Edição 306 | 31 Agosto 2009

Teoria de Darwin deve ser pensada a partir de Lamarck

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Márcia Junges

Tomando em consideração a não linearidade da história da ciência, Lilian Al-Chueyr Pereira Martins frisa que ideias do cientista britânico precisam ser compreendidas sob o prisma do legado de Lamarck

“Se considerarmos que a história da ciência não é linear nem cumulativa e que as ideias não surgem do nada e que sempre há um antes, envolvendo acertos e erros, veremos que a teoria de Darwin não poderia ser pensada a partir de algumas propostas anteriores, mas sim a partir da proposta de Lamarck”. A afirmação é da pesquisadora Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, em entrevista exclusiva, por e-mail, à IHU On-Line. Sobre A origem das espécies, ela acentua que essa obra “mudou o antigo paradigma da fixidez das espécies”.

Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Lilian é graduada em História Natural pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR, especialista em História da Ciência, mestre e doutora em Genética pela Unicamp com a tese histórica A teoria cromossômica da hereditariedade proposta: fundamentação, crítica e aceitação. É pós-doutora pela Unicamp, autora de A teoria da progressão dos animais, de Lamarck (Rio de Janeiro: Booklink; FAPESP; GHTC, 2007) e uma das organizadoras de Filosofia e História da Biologia (São Paulo: MackPesquisa, 2007) e Ciências da Vida: Estudos filosóficos e históricos (Campinas: AFHIC, 2006). Também é presidente da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB). Em 10 de setembro, proferirá a conferência Evolucionistas pós-darwinianos no final do século XIX, dentro da programação do IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a novidade das pesquisas dos evolucionistas pós-darwinianos no final do século XIX, com William Bateson de um lado, e de Karl Pearson e Raphael Weldon do outro?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – Em primeiro lugar, no final do século XIX, os cientistas que você mencionou se consideravam seguidores de Darwin. Inicialmente William Bateson  e Walter Frank Raphael Weldon  eram amigos e, como orientandos de Frank Balfour,  seguindo uma das sugestões de estudos que Darwin fizera em Origin of species, procuraram esclarecimentos sobre o processo evolutivo através de estudos morfológicos. Porém, perceberam que a reconstrução da filogenia através da morfologia se baseava em suposições que podiam conduzir a erros e mudaram de método. Em 1886, Bateson foi para a região central da Ásia Ocidental onde permaneceu durante um ano e meio procurando investigar as relações que existiam entre as variações da fauna e flora nos lagos salgados e as condições sob as quais os organismos viviam. Ele encontrou casos que sugeriam que essas variações eram contínuas e casos em que essas variações eram descontínuas. Os resultados obtidos não permitiram concluir que a variabilidade encontrada fosse um efeito de mudança física, nem que resultasse da seleção. Weldon assumiu a cátedra Jodrell no University College em Londres (1890-1899), onde conviveu proximamente com o matemático e estatístico Karl Pearson . Ambos se tornaram parceiros e amigos, além de colaboradores. Nessa época, Weldon, que era um biólogo, aprimorou seus conhecimentos de matemática e estatística e publicou seu primeiro trabalho sobre a variação no camarão Crangon vulgaris, onde calculou os primeiros coeficientes de relação orgânica. A seguir, Bateson se dedicou à coleta de fatos sobre a variação de animais e plantas. A descrição desses fatos aparece no livro Materials for the study of variation (1894), em que dentro do espírito darwiniano, ele reuniu uma série de fatos que substanciavam as variações descontínuas. Pretendia publicar um outro volume onde catalogaria fatos relacionados às variações contínuas, mas não o fez. Depois Bateson voltou-se para os estudos envolvendo cruzamentos experimentais, seguindo a antiga tradição dos hibridistas que estiveram bastante presente na época da publicação do Origin of species de Darwin tendo dado prosseguimento com este tipo de estudo, após o contato com o artigo de Mendel sobre as plantas híbridas (1900) até sua morte. Weldon e Pearson deram prosseguimento a seus estudos utilizando o método biométrico. Eles estudavam principalmente as características que variam de forma contínua como peso e estatura, onde o papel da seleção natural é fortalecido. Ao passo que Bateson, em seus estudos experimentais, analisava características que variam principalmente de forma descontínua. Nesse caso, o papel da seleção natural era minimizado. Devido às diferenças metodológicas, conceituais e de vários outros fatores como a luta pela autoridade no campo da hereditariedade e evolução, ocorreu no início do século XX uma acirrada controvérsia entre os biometricistas (Weldon e Pearson) e os mendelianos liderados por Bateson.     

IHU On-Line - Que diferenças sua compreensão da ciência e da vida apresentam em relação a Darwin?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – Como comentei anteriormente, Weldon, Pearson e Bateson, consideravam-se seguidores de Darwin e aceitavam a teoria da descendência com modificação. Aceitavam também que a seleção natural era o principal meio de modificação das espécies. Para Weldon e Pearson, as variações mais relevantes para o processo evolutivo eram as variações contínuas, como pensava Darwin. Para Bateson, as variações descontínuas também eram relevantes para o processo evolutivo. Weldon e Bateson seguiram as sugestões de Darwin ao procurar reconstruir a filogenia através da morfologia. Bateson seguiu Darwin no trabalho de coleta e catalogação de fatos sobre a evolução, na obtenção de informações com o agricultor, criador de animais e correspondência com outros naturalistas, além de seguir a antiga tradição hibridista. A metodologia utilizada por Weldon e Pearson em seus estudos era bastante diferente daquela empregada por Darwin. Nesse sentido, Bateson estava mais próximo de Darwin.

