Edição 304 | 17 Agosto 2009

Teilhard e o “mover-se para” a complexidade, a vida, a consciência

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Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger

Segundo o cientista italiano Ludovico Galleni, Teilhard de Chardin propõe um novo instrumento: a árvore em lascas. De um núcleo central se separam várias lascas que, no entanto, ao invés de divergir, procedem por certo tempo paralelas

Ao falar sobre a reflexão de Teilhard de Chardin acerca da natureza e de Deus, o cientista e professor italiano Ludovico Galleni alerta que é preciso ser muito claro nesse tema, em função do risco de interpretar, de maneira panteísta, a obra de Teilhard. Na realidade, explica ele, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, “a natureza não é Deus, porém o mostra, através das indagações sobre os seus mecanismos, graças aos quais evolve um movimento geral, que, no final, ela conduz a uma humanidade que é capaz de uma aliança com o Criador, a qual faz com que o próprio cosmo se torne ‘hóstia viva’”. Para ele, “o aspecto mais fascinante de Teilhard é não ver a perfeição no passado como uma perfeição alterada pelo pecado do Homem, mas, no futuro, na Terra construída com a aliança”.

O fascínio da proposta teológica teilhardiana, na visão de Galleni, está no fato de que “a escatologia não se refere à salvação de cada um no Paraíso, mas de toda a humanidade sobre a Terra e no cosmo, construída na justiça”. E ele ainda identifica que partiu deste ponto a teologia da libertação, que “permanece como um aspecto fundamental para construir a Terra e, talvez, seja um dos frutos mais fecundos da perspectiva teilhardiana”.  

Ludovico Galleni é professor, entre outras disciplinas, de Zoologia Geral e Biologia Evolucionária na Faculdade de Ciências da Agricultura na Universidade de Pisa, Itália, bem como Ciência e Teologia. É membro do corpo editