Edição 310 | 05 Outubro 2009

Um poeta sempre alerta às armadilhas da palavra

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Graziela Wolfart

Antonio Carlos Secchin define João Cabral de Melo Neto como cauteloso e desconfiado das representações convencionais do real. Por isso, nos ensina a não acreditar fácil demais no que as palavras dizem, nem na própria palavra do poeta.

O que faz de João Cabral de Melo Neto um escritor tão atual? “Sua visão completamente reformuladora do conceito de lirismo em língua portuguesa”. A resposta foi dada pelo escritor e professor Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras, que concedeu a entrevista que segue, com exclusividade, à IHU On-Line por telefone. Secchin considera Cabral, em relação à sua obra poética, “um criador, um desbravador de um território muito pouco explorado”, ao referir-se à característica do “lirismo de subtração”, o que ele chama de “poesia do menos”. Na visão de Antonio Secchin, “os dez anos da morte de João Cabral, paradoxalmente, talvez nem lembrem o período que se passou, porque ele continua vivo”. E sobre a contribuição do poeta para a literatura brasileira, ele destaca que “não há como negar que essa virada da poesia brasileira em oposição à sua tradição lírica e confessional é devida à presença marcante de João Cabral”.

Antonio Carlos Secchin é graduado em Português - Literaturas de língua portuguesa, e mestre e doutor em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pós-doutor pela Universidade Federal do Pará. É professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ e autor de inúmeros livros, entre os quais destacamos João Cabral: a Poesia do Menos (São Paulo: Duas Cidades, 1987. 2.a ed. rev. ampliada. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999); e Guia dos Sebos (4.a ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/SABIN/FBN, 2003). Organizou, entre outros, Os Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto (São Paulo: Global, 1985. 9.a ed. 2003); Primeiros Poemas de João Cabral de Melo Neto (Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1990); e Poesia Completa e Prosa, de João Cabral de Melo Neto (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Passados dez anos da morte de João Cabral de Melo Neto, onde reside a importância de relembrarmos seu legado à literatura brasileira?

Antonio Carlos Secchin – Os dez anos da morte de João Cabral, paradoxalmente, talvez nem lembrem o período que se passou, porque ele continua vivo. Há vários escritores que necessitam dessas efemérides para que voltem à tona uma vez que costumam cair num limbo depois do falecimento. Eu tenho a impressão de que Cabral é relembrado sempre. Ele continua um poeta muito vivo. A sua obra continua produzindo efeitos na literatura brasileira. E basta dizer que antes desses dez anos já saíram obras completas dele, no ano passado, pela Nova Aguilar, que eu tive a honra de organizar, e vários volumes da editora Alfaguara, publicando espaçadamente o conjunto da obra de João Cabral. Isso demonstra que é sempre bom fazer rememoração, mas que Cabral está acima dessas efemérides.  

IHU On-Line – E por que o senhor acha que ele continua tão atual?

Antonio Carlos Secchin – Pela sua visão completamente reformuladora do conceito de lirismo em língua portuguesa. Ele criou um caminho muito próprio, muito pessoal, e, a partir da sua novidade, isso gerou efeitos em vários outros poetas - e esses efeitos nem sempre são bons, a meu ver, porque Cabral é tão pessoal que aqueles que querem segui-lo correm o risco de se tornarem “subcabrais”. Mas não há como negar que essa virada da poesia brasileira em oposição à sua tradição lírica e confessional é devida à presença marcante de João Cabral.

IHU On-Line - O que o senhor entende pela “poesia do menos” em João Cabral de Melo Neto?

Antonio Carlos Secchin – Isso foi trabalhado na minha tese, que se transformou no livro João Cabral. A poesia do menos. Defini essa poesia do menos por uma espécie de lirismo de subtração: ao invés de inflar o poema de confessionalismo ou de subjetividade, ele deseja que o poema mostre um real externo. É claro que isso não existe. No próprio ângulo de capturar no real essa ou aquela paisagem já está o olhar e a mão do poeta. Mas ele simula essa ausência do poeta para que as coisas possam ter voz e não sejam apenas mediadas pela voz subjetiva do próprio poeta.

IHU On-Line - E por que se trata de uma poesia solitária?

