Edição 307 | 08 Setembro 2009

A transformação da universidade num campo de missão a partir do conhecimento

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Graziela Wolfart e Márcia Junges

Carlos Eduardo Procópio defende que a religião ajuda a produzir o mundo, como ajuda a produzir a universidade. E alerta, no entanto, que os Grupos de Oração Universitários (GOUs) estão em sintonia com a universidade, o que não significa que deem o tom

Ao falar sobre a atuação dos jovens carismáticos nas universidades, Carlos Procópio fala sobre o papel (inclusive político) dos membros dos GOUs, que são grupos de oração e partilha, agregando jovens universitários que se reúnem semanalmente para cantar e rezar: “eles se envolvem com eleições para os diretórios acadêmicos, por exemplo. Aí, como outros grupos, tentam fazer valer seus interesses, sobretudo porque o DA é um importante instrumento de pressão no espaço público universitário. Além disso, o que acho mais curioso é a utopia que produzem. Tal como os comunistas, por exemplo, eles apontam para a conquista de uma sociedade melhor e fazem menção aos santos (heróis) como elemento motivador. Se os comunistas usam o manifesto comunista para ler a realidade, eles usam as encíclicas”.

Carlos Eduardo Procópio graduou-se em Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde fez especialização e mestrado em Ciência da Religião e atualmente é aluno do doutorado em Ciências Sociais. Tem experiência na área de teoria antropológica e sociológica e metodologia quantitativa e qualitativa. Desenvolveu, em seu mestrado, um estudo sobre Grupos de Oração Universitários, e atualmente vem refletindo sobre as conexões/desconexões entre política e religião.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o contexto da inserção da Renovação Carismática Católica - RCC nas universidades brasileiras?

Carlos Procópio - A inserção da RCC nas universidades se dá através dos Grupos de Oração Universitários (GOUs). O surgimento dos GOUs está relacionado a quatro eventos principais: a experiência pessoal de um de seus fundadores, que viu na universidade um campo para desenvolver um projeto missionário; a reestruturação das equipes da RCC, que deixaram a universidade à deriva de outras secretarias do movimento e consequentemente mobilizando os jovens universitários para desenvolver um projeto específico para seu meio; a ênfase na gênese universitária da RCC, que serviu de justificativa para ressaltar que a universidade era importante para o movimento católico-carismático; e o apelo episcopal, em Santo Domingo, para que os católicos desenvolvessem campanhas de evangelização nas universidades, visando influir na formação de profissionais e lideranças. Essas raízes, se olhadas atentamente, ajudam a explicar o desenvolvimento de parte das práticas desses GOUs. Enquanto a valorização da experiência de um dos seus fundadores e o resgate da importância da universidade para a RCC constroem uma consciência de unidade, fazendo com que os estudantes católicos carismáticos se mobilizem, visando a constituição de uma utopia cristã, a despreocupação da RCC, enquanto instância institucional, com o meio universitário e a convocação dos bispos latino-americanos para  evangelizar esse meio levaram esses mesmos estudantes a implementarem ações no contexto universitário. Aqui há um sonho paralelo a um chamado, que mobilizaria a construção dos GOUs. A consciência de unidade visando à constituição da utopia cristã foi fruto de um duplo sonho: o de Mococa (um dos participantes dos GOUs e disseminador da ideia de uma evangelização universitária), que em oração vislumbrou a sua universidade (UFV) recoberta pelo evangelho; e aquele sonho seminal da própria RCC, em 1967, com os docentes e discentes de Duquesne (EUA), que quiseram divulgar a experiência pentecostal concebida na universidade. Soma-se a isso um chamado fruto da despreocupação da hierarquia da RCC com o meio universitário, quando da sua reestruturação na primeira metade da década de 1990, e a convocação dos bispos latino-americanos para evangelizar aquele meio. Esse ponto vai permitir uma relação incisiva dos carismáticos católicos com a universidade, tanto porque houve uma convocação por parte do episcopado quanto porque a universidade fora negligenciada pela RCC, sentindo os estudantes universitários católicos carismáticos a obrigação de se responsabilizarem pela evangelização do espaço onde conviviam.

IHU On-Line - Como se dá o movimento de transformação do campo de conhecimento em campo de missão?

