Edição 306 | 31 Agosto 2009

Aprender a ser humano. Uma leitura do Gênesis

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Márcia Junges

André Wenin, exegeta, aponta cobiça como fonte da violência narrada no primeiro livro da Bíblia. Relatos do primeiro livro do Antigo Testamento promovem o respeito pela alteridade, “desde que não se procure neles exemplos a imitar”

De acordo com o exegeta André Wenin, “na exploração narrativa do fenômeno da violência humana, o Gênesis põe claramente em evidência que sua raiz é a cobiça. Entendo por cobiça o desejo humano que não aceita ser estruturado por um justo limite. Ele invade, então, aquele que deseja, se torna mestre dele e o precipita na violência”. A afirmação faz parte da entrevista especial a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Ele reflete que os relatos do primeiro livro do Antigo Testamento “promovem o respeito de toda alteridade, desde que não se procure neles exemplos a imitar, mas como textos que fazem pensar sobre o que é a humanidade”. Relacionando a ética da psicanálise com uma ética universalista, Wenin pergunta se “aprender a ser humano não é aprender a conjugar desejos singulares ajustando da melhor forma o seu próprio desejo e o do outro, a sua própria liberdade e a do outro?” Em sua opinião, essa “tarefa deve ser retomada sem cessar, porém é isto que torna inventivo e que faz a riqueza do amor”.

Wenin é doutor em ciências bíblicas pelo Instituto Pontifício Bíblico de Roma. Especialista em exegese do Antigo Testamento, leciona na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e é professor visitante da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma - PUG. Foi membro de inúmeros comitês de publicações científicas, como Graphè, Revue Théologique de Louvain, La char et le Souffle, Estudios Bíblicos e Collection Epifania della Parola. De sua produção bibliográfica, traduzida para o português, citamos Homem Bíblico: leituras do Primeiro Testamento (São Paulo, Loyola: 2006). Escreveu, ainda, Joseph ou l’invention de la fraternité. Lecture narrative et anthropologique de Genèse 35–50 (Le livre et le rouleau 21). (Bruxelles: Lessius, 2005) e D'Adam à Abraham, ou les errances de l'humain (Livre la Bible 148). (Paris: Cerf, 2007). Com Jean-Pierre Lebrun, psiquiatra e psicanalista, publicou o livro Des Lois pour être humain (Paris: Erès. 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A Bíblia nos oferece o primeiro relato sobre um homicídio, quando Caim mata Abel. Como se relacionam desejo e violência no livro do Gênesis?

André Wenin – Não entrarei em detalhes porque seria preciso escrever mais de um livro para elucidar essa questão completamente. Para dar uma pista geral (bem identificável na história de Caim), direi o seguinte: na exploração narrativa do fenômeno da violência humana, o Gênesis põe claramente em evidência que sua raiz é a cobiça. Entendo por cobiça o desejo humano que não aceita ser estruturado por um justo limite. Ele invade, então, aquele que deseja, se torna mestre dele e o precipita na violência. Assim com Caim: ele mata porque está possuído pela inveja que se origina no fato de ele não ter a única coisa à qual ele parece se ater: a consideração de Deus que olha a oferenda de seu irmão. E ele mata.

Para ampliar um pouco a reflexão, consideremos o que se torna o outro quando a cobiça se apossa de alguém. Ele pode ser tomado como o objeto da cobiça: então se “quer” o outro para si, para se locupletar (e é preciso a todo preço que o outro não escape: é a origem de uma forma de inveja bem conhecida dos amorosos). Ele também pode ser visto como um obstáculo à cobiça, como um concorrente: um rival que possui o que eu desejo, que quer se apossar do que eu cobiço, ou que quer tomar-me o que eu quero guardar só para mim (é a fonte da inveja de Caim). Ele ainda pode ser considerado como um meio do qual vou me servir para chegar a satisfazer minha cobiça e obter o que eu quero. Mas, nos três casos da figura (e não vejo outra), quer seja ele objeto, rival ou instrumento, o outro não é jamais considerado como um sujeito. Aquele que cobiça torna-o um satélite, por assim dizer, ele o anexa ao seu desejo e o faz girar em torno de si. Ora, negar a outro o lugar de sujeito parceiro já é fazer-lhe violência. Basta ler, por exemplo, a história de José com a mulher de seu mestre em Gênesis 39, 7-21 e para compreender o que eu quero dizer.

IHU On-Line - Como essas características humanas apresentadas na Bíblia dialogam com o respeito pela alteridade em nossos dias?