IHU On-Line - Como o contexto da época influenciou essas pesquisas?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – A publicação de Origin teve um grande impacto. Mudou o antigo paradigma da fixidez das espécies. Além disso, Darwin propôs novas linhas de investigação que poderiam trazer esclarecimentos sobre a origem das espécies: os estudos geológicos, os estudos embriológicos, as afinidades mútuas entre os seres vivos etc. No entanto, era necessário testar experimentalmente os pressupostos darwinianos. Havia perguntas que precisavam ser respondidas: Será que o processo evolutivo ocorria principalmente através da Seleção Natural? Mas afinal como agia a Seleção Natural? Será que só as variações contínuas eram relevantes? Como as variações eram herdadas? Havia herança de caracteres adquiridos através do uso e desuso como pensava Darwin? Nesse sentido, apareceram as contribuições dos personagens mencionados.   

IHU On-Line - Em outra entrevista que nos concedeu, a senhora afirma que Darwin seria impensável sem Lamarck. Poderia aprofundar essa ideia dando-nos mais detalhes? 

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – Se considerarmos que a história da ciência não é linear nem cumulativa e que as ideias não surgem do nada e que sempre há um antes, envolvendo acertos e erros, veremos que a teoria de Darwin não poderia ser pensada a partir de algumas propostas anteriores, mas sim a partir da proposta de Lamarck. Existem algumas propostas que algumas vezes são atribuídas aos “precursores” de Lamarck como Robinet e De Maillet ou mesmo Buffon. A meu ver, isso não procede. Robinet escreveu uma obra de metafísica, De Maillet, uma obra de ficção, obras cuja natureza era diferente daquela de Lamarck, que partiu de um estudo de história natural. Embora Buffon fosse um naturalista, durante sua vida não apresentou uma posição definida sobre a origem das espécies. Em alguns pontos de sua obra, aparece a ideia de que as espécies são fixas. Quando ele se refere à transformação das espécies, é num sentido de degeneração. Lamarck, ao contrário deles, apresentou uma teoria coerente lidando com o surgimento dos primeiros seres vivos até o aparecimento do homem. Sua obra partiu de um estudo de história natural, e mesmo que não aceitemos a maior parte de seus pressupostos atualmente, foi uma proposta valiosa em seu tempo. 

IHU On-Line - Nessa mesma entrevista a senhora comenta que a teoria de evolução não foi aceita como um “pacote fechado”. Qual é a situação atual junto à comunidade científica? Que aspectos estão superados e quais continuam atuais?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – A proposta de Darwin foi significativa porque permitiu um novo enfoque sobre o estudo dos seres vivos. Por exemplo, o estudo da classificação dos seres vivos (sistemática) passou a ser feito de outra forma, levando em conta sua origem e relações com outras espécies. Além disso, não era uma proposta fechada, pois embora considerasse que a seleção natural era o principal meio de modificação das espécies, esclareceu que não era o único. Além disso, sugeria outros tipos de estudos que poderiam trazer esclarecimentos sobre o processo evolutivo.

Mesmo entre aqueles que aceitaram a proposta de Darwin na época, houve restrições à mesma. Por exemplo, Thomas Huxley  considerava que as variações descontínuas também eram relevantes para o processo evolutivo e que a hipótese da pangênese podia ser dispensada. Herbert Spencer atribuía maior importância à herança de caracteres adquiridos do que à seleção natural e Alfred Russel Wallace defendia que as faculdades superiores do homem não podiam ser explicadas pela seleção natural como pensava Darwin.

Algumas bases da teoria evolutiva de Darwin são: uma teoria de hereditariedade, a luta pela sobrevivência; a existência de variações e a seleção natural. Atualmente algumas das ideias de Darwin são aceitas com adaptações, e outras são rejeitadas. Por exemplo: não são aceitas a herança de caracteres adquiridos por uso e desuso – que ele aceitava – nem a sua hipótese de hereditariedade (hipótese da pangênese). Atualmente se aceita que a seleção natural está relacionada às alterações da frequência dos genes em uma população, complementada pelo desenvolvimento da genética clássica, que ocorreu algumas décadas depois da morte de Darwin. Mas isso não tira todo o valor da proposta de Darwin, que se destacou em sua época, como um passo importante na história da evolução. Darwin acreditava que podia haver especiação sem isolamento geográfico, o que não se aceita atualmente.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins – Do ponto de vista da historiografia da história da ciência atual, não se pode considerar que alguns aspectos da teoria de Darwin tenham sido superados, pois uma contribuição deve ser considerada dentro de seu contexto. Os desenvolvimentos da genética clássica e outros foram bem posteriores à proposta de Darwin. Assim, não se pode culpá-lo por não haver introduzido ideias, conceitos e explicações relacionados a conhecimentos construídos em um período posterior. Poderíamos talvez censurá-lo por não haver utilizado os conhecimentos que estavam disponíveis em sua própria época, no sentido de “o que ele poderia ter feito e não fez”.

Leia mais...

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira o material na nossa página eletrônica.

* A ciência antes e depois de Darwin. Entrevista especial com Lilian Al-Chueyr Pereira Martins e Roberto de Andrade Martins. Publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 15-12-2008.

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