Carlos Procópio - A meu ver, esse processo de transformação se daria a partir do momento em que a RCC consegue produzir uma ideia de universidade, articulando o tripé (política, ciência e trabalho) que constitui uma universidade. A política é o espaço da militância propriamente dita. Conhecemos muitos grupos nas universidades voltados para a prática política. Com o GOU não é diferente. Eles se envolvem com eleições para os diretórios acadêmicos, por exemplo. Aí, como outros grupos, tentam fazer valer seus interesses, sobretudo porque o DA é um importante instrumento de pressão no espaço público universitário. Além disso, o que acho mais curioso é a utopia que produzem. Tal como os comunistas, por exemplo, eles apontam para a conquista de uma sociedade melhor e fazem menção aos santos (heróis) como elemento motivador. Se os comunistas usam o manifesto comunista para ler a realidade, eles usam as encíclicas. Em relação à ciência, como qualquer outro grupo na universidade, eles vão construir seus argumentos balizados em estudos científicos com credibilidade no meio, para referendar qualquer perspectiva ligada ao aborto ou células-tronco embrionárias. São cientistas como qualquer outro e é isso que importa. Cultivam a prática científica e valorizam os estudos como meio para atingirem seus ideais. No que tange ao trabalho, eles enfatizam a ética como preponderante e passam a procurar atividades voltadas para o bem comum. Distanciam-se das práticas capitalistas atuais e procuram outros espaços de emprego como ONGs e comunidades de vida. Se conseguem um emprego em alguma corporação ou grande empresa, apontam que ali devem trabalhar de forma interessada e ética, visando ajudar o próximo. Nesse sentido, a universidade torna-se um campo de missão a partir do conhecimento.

IHU On-Line - O que são os GOUs e como acontece o seu surgimento?

Carlos Procópio - Os GOUs são grupos de oração e partilha, agregando jovens universitários que se reúnem semanalmente para cantar e rezar. São espaços onde são estabelecidos vínculos sociais duráveis ou não, servindo não só como espaço de evangelização, mas também de troca de experiências e resolução de problemas pessoais. Os primeiros GOUs surgiram na década de 1980, em Viçosa (MG) e Maringá (PR), crescendo mais incisivamente nas décadas seguintes. Hoje são quase 700 GOUs espalhados por todo Brasil. Eles surgiram da vontade de católicos carismáticos, ingressados na educação superior, de continuarem professando sua fé. Desde o início, os GOUs eram realizados em salas de aula, exceto quando havia uma capela na universidade. Como disse acima, o surgimento da RCC na universidade se dá pelos GOUs.

IHU On-Line - Quais são os limites e as possibilidades nesse diálogo entre a academia e a religião na sociedade pós-moderna?

Carlos Procópio - Não estou preocupado com os limites do diálogo, acho inclusive difícil detectá-los na medida em que um limite apontado agora é, daqui alguns minutos, superado. Acredito na possibilidade criativa do ser humano, que produz cotidianamente seu mundo. Esses GOUs, por exemplo; não seria fácil apontar seus limites, porque cada vez que eu converso com um deles, eu vejo novas possibilidades se abrindo. As possibilidades de diálogo entre academia e religião estão sempre abertas. Podemos até encontrar grupos que não gostam de religião, mas vai ser difícil desacreditar em argumentos científicos vindos de um religioso, desde que produzidos cientificamente, mesmo que estes corroborem sua crença. Quando um religioso faz ciência, ela tem que ser considerada enquanto tal, por mais que ela tenha pretensões religiosas. Se acusarmos o cientista de fazer da ciência um instrumento para sua religião, teremos que acusar outros cientistas de favorecerem suas agências de fomento ou corporações quando direcionam suas pesquisas para determinados campos em detrimento de outros. A discussão sobre ciência deve levar em conta a produção científica. Em relação ao mundo do trabalho, poder-se-ia dizer que a fé deles poderia levá-los a uma alienação para com o mundo do trabalho como é hoje concebido. Isso pode até acontecer, mas muitos jovens dos GOUs vêm procurando outras formas de inserção no mundo do trabalho, questionando o status quo, como já apontei. 

IHU On-Line - Em que aspectos ambos os campos podem ajudar a construir uma nova sociedade?

Carlos Procópio - Penso que continuando a fazer o que fazem, a academia produzindo a si mesma ao mesmo tempo em que ajuda a produzir a religião que dela quer participar, e a religião produzindo a si mesma ao mesmo tempo em que ajuda a produzir a academia, como vimos no caso dos GOUs.

IHU On-Line - Até que ponto a RCC na universidade serve como uma reinstitucionalização católico-carismática na sociedade?

Carlos Procópio - Essa tese da reinstitucionalização é da Brenda Carranza , e eu não sou adepto dela. A discussão sobre isso é muito bem elaborada e sedutora, mas tenho vocação para antropólogo e estou mais interessado no que as pessoas e grupos fazem do mundo. Inclusive acho muito difícil uma república laica como a nossa se render aos desígnios de alguma religião, ou uma religião poder ditar as regras de modo total, como sugere aquela tese. A religião ajuda a produzir o mundo, como ajuda a produzir a universidade, e é isso que me interessa. Eu falei que o GOU está em sintonia com a universidade, o que não significa que ele dê o tom.

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