André Wenin - Em nossos dias, não sei. Não cabe a um exegeta da Bíblia se posicionar sozinho sobre tal questão. A única coisa que posso dizer é que, quando se explicam os textos do Gênesis no sentido que eu venho indicar, eles se põem a falar aos nossos contemporâneos e lhes fornecem chaves de compreensão da realidade na qual eles vivem. Com efeito, relatos que desmontam assim os mecanismos ocultos em que a violência toma raiz, que exploram as formas variadas que toma a cobiça ou que expõem as consequências mortíferas desse tipo de atitude são verdadeiramente de natureza a tornar os leitores lúcidos sobre os cacifes cruciais dos comportamentos e das escolhas que são as nossas, mas também sobre as lógicas profundas de uma sociedade moderna que se constrói (ou prepara sua própria destruição) sobre tais bases. Os relatos do Gênesis promovem o respeito de toda alteridade, desde que não se procure neles exemplos a imitar, mas como textos que fazem pensar sobre o que é a humanidade.

IHU On-Line - Como o estrangeiro é representado no Antigo Testamento? Como se estabelece, a partir do relato bíblico, a importância do Outro, da alteridade na existência humana?

André Wenin - A questão do estrangeiro na Bíblia é uma vasta questão, porque a Bíblia é o fruto de uma longa história em que a relação de Israel ao estrangeiro tem variado. Em síntese, direi isto. A Bíblia testemunha em diversos momentos que o povo de Israel se apresenta como um povo eleito por Deus para o serviço das nações. Esta “eleição” faz de Israel um povo diferente, à parte das outras nações (ver, p.ex., Êxodo 19, 5-6). A lei que ele recebe de Deus o obriga, aliás, a cultivar até certo ponto esta diferença (por exemplo, para a circuncisão, a prática do sabbat). Cultivar assim sua singularidade pode levar a duas atitudes diferentes: a primeira consiste em considerar sua diferença como uma superioridade vis-à-vis de todos os outros, o que conduz rapidamente ao desdém, ou até ao desprezo dos outros e à separação com eles (esta atitude é muito bem posta em evidência nos livros de Neemias e de Esdras); a segunda atitude consiste em viver a eleição como uma diferença que envolve um acréscimo de responsabilidade em face dos outros e então a pôr-se ao seu serviço, testemunhando um Deus cujo amor é universal (ver, por exemplo, o livro de Jonas). Nesta segunda ótica, a singularidade não é mais vivida como superioridade, mas como a afirmação do direito de cada um a ser diferente. Esta orientação é a da aliança, na qual a alteridade não é percebida no modo do exclusivismo, mas, ao contrário, como a condição necessária para que haja verdadeiramente encontro fecundo (que supõe parceiros distintos, separados). A Bíblia novamente não dá testemunho de um ideal. E sobre este ponto também, ela explora, em seus textos, pistas diferentes para que o leitor veja aonde eles conduzem, quais são os impasses e quais, ao contrário, conduzem a ser realmente humanos.

IHU On-Line - É possível conciliar a ética da psicanálise, voltada a uma ética particular (tomando como referência a citação de Lacan  “não cedas do teu desejo”) com uma ética universalista, kantiana?

André Wenin - Eu não sou especialista nestas matérias, sendo um simples leitor de textos na Bíblia hebraica. Mas, se é preciso entender a palavra de Lacan em seu sentido óbvio (mas, será que Lacan jamais falava sem segundas intenções?), eu penso que não há contradição entre esta palavra e a ética universalista, desde que cada um aceite que o outro também tenha o seu desejo e que ele não ceda dele. No fundo, aprender a ser humano não é aprender a conjugar desejos singulares, ajustando da melhor forma o seu próprio desejo e o do outro, a sua própria liberdade e a do outro? A tarefa deve ser retomada sem cessar, porém, é isto que torna inventivo e que faz a riqueza do amor. Se quisermos reler o Gênesis (já que é de lá que partimos) à luz desta chave de leitura, sem dúvida não perderemos o nosso tempo, pois, em seu relato, ele explora precisamente a dificuldade da tarefa (tornada sem cessar difícil pela cobiça que ronda, mudando sem cessar [de pele] como uma serpente) e a riqueza que ressalta do combate que se trava para tentar ser humano. Para os que crêem, estes relatos também ilustram o desejo de Deus e seu compromisso, por vezes oculto ou paradoxal, para que o empreendimento humano seja exitoso além e contra tudo.

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