Antonio Carlos Secchin – É solitária na medida em que não encontramos antecedentes dessa linhagem na poesia em língua portuguesa, nem no Brasil, nem em Portugal. Ele é um criador, um desbravador de um território muito pouco explorado. A maior analogia na literatura brasileira que se pode fazer com Cabral, aliás, feita por ele mesmo, não se encontraria na poesia, e sim na prosa: no texto de Vidas Secas, de Graciliano Ramos . 

IHU On-Line - Como se dá o processo de apropriação do real por João Cabral?

Antonio Carlos Secchin – Esse processo se dá através de uma visão sempre desconfiada das representações convencionais do real. Se dá também através da desconfiança de que as palavras, muitas vezes, quando fingem mostrar alguma coisa, a estão escondendo. Então, a palavra pode ser um embuste, uma maneira de valorizar o lugar comum, de anestesiar a percepção. E João Cabral, contrariamente a isso, é sempre alerta às armadilhas da palavra, para que nós não acreditemos fácil demais no que elas dizem e para que não acreditemos nem na própria palavra do poeta. Ele é sempre cauteloso e desconfiado.  

IHU On-Line - Como se caracteriza o feminino na obra de João Cabral?

Antonio Carlos Secchin – É um feminino também inovador, porque nós não temos uma poesia sentimental ou amorosa na obra de João Cabral. Prefiro dizer que nós temos uma poesia erótica: o feminino é como um objeto, plástico visualmente, e prazeroso para o poeta que vai descrevendo-o sem qualquer envolvimento subjetivo, apenas pela beleza que esse objeto provoca na sua percepção. E é muito sintomático disso o fato de que essas personagens femininas, primeiro, não são nomeadas, e, segundo, não aparecem em relação afetiva ou mesmo amorosa com o poeta, apenas distanciadas, como se ele estivesse diante de um quadro e o descrevesse prazerosamente.

IHU On-Line - Quem foi João Cabral de Melo Neto? O que marcou a vida e morte cabralina?

Antonio Carlos Secchin – Ninguém sabe quem se é. E a literatura é uma maneira de desesperadamente ou pacificamente tentar encontrar uma resposta para a pessoa tentar saber quem é. E ninguém é nada em definitivo; tudo é um processo. João Cabral ficou a vida inteira tentando descobrir quem era João Cabral. Creio que não conseguiu. E ainda bem.

IHU On-Line - Por que Cabral nunca deixou de ser João?

Antonio Carlos Secchin – Porque ele tem uma poesia cerebral, metalinguística e abstrata, mas também tem uma poesia popular e de comunicação imediata. A partir disso, dessa concepção que ele próprio reconhece ao falar das duas águas da sua poesia, é que me ocorreu essa possibilidade de comentarmos que existe uma poesia de Cabral e existe uma poesia do João.

IHU On-Line - Qual a importância da questão geográfica na obra de João Cabral? Onde entra aqui a questão do regionalismo?

Antonio Carlos Secchin – A importância é absoluta, porque ele é de tal modo apegado ao sertão, a Pernambuco e ao Recife, que ele não se considera um poeta brasileiro, mas um poeta nordestino ou pernambucano. Disse também – e aí a gente não concorda, mas cita a ideia do poeta – que não possuía imaginação, apenas memória. Como se pudesse haver a memória sem imaginação. Mas isso é apenas para sublinhar a importância que ele concedia ao elemento concreto, histórico, geográfico, bem localizado. Ele só podia escrever a partir de experiências que viveu. Como viveu a infância em Pernambuco e tem na marca de seu próprio corpo e de sua sensibilidade essa imagem inapagável, ele passa grande parte de sua obra revisitando esses lugares da origem.

IHU On-Line - Que relações podemos estabelecer entre João Cabral, Drummond e Manuel Bandeira?

Antonio Carlos Secchin – Entre João Cabral e Bandeira  o fato de serem primos. E primos muito diferentes. Creio que João Cabral, apesar de nunca haver formalizado uma crítica direta a Manuel Bandeira, percebia, neste grande poeta também pernambucano, um tipo de produção completamente contrária à que ele, Cabral, valorizava. Bandeira era a representação do lirismo em nossa poesia. E não foi à toa que, quando João Cabral publicou, em 1966, A educação pela pedra, ele resolveu homenagear o primo, dedicando a ele este livro, mas com uma dedicatória um pouco “envenenada”, que dizia: “A Manuel Bandeira, esta antilira pelos seus 80 anos”. E quanto a Drummond, foi a maior influência no início de sua carreira. João Cabral dedicou dois livros a Carlos Drummond.  Disse que aprendeu com ele a fugir da melodia do verso tradicional. Mas depois essa influência foi muito moderada e creio que até pessoalmente os dois se separaram, em termos de amizade.

