Edição 308 | 14 Setembro 2009

Deus é maior do que os discursos sobre ele

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Márcia Junges

As religiões afro-brasileiras estão presentes na vida de Clóvis Cabral desde que nasceu, ainda assim preferiu tornar-se um padre jesuíta que luta, hoje, pelo diálogo entre as diferentes religiões e por respeito, principalmente, à cultura negra.

Por e-mail, o Prof. Dr. Clóvis Cabral, SJ, do Centro Cultural Atabaque de Cultura Negra, da Universidade Estadual de São Paulo, conversou com a IHU On-Line e falou sobre suas experiências com diferentes religiões, mas, principalmente, sobre sua ligação com as de matrizes africanas. Segundo ele, essa vivência só fez aumentar o mistério que é Deus. “Essa minha experiência de diálogo com o povo de religiões de matriz africana só me faz crescer como ser humano, só tem me feito abrir mais a minha inteligência para captar o mistério de Deus para além dos limites da fé cristã da religião católica”, disse. Cabral ministraria nesta segunda-feira, 14 de setembro, a oficina Narrativas do mistério, dentro da programação do X Simpósio Internacional IHU – Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. Entretanto, por motivos de saúde, não pôde comparecer ao evento.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você tem uma vivência muito intensa no candomblé, mas quando adulto preferiu tornar-se um padre jesuíta. Como é pensar nas narrativas do mistério a partir dessa relação que o senhor tem com diferentes religiões?

Clóvis Cabral – Para mim, só aumenta mais o mistério. Essa minha experiência de diálogo com o povo de religiões de matriz africana só me faz crescer como ser humano, só tem me feito abrir mais a minha inteligência para captar o mistério de Deus para além dos limites da fé cristã da religião católica. Essa minha experiência de troca, de partilha com membro de comunidades de terreiros me fez aprender mais sobre Deus, me abriu novos horizontes, me fez crescer como sacerdote católico. E só me faz afirmar que Deus é misterioso mesmo e que nenhuma religião é dona dele, tem a plenitude de Deus em si. Deus é maior dos que as religiões, do que os discursos sobre ele.

IHU On-Line – Quais são os principais pontos que o senhor abordou na oficina Narrativas do Mistério?

Clóvis Cabral – O primeiro aspecto que falei foi a partir do ponto de vista desse meu relacionamento com as religiões de matrizes africanas. Olhando aqui toda a programação, há um clima assim de desencanto com relação a uma insistência, por exemplo, no silêncio de Deus, é possível ainda falar de Deus hoje? Então, a impressão que tenho é que há um clima de tristeza, de beco sem saída das teologias que vêm da Europa ou de setores teológicos do Brasil. Eu tenho uma perspectiva que, para o povo, Deus é muito importante, Deus não está calado, Deus não silenciou. Eu vou contribuir para responder a pergunta “É possível narrar Deus numa sociedade pós-metafísica?” a partir de uma perspectiva de religiões que são muito físicas para as quais o corpo, a saúde, a dança, a vida, a comida são importantes. Entre o povo de santo das comunidades de religiões de matriz africana eu não sinto esse clima de ausência de Deus, se Deus tem ou não sentido ainda.

Depois trabalhei um conceito de história que recupera, portanto, as cosmovisões africanas que foram recriadas aqui no Brasil. É um conceito que diz que não é tabu voltar e recuperar aquilo que foi perdido. Pretendo mostrar que tem todo um conjunto de reflexões em torno da anterioridade das civilizações africanas e de um conjunto de princípios que unificam as diversas visões de mundo que foram elaboradas aqui.

Depois disso mostrei como esses princípios que formam a unidade básica das culturas africanas são plurais e, ao mesmo tempo, foram criadas aqui a partir de diversas formas de narrar Deus. Aí quero apresentar o que chamo de sete características que estão presentes nas religiões de matriz africanas no Brasil todo, e vou mostrar como há uma unidade básica entre elas no Brasil. Também pretendo mostrar sete características da espiritualidade afro-brasileira e que possibilitam, portanto, narrar sobre Deus para esse povo que vive hoje dentro de uma sociedade contraditória e perplexa como essa que a gente vive.

Num outro momento, apresentei a linguagem do mito como uma linguagem que possibilita essas diversas narrativas do mistério que é Deus.

IHU On-Line – Este simpósio tem como tema principal narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Qual é o espaço do negro nessa sociedade?

Clóvis Cabral – Hoje, na África, se fala de um renascimento africano. Isso tem a ver com o fenômeno do renascimento que reconstruiu o projeto civilizatório que tem como lugar a Europa, mas que depois repercutiu no mundo todo. Então, esse conceito de renascimento, que se fala na África, é uma redescoberta das fontes matriciais das culturas, das civilizações, das filosofias, das teologias africanas tradicionais. Além disso, falei como elas possibilitam hoje os africanos a encontrar um lugar nesse século novo. Esse mesmo fenômeno acontece aqui no Brasil, há, por assim dizer, uma redescoberta da juventude que milita no espaço da política das religiões de matriz africana como um lugar de reconstrução da humanidade e de um projeto de humanidade. Esse é o ponto central do fenômeno das religiões de matriz africana que voltam a ter uma importância na medida em que elas reúnem novamente o conjunto das populações afro-brasileiras que vivem ainda as desigualdades raciais e sociais no país.

IHU On-Line – Em sua opinião, qual a contribuição da cultura pós-metafísica para uma possível narrativa do mistério?

Clóvis Cabral – Temos que pensar que todas as tentativas nossas de falar sobre Deus, de fazer ciência sobre o mistério que é Deus são finitas, são pequenas, são um segundo momento, elas não tem uma antecedência. A primeira experiência fundamental que fazemos numa sociedade que se pergunta “qual será o futuro?”, “Deus tem algo ainda a dizer para nós?”, é recuperar que essa situação é possível porque não podemos mais pensar em narrar Deus a partir de uma única perspectiva ou tentando inserir todas as narrativas dentro de uma só. Temos que repensar que a saída é pensar de maneira plural. Temos que falar em narrativas e não narrativa sobre Deus. Além disso, as diversas narrativas têm que dialogar entre si, trocarem seus saberes.

IHU On-Line – Como é a narrativa de Deus nas religiões afro-brasileiras?

Clóvis Cabral – É uma narrativa em que Deus está presente na vida. Deus é o Deus do aqui, do agora, do já. É uma narrativa que não se coloca somente a esperança num Deus que vai vir, mas num Deus que se faz presente aqui. Por isso, se parte de uma crença em Deus como energia, como força vital. Portanto, temos que viver a vida em abundância. São narrativas que celebram a presença do mistério naquilo que a vida tem, ou seja, no corpo, no sexo, na dança, na comida, na bebida, nas relações entre as pessoas, no modo de interferir na sociedade. Não é um Deus que vem, mas é um Deus que já está presente.

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