido naquela cidade: ruas, praças, ruídos, cheiros e movimentos. E tudo toca o poeta que cria um símile bastante interessante: a cidade é a mulher e a mulher é a cidade, como sugerem os títulos Sevilha andando e andando Sevilha.

IHU On-Line - Qual a importância da questão geográfica e do espaço na obra de João Cabral? Quais as principais marcas dos retratos geográficos cabralinos feitos desde o sertão até Sevilha?

Nylcéa Pedra - Dia desses, Carlos Machado, escritor curitibano, perguntou-me se eu achava que João Cabral era um poeta regionalista. Respondi que mais do que regionalista, João Cabral era, para mim, “espacialista”, já que não acredito que qualquer escritor possa colecionar regionalismos. Explico: indiscutivelmente há marcas regionais na poesia cabralina. Além dos poemas de vertente social - me refiro a “O rio”, “O cão sem plumas” e “Morte e vida Severina” – nos quais o referente espacial – e regional – aparece explicitamente na imagem do Capibaribe, no desejo do retirante de chegar ao Recife ou na secura do Sertão, há outra série de poemas que contextualiza a presença de Pernambucano como o espaço referencial do poeta. Ideia que se reforça quando lemos as primeiras entrevistas dadas por João Cabral ao chegar como diplomata na Espanha. O poeta diz-se feliz por ter encontrado terra tão árida como o seu Recife (referindo-se à meseta castelhana), e os primeiros poemas espaciais espanhóis de fato confirmam este reconhecimento. No entanto, aparece Sevilha, oposto absoluto do Recife: verde, exuberante, feminina, com vida e recebe do poeta nada menos que um reconhecimento em dois livros que já citei “Sevilha Andando e Andando Sevilha” e também a edição apresentada em Sevilha, em 1992, para a comemoração dos 500 anos da chegada de Colombo à América, “Poemas Sevilhanos”. E então acho que posso responder à pergunta sobre qual a importância da questão geográfica e do espaço na obra de João Cabral com os próprios versos do poeta. Refiro-me ao poema “Autocrítica” que diz “Só duas coisas conseguiram/ (des)feri-lo até a poesia:/ o Pernambuco de onde veio/ e o aonde foi, a Andaluzia./ Um, o vacinou do falar rico/ e deu-lhe a outra, fêmea e viva,/ desafio demente: em verso/ dar a ver Sertão e Sevilha”.

IHU On-Line - O que caracteriza a passagem de João Cabral de Melo Neto do medieval espanhol à secura do sertão?

Nylcéa Pedra - Não diria passagem, mas encontro. João Cabral encontra na literatura medieval espanhola a forma para expressar a secura do seu sertão. Há o registro de uma entrevista com o poeta na qual disse que não vale a pena escrever para o povo sem a forma que ele usa. Mais tarde afirmou ter encontrado esta forma na literatura medieval espanhola. E o que chama a atenção de Cabral nos poemas medievais espanhóis? A construção dos versos. O legado deixado por Berceo no uso da cuaderna vía (versos de quatorze sílabas, com rimas assonantes, distribuídos em dois hemistíquios de sete sílabas) será a forma métrica trabalhada por João Cabral em “O Rio” e também nos seus dois outros poemas de vertente social, feitos para serem lidos em voz alta. Esses versos longos, com rimas assonantes, dão ao poema um aspecto narrativo, de prosa. E então compreendemos a epígrafe de Berceo na abertura de “O rio”: “Quiero que compongamos io e tú una prosa”. Mas também podemos falar de outra secura, a das rimas, essas assonantes tão pouco usadas na poesia de língua portuguesa e que serão adotadas por João Cabral desde o seu encontro com a literatura medieval espanhola. Vale lembrar que o poeta sempre professou seu antimusicalismo, sua aversão às rimas fáceis e melódicas. Encontrar uma estrutura rítmica, cortante, seca, foi como encontrar o sertão na poesia.

IHU On-Line - Em que sentido podemos perceber as “gotas galegas” no fazer poético de João Cabral de Melo Neto? Qual a influência na sua obra do período vivido na Espanha?

Nylcéa Pedra - Quando fui convidada para dar uma conferência sobre a relação de João Cabral de Melo Neto e a Galícia, de saída, acreditei que seria impossível estabelecer grandes relações entre ambos, por isso, titulei a fala “gotas galegas”, pequenas coisas galegas. De fato, o único poema onde se lê explicitamente a presença da Galícia é em “Chuvas”, poema no qual aparece também uma referência a poeta galega Rosalía de Castro. Descobri que, com Rosalía, João Cabral divide semelhante preocupação social, espacializada nos versos. Rosalía escrevia em sua época sobre os homens galegos que precisavam emigrar pela falta de condição de vida na Galícia, eram seus Severinos. Para isso, descrevia a sua terra. Vejo isso também em “Morte e vida Severina”. A saga de Severino é resultado da secura de sua terra. Mas o que mais me chamou a atenção neste contato de João Cabral com a literatura galega foi o uso do modelo de romance de tenção. Em entrevista concedida a Antônio Carlos Secchin,  o poeta afirma que “Morte e vida Severina” é uma homenagem a todas as literaturas ibéricas, e que a conversa de Severino com Seu José, antes de o menino nascer, obedecia ao modelo de tenção galega. Há uma coerência muito grande nesta escolha. Na mesma entrevista, João Cabral afirma que a literatura galego-portuguesa não lhe despertava nenhuma atenção porque era extremamente musical. Dentre os modelos de romance da literatura galega medieval (me refiro especialmente às cantigas de amigo, de escárnio e maldizer e aos romances de tenção) João Cabral escolhe a menos musical e mais narrativa. Para os que não sabem, o romance de tenção se caracteriza pelo jogo de duas vozes, uma contrariando o que a outra afirmara anteriormente. É o mesmo exercício dos repentistas nordestinos. Creio que o poema que melhor ilustra o uso desta estrutura de tenção é o “O Motorneiro do Caxangá”, nos movimentos de ida e vinda do motorneiro, como na construção de duas vozes, é possível conhecer as diferentes faces do sertão.

