Edição 307 | 08 Setembro 2009

Uma reflexividade comunitária e laica

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Graziela Wolfart

José Rogério Lopes cita exemplos que mostram que uma das maneiras de perceber e compreender os registros de crise ou mudança vivida hoje nas sociedades, local ou globalmente, passa pelo estudo das religiões

A devoção dos fiéis membros das novas comunidades católicas é, segundo o professor José Rogério Lopes, “basicamente mariana, ou em torno de alguns modelos de santidade com uma forte marca de espiritualidade e transcendência, como São Francisco de Assis. Essa marca devocional (creio que alguns carismáticos mais fervorosos evitariam esse termo) acentua um registro de eticidade religiosa quase indissociável da leitura e consciência da realidade social”. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, Lopes defende que “o desenvolvimento dos carismáticos, no Catolicismo, e das Igrejas Neopentecostais seguem orientações, modelos de agregação e organização de fiéis e da vida religiosa distintos”. Além disso, continua ele, “essas comunidades carismáticas seguem uma dinâmica laica, como já falei, enquanto os neopentecostais seguem uma dinâmica institucional bem definida”.

José Rogério Lopes possui graduação em Pedagogia pela Universidade de Taubaté, e mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Atualmente, é professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana e em Políticas Públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: identidade, imagética religiosa, devoções populares, pobreza, processos de exclusão e cidadania.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Do ponto de vista antropológico, como entender o crescimento das novas comunidades católicas, como a RCC, a Canção Nova e a Toca de Assis, por exemplo?

José Rogério Lopes - Temos aqui experiências que se originaram e desenvolveram a partir da emergência e incorporação de uma espiritualidade pentecostal no catolicismo, mas que operam por princípios diferentes de agregação. Enquanto a Renovação Carismática se organiza no Brasil desde a década de 1980, instalando a comunidade Canção Nova, em Cachoeira Paulista (SP), as comunidades de aliança e vida no Espírito Santo, como a Toca de Assis, por exemplo, surge dos grupos de oração carismáticos, em finais da década de 1990.

Os estudos antropológicos, da década de 1980 até meados da de 1990, investigaram, descreveram e interpretaram a emergência dessas comunidades como práticas e representações que convergiam para expressões religiosas contraditórias à orientação católica, seja em sua concepção litúrgica, seja em seu campo cultural de manifestações. Tais expressões contraditórias seriam resgates de vivências espirituais mais individualistas, ou desvios do modelo de orientação espiritual mais centrado em uma preocupação social, como era práxis da Igreja, naquela época. Da década de 1990 até agora, alguns antropólogos, como Thomas Csordas  (EUA) e Martine Cohen (França), buscam superar essa contradição, apontando para a necessidade de investigar tais comunidades como vivências espirituais que modificam a percepção coletiva do sagrado, de um absoluto exterior, para uma percepção que se manifesta como corporeidade, por exemplo, entre carismáticos no Brasil, nos Estados Unidos, na França e na África, ou ressignifica ciclos de vida, como entre os jovens da Toca de Assis ou de outras comunidades de vida no Espírito Santo.

IHU On-Line - Podemos estabelecer alguma relação entre as características da sociedade contemporânea e o aumento pela procura das novas comunidades católicas?

José Rogério Lopes - É possível estabelecer várias correspondências. Alguns cientistas sociais têm destacado as homologias entre a difusão da ideologia individualista e a difusão dos carismáticos; outros têm buscado investigar essa difusão em correspondência com as concepções comunitaristas que ressurgem no presente; pesquisadores do Rio Grande do Sul, em análises conjuntas com pesquisadores argentinos e franceses, entre outros, buscam analisar os processos de transnacionalização das religiões, que se caracterizam pelos fluxos e redes estabelecidas por essas comunidades, ou seus líderes religiosos, entre diversos países; pesquisadores da religião, em universidades do Rio de Janeiro, têm discutido muito a apropriação dos recursos midiáticos nesse processo de difusão. Cientistas como Gilles Lipovetsky,  por exemplo, têm enfatizado o caráter de espetacularização que forma boa parte das manifestações e cultos religiosos, em semelhança com outras manifestações contemporâneas também espetacularizadas, na esteira de uma pretensa crise da solidariedade. Esses exemplos mostram que uma das maneiras de perceber e compreender os registros de crise ou mudança vivida hoje nas sociedades, local ou globalmente, passa pelo estudo das religiões.

IHU On-Line - Como se dá o processo de formação da identidade religiosa entre os membros das novas comunidades católicas? Que imagética religiosa eles buscam e constituem? 

