Edição 306 | 31 Agosto 2009

O darwinismo no Brasil e na América Latina

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Márcia Junges

Historiadora analisa recepção da teoria de Darwin em nosso país e continente, e acentua que aqui houve polêmica em sua interpretação. Repercussões ideológicas foram amplas.

Em artigo escrito especialmente à IHU On-Line, a historiadora Heloísa Domingues mencionou que “o caso do Brasil em relação à teoria darwiniana foi talvez o mais original. Ao mesmo tempo em que o país foi palco da construção da teoria e da sua comprovação, não fugiu à polêmica da interpretação”. De acordo com ela, a teoria darwinista “teve repercussões ideológicas amplas, pois colocava em jogo a ideia de criação, o que foi chocante na maioria dos países de tradição católica, como eram praticamente os países ibero-americanos”.

Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, e mestre em História pela Universidade Federal Fluninenses - UFF, cursou doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, com a tese Ciência, um caso de política: ciências naturais e agricultura no Brasil Império. Pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), do Ministério de Ciência e Tecnologia, é coordenadora de História da Ciência e será a conferencista de abertura do IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin, com a palestra A recepção do darwinismo na América Latina.

Confira o artigo.

Tem sido comum interpretar darwinismo associado a evolucionismo, a tal ponto que chega-se a confundir a teoria de Darwin com a ideia de evolução, bem como classifica-se opositores da teoria darwiniana como darwinistas. A teoria de Darwin teve repercussões ideológicas amplas, pois colocava em jogo a ideia de criação, o que foi chocante na maioria dos países de tradição católica, como eram praticamente os países ibero-americanos. Porém, no Brasil, sua recepção parece ter sido menos problemática, conforme chamou a atenção Thomas Glick , na Introdução do livro A recepção do darwinismo no Brasil .

De um modo geral, no final do século XIX, nos países ibero-americanos, a teoria de Darwin estava difundida entre os intelectuais e havia se deslocado principalmente para o social, via Spencer. O darwinismo na sociedade, ou o darwinismo social, pretendia que os mecanismos da seleção darwiniana pudessem ser transferidos de maneira válida às sociedades humanas (com ideias, tais como, a de concorrência vital, a de luta pela vida ou a de seleção natural). Herbert Spencer foi o mais famoso promotor do biologismo social.

Diferentes recepções

A introdução da teoria de Darwin através da obra de outros cientistas foi frequente. Na América espanhola e portuguesa, conforme observaram Rosaura Ruiz  e Francisco Ayala , é importante considerar Ernst Haeckel, Herbert Spencer e Francis Galton.  O primeiro foi o mais importante dos difusores do darwinismo no século XIX e os outros dois tiveram um papel fundamental na extensão das ideias de Darwin para âmbitos que este jamais pensou quando elaborou sua teoria, tais como o da evolução social humana e o do melhoramento da espécie humana. No Brasil, além do próprio Darwin, os dois primeiros tiveram papel relevante, porém, a Galton não se encontra referências no século XIX, como se encontrava em outros países. Por exemplo, na Argentina, as teorias de Galton jogaram forte papel e a eugenia se organizou no país desde a década de 70 do século XIX. Conforme observou Pedro Pruna,  sobre o darwinismo em Cuba, mesmo na Biologia o evolucionismo que se admitia não era darwinista, embora, fosse confundido com ele . Na introdução do livro The comparative reception of Darwinism Thomas Glick  comentou que o próprio Darwin observara que a recepção às suas ideias havia sido diferente segundo as nacionalidades . No Chile, por exemplo, conforme estudos recentes, Darwin teve influência direta, pois as observações de seu diário, sobre a geologia da região, chegaram a influir na geopolítica do país.

O caso brasileiro

O caso do Brasil em relação à teoria darwiniana foi talvez o mais original. Ao mesmo tempo em que o país foi palco da construção da teoria e da sua comprovação, não fugiu à polêmica da interpretação. O país foi também palco da tentativa de desconstrução da teoria realizada por Louis Agassiz  que viajou para o Brasil, na década de 1860, com o firme propósito de provar que Darwin estava errado. Agassiz contou com o apoio do Imperador Pedro II e de grande parte da intelectualidade brasileira. Ao mesmo tempo, a influência de cientistas, intérpretes de Darwin, como Haeckel e Spencer não foi pequena, instaurando a confusão entre evolução e darwinismo, bem como a convivência das resistências e dos partidarismos à revolucionária teoria.

Darwin passou quatro meses no Brasil, em 1832, quando pela primeira vez entrou em contato com a floresta tropical e deixou evidente o seu deslumbramento com a paisagem. A partir daqueles primeiros contatos com a natureza tropical, formulou a imagem da interdependência ecológica, que caracterizou e deu base à sua concepção de mundo orgânico.

Mas, foi no sul do país, em Santa Catarina, com o trabalho de um naturalista emigrado da Alemanha, em 1852, Fritz Müller,  que efetivamente se iniciou o processo da recepção da teoria de Darwin no Brasil, e onde se viu concretamente a aplicação de ideias centrais da teoria à natureza do Brasil. Müller foi considerado pelo próprio Darwin o “príncipe dos observadores”, por ter sido um dos primeiros a demonstrar a teoria da seleção natural, analisando pequenos animais e plantas do meio natural da região catarinense.