IHU On-Line - Como Cabral se relacionava com a cultura galega?

Nylcéa Pedra - Não poderia dizer que não se relaciona porque estaria negando as colocações que fiz há pouco. No entanto, posso dizer que esta relação é bastante pontual - no diálogo com Rosalía de Castro, no uso da tenção galega - e incomparável com a mantida com Sevilha. Pessoalmente, acredito que o poema “Chuvas” responde o motivo desta ausência. Galícia é abundante, nas chuvas, na musicalidade da língua, na expressão dos sentimentos, nela, como diz um verso do poema “se perde o tento” coisa inconcebível para o poeta da escassez, da antimusicalidade e da racionalidade.

IHU On-Line - Que paralelos podem ser traçados entre João Cabral de Melo Neto e Vinícius de Moraes? Por que a senhora considera que ambos são “modernos à sua maneira”?

Nylcéa Pedra - Este estudo é bastante provocativo. Quis unir dois poetas sempre analisados como antagônicos e encontrar elementos que possibilitassem uma aproximação entre eles. Fiz isso através do legado deixado pelo primeiro poeta modernista, Charles Baudelaire.  Mais do que discutir a forma de construção dos versos – que coincidiria com a afirmação cabralina de que Vinícius é um poeta da inspiração e ele, Cabral, da transpiração – preferi trabalhar com dois temas. E a escolha da mulher e da cidade foi bastante consciente. Três poetas, três mulheres, três espaços, mas com um elemento em comum: a intensidade. As mulheres se inscrevem nos espaços que habitam – seja Paris, Rio de Janeiro ou Sevilha – e, por vezes, se metamorfoseiam nestes espaços, e então são elas Paris, Rio e Sevilha. Verifica-se que a intensidade vivida no caminhar pelas cidades é inversamente proporcional a do contato com a mulher, e, para os três poetas, nesta relação entre o feminino e a cidade caberiam os versos cabralinos: “Se viver-te será curto, /.../ que viver-te seja intenso”.

IHU On-Line - Quais as características gerais da obra de João Cabral de Melo Neto e qual o maior legado que ele deixa para a literatura brasileira e mundial?

Nylcéa Pedra - Essa pergunta é realmente complicada porque me estenderia muito para poder respondê-la de maneira minimamente satisfatória, mas vamos tentar. Primeiro as características gerais que assinalam todos os grandes e bons estudos sobre o poeta e pelas quais conhecemos o fazer poético de João Cabral de Melo Neto. O racionalismo e o concretismo – e aqui estou falando na escrita de versos com coisas concretas – são constantes em seus versos. O controle da palavra, da emoção, o uso da palavra como “coisa” e não sentimento são as características que mais se evidenciam. Não podemos deixar de falar da sua antimusicalidade, refletida no laborioso trabalho de construção dos versos, rompendo com as rimas comumente utilizadas na língua portuguesa e fazendo uma escolha pela rima toante. E destaco ainda outra característica, derivada do seu exercício de crítico na poesia, que é discutir e apresentar o seu próprio fazer poético em seus poemas. Há uma cartilha cabralina em seus poemas, e um leitor atento a encontra e a compartilha com o poeta. Estas são as características mais gerais. Agora, com a minha tese pretendo demonstrar que o espaço – já não apenas entendido como a folha de papel onde o poeta escreve os seus versos – assume uma importância significativa na poesia de João Cabral. Defendo a ideia de uma poesia espacial-geográfica cabralina, seja a do Recife, seja a de Sevilha. E ainda há outra característica que me parece importantíssima, a que me referi várias vezes ao longo desta entrevista, que é a capacidade do poeta de contar “casos” em versos, esse caráter narrativo à primeira vista tão oposto ao construtivismo dos poemas. Respondendo a sua segunda pergunta. Sinceramente não acredito em legados no sentido de “heranças” deixadas pelos poetas que serão utilizadas por seus seguidores. Acredito que o grande legado deixado por João Cabral tenha sido sim escrever à sua maneira, conceber a sua forma poética, única, cabralina. Pode haver maior legado que esse?  

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Nylcéa Pedra - Falar de João Cabral é para mim sempre motivo de alegria e apreensão, afinal, é uma responsabilidade tamanha falar de quem, para mim, é um dos grandes – se não o grande – nome da poesia brasileira. E encerro com uns versos do poeta, relembrando essa nossa “sina” de não ser sós, da necessidade do outro para perenizar o que somos e, no caso de João Cabral, o que escreveu: “Tecendo a manhã: Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe este grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo entre todos os galos.”

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