José Rogério Lopes - Esse processo se inicia, basicamente, nos encontros de jovens e nos grupos de oração carismáticos, desde as primeiras comunidades de aliança e vida no Espírito Santo, formadas no final da década de 1990, mas se desdobram de outras vivências religiosas no quadro do Catolicismo, como o Shalom e outros movimentos eclesiais com forte penetração dos carismáticos. Nessas comunidades, como já descreveu Cecília Mariz  (UERJ), leigos decidem se reunir para se dedicar ao louvor, à adoração ao Santíssimo, à evangelização, à cura espiritual e às mais diversas obras sociais. No léxico das comunidades, essas atividades são chamadas de “carismas”. Esses jovens buscam uma imagética religiosa de exemplos de virtuosismo religioso, que incorporam e vivenciam em suas comunidades.

IHU On-Line - As novas comunidades católicas contribuem para o exercício da fé e da espiritualidade com mais autonomia dentro da Igreja?

José Rogério Lopes - Comunidades de aliança e vida no Espírito Santo seguem uma dinâmica mais laica que institucional, como já apontou Cecília Mariz, em seus estudos. Nesse sentido, a resposta é sim. Por outro, há que se estudar a retroação dessas vivências no corpo institucional religioso do catolicismo e em suas orientações eclesiásticas, o que ainda não foi feito. Alguns antropólogos, como Carlos Steil  (UFRGS), sugerem que essas vivências apontam para uma saída do cristianismo. Então, o limite da ideia de autonomia é que está em jogo em relação com a Igreja. Não há como negar, porém, que a liturgia católica mudou bastante, nessas últimas décadas, influenciada pela demanda crescente de autonomia desses e outros grupos.
 
IHU On-Line - O que caracteriza a devoção dos membros das comunidades católicas? Como eles separam a consciência da realidade do ethos religioso?

José Rogério Lopes - Aqui, uma resposta bem objetiva, sem reducionismos: a devoção é basicamente mariana, ou em torno de alguns modelos de santidade com uma forte marca de espiritualidade e transcendência, como São Francisco de Assis. Essa marca devocional (creio que alguns carismáticos mais fervorosos evitariam esse termo) acentua um registro de eticidade religiosa quase indissociável da leitura e consciência da realidade social.
 
IHU On-Line - É possível estabelecer alguma relação entre as novas comunidades católicas e as igrejas neopentecostais?

José Rogério Lopes - A experiência da espiritualidade pentecostal, no catolicismo, tem origem entre grupos de universitários norte-americanos em contato com evangélicos pentecostais, mas tem um desenvolvimento diferente, sobretudo na elaboração teológica. Dessa forma, o desenvolvimento dos carismáticos, no Catolicismo, e das Igrejas Neopentecostais seguem orientações, modelos de agregação e organização de fiéis e da vida religiosa distintos. Além disso, essas comunidades carismáticas seguem uma dinâmica laica, como já falei, enquanto os neopentecostais seguem uma dinâmica institucional bem definida.

IHU On-Line - Qual a contribuição das novas comunidades católicas para a constituição do plural cenário religioso brasileiro?

José Rogério Lopes - As comunidades carismáticas, sobretudo, têm imprimido uma marca de diversificação ou descontinuidade no processo de configuração do pluralismo no campo religioso brasileiro. Esse pluralismo, em formação no Brasil desde a década de 1970, estava marcado por reptos regulares entre as denominações religiosas, explicitando a lógica concorrencial que marcou um período das religiões de conversão. No desdobramento desse processo, a contribuição maior dos carismáticos, talvez, esteja na dinâmica laica e instituinte que imprimiram ao caráter das vivências religiosas, no catolicismo. Nesse sentido, reforçam um pluralismo endógeno ao catolicismo, explicitando que toda hegemonia abafa diferenças e dissensos.

IHU On-Line - Como se dá o processo de produção de reflexividade na religiosidade contemporânea, principalmente no caso das novas comunidades católicas? 

José Rogério Lopes - Diria que se trata de uma reflexividade comunitária e laica, apesar dos evidentes valores, práticas e representações religiosos que a sustentam. Nessa perspectiva de abordar o tema, explicita-se um caráter de deslocamento dos processos de reflexividade moderna, antes institucionais, para processos auto-organizativos como os vividos nessas comunidades. Isso implica no desenvolvimento de capacidades de apropriação e negociação com influências exógenas às vivências religiosas. Eu tenho investigado esses processos, por exemplo, nas práticas e organizações devocionais do catolicismo popular, buscando compreender a apropriação que os devotos operam das tecnologias de registro audiovisual, para produzirem imagens religiosas que objetivam uma concepção de sagrado mais próxima de suas experiências coletivas.

Leia mais...

>> José Rogério Lopes já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira o material na nossa página eletrônica.

* Psicologia e Antropologia. Relações práticas. Publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU, em 19-09-2006.

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