Edição alemã de A origem das espécies

Em 1861, Müller recebeu a primeira edição alemã do livro de Darwin, A Origem das Espécies, e imediatamente passou a fazer estudos de aplicação da teoria. Os primeiros resultados foram publicados pouco depois, em 1864, no pequeno livro “Für Darwin”, onde mostrou como operavam biologicamente vários aspectos do evolucionismo de Darwin. O livro foi publicado na Alemanha (Leipzig, W. Engelmann). Em 1869, foi traduzido para o inglês e publicado na Inglaterra, por recomendação do próprio Darwin. Em 1882-83, apareceu uma tradução em francês: Pour Darwin, no Bulletin scientifique du Départment du Nord et des pays voisin (14: 354-382, 418-462; 15: 10-47). A tradução no Brasil surgiu muito mais tarde. Em 1912, Alipio Miranda Ribeiro, do Museu Nacional, publicou a primeira tradução do livro, sem as imagens que continha o original ou os comentários sobre elas, na Revista Kosmos. Somente em 1990, depois de 17 anos tentando, Hitoshi Nomura  conseguiu um financiamento da Fundação Catarinense de Cultura, do Estado de Santa Catarina, e da Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais, do Departamento Nacional de Produção Mineral, para publicar na íntegra a tradução do inglês: Fatos e Argumentos a favor de Darwin. Nenhuma editora jamais se interessou por publicá-lo. O que mostra que apesar do enorme reconhecimento internacional alcançado por Müller, a teoria de Darwin, em si, não teve ampla repercussão no país.

Proposta poligenista da origem das espécies

A correspondência de Darwin indica que foi Ernest Haeckel que lhe apresentou os trabalhos de Müller. Foi também Haeckel que enviou a Müller a primeira tradução alemã de A Origem, a qual aderiu imediatamente, sem reservas, e se tornou um dos maiores interlocutores de Darwin, até a sua morte, em 1882. Foram 50 cartas entre eles. É preciso observar que Darwin não somente discutia com ele, mas discutia os resultados que Müller apresentava com outros cientistas renomados, como indica sua correspondência. Faz pouco tempo que o nome de Müller começou a ganhar o reconhecimento da história das ciências. David West  publicou, Fritz Müller, um naturalista no Brasil, em 2003, nos Estados Unidos. O filósofo francês, Patrick Tort, em 1997, deu a uma coletânea de História das Ciências o título do livro de Fritz Müller: “Pour Darwin” e explicou, na Introdução, que o seu objetivo era fazer ressurgir conceitos teóricos do evolucionismo darwiniano, libertos dos ideologismos que tanto haviam distorcido o darwinismo. Ele considerou o trabalho de Müller como o mais representativo porque era, ao mesmo tempo, livre de preconceitos, e o que melhor interpretara a teoria da evolução por seleção natural.

Na verdade, no final do século XIX, ainda mais impacto que Darwin no Brasil teve a vinda de Agassiz e sua proposta poligenista da origem das espécies, que contrariava o monogenismo de Darwin em todos os sentidos. O próprio Darwin manifestou, em sua correspondência, indignação aos ataques de Agassiz. No Brasil, certamente, contou o fato de ser Agassiz, um cientista internacionalmente reconhecido, facilitando a interação no meio intelectual brasileiro. Ele deu várias palestras no Rio de Janeiro, e em Belém, onde chegou a sugerir a organização do Museu de História Natural a Ferreira Penna, que o iniciou, dando origem ao que é hoje o Museu Paraense Emilio Goeldi. No Museu Nacional do Rio de Janeiro, os trabalhos de Antropologia, realizados por João Batista de Lacerda e Rodrigues Peixoto, também estavam conforme o poligenismo professado por Agassiz, ao mesmo tempo em que a orientação teórica de seus trabalhos provinha de opositores de Darwin, tal como foram os franceses Quatrefages de Bréau (tido como o ‘pai’ da teoria da superioridade do homem branco), seu antecessor Paul Broca, criador da Sociedade Francesa de Antropologia e também do alemão Rudolf Virchow, presidente da Sociedade Alemã de Antropologia e Etnologia, no final do século XIX. Com estes Lacerda e Peixoto mantinham correspondência e trocavam material fóssil de análise osteométrica. Contudo, no Museu Nacional não havia somente oposição a Darwin. Na sua revista, foram publicados 17 dos duzentos e tantos trabalhos de Fritz Müller, que trabalhou para a instituição como viajante naturalista a convite de Ladislau Netto, diretor entre os anos 1870 e 90, que não era anti Darwin, embora deva ser considerado mais lamarquista do que darwinista.

Contudo, a ampla repercussão do evolucionismo no Brasil se deu no âmbito social, no qual o biologismo spenceriano foi de maior influência e jogou forte na literatura brasileira, na qual destacou-se o trabalho de Silvio Romero.  Embora se dizendo um darwinista, em A História da Literatura Brasileira Silvio Romero deu relevo à questão da origem do homem, reconhecendo a fusão das raças como característica da formação evolutiva – poligenista - do Brasil. Silvio Romero é um exemplo do intelectual que se via darwinista, mas aplicava ideias contrárias a ele. Ele criticava os intelectuais que queriam reduzir a um tipo único as raças americanas, como Ladislau Netto ou Barbosa Rodrigues, pois, “as raças americanas são um produto do meio americano.” Silvio Romero também aplicou a ideia de luta pela existência. Porém, para ele, no inconsciente da história do Brasil, “na luta pela existência, o português suplantou o caboclo e o jesuíta. O negro serviu-lhe de armas e de apoio; tal era o seu grande título histórico no Novo Mundo”. O português ele via como o elo de ligação com a civilização européia, porém, este era íbero-latino o que trazia também prejuízos.

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