IHU On-Line - Como era a Espanha de João Cabral de Melo Neto?

Antonio Carlos Secchin – João Cabral construiu uma visão muito intensa da Espanha. Não há dúvidas de que a Espanha, principalmente, a região da Andaluzia, e o Nordeste, sobretudo Pernambuco, são as marcas geográficas mais fortes da obra de João Cabral. Ele tem mais de cem poemas dedicados à Espanha. E não tem um verso sequer dedicado ao Rio de Janeiro, onde também morou. Numa entrevista concedida a mim, ele comentou que reencontrou um pouco da paisagem nordestina nos arredores de Barcelona, portanto, a partir de uma identidade. Mas depois eu estudei o assunto e observei que há a marca do feminino na Espanha, enquanto que Pernambuco é o masculino, é o áspero, o agressivo. E o feminino não só na cidade acolhedora e maternal de Sevilha, mas também nas bailadoras do cante flamenco. Não é a toa que essa vertente erótica de João Cabral tenha se desencadeado depois de sua experiência na Espanha. 

IHU On-Line - Para o senhor, o que representou o reconhecimento de seu trabalho pelo próprio João Cabral?

Antonio Carlos Secchin – É uma enorme alegria, porque eu sei que João Cabral, até por ser diplomata, era muito seletivo na distribuição de elogios aos seus estudiosos, porque eram tão numerosos e ele supunha que se falasse mais de um ou de outro, um terceiro ou quarto poderia ficar melindrado. Então, ele tinha muita cautela nesse ato de tornar público o seu endosso de determinada leitura. Quanto a mim, só posso ficar muito lisonjeado e agradecido por essa acolhida de João Cabral que se traduziu em vários níveis. Não apenas na frase que ele disse, que reconhecia meu trabalho como aquele que tinha levado mais longe a análise do seu projeto, mas também em outros elementos, como ele ter me escolhido para ser o organizador de uma série chamada “os melhores poemas” que a Editora Global publica há muitos anos com sucesso, e aí eu tinha pouco mais de 30 anos e havia opções muito qualificadas para a indicação dele, e ele fez questão de que fosse eu o organizador. Depois ele me confiou os originais de seus poemas de juventude, que eu publiquei pela Faculdade de Letras da UFRJ, intitulado Primeiros poemas. E mais tarde, quando eu disputei a titularidade da Faculdade de Letras com uma conferência sobre a obra de João Cabral, ele também me honrou com sua presença. Ele que não gostava de conferências, pois preferia sempre ler que ouvir, lá esteve para prestigiar este evento. Fora o fato de haver me acolhido sempre que o solicitei. Quando ele publicava um livro, eu sempre o lia com atenção e depois pedia um encontro com ele para discutirmos aspectos da obra.

IHU On-Line – Mudando de assunto, pode falar um pouco sobre sua coleção pessoal de livros?

Antonio Carlos Secchin – De fato, tenho uma biblioteca bastante boa, devo ter cerca de doze mil volumes. Tudo começou pelo meu interesse em ler, conhecer muito. Queria me aprofundar em autores que não eram canônicos, que não eram consagrados pela historiografia. Isso inevitavelmente me levou à caixa de edições que eram raras: com os poetas do século XIX, que nunca eram reeditados. E nesse contato com esses poetas e autores fora do cânone, se desenvolveu em mim um apego ao objeto livro. Claro que o mais importante é o texto, o que está escrito, mas o objeto não deixa também de revelar aspectos da cultura, por exemplo, saber que tipo de papel se usava ou qual era a ortografia. Muitas edições modernas suprimem informações que você só encontra nas primeiras edições, como prefácio e comentários. Notei que, para simplificar e gastar menos papel, as edições modernas não são fiéis às edições antigas. 
 
IHU On-Line – E essa sua ligação com os livros leva o senhor ao mundo dos sebos...

Antonio Carlos Secchin – Também. Escrevi um guia comentado dos sebos de quase todas as capitais do Brasil, porque conheço e compro muito em sebos, e achei que era um serviço quase que de utilidade pública transmitir isso. Mas acredito que, devido à intensidade da proliferação desse mercado na Internet, através de sites como a Estante Virtual, agora o livro já não teria mais tanta função assim. Já cumpriu o seu papel numa fase pré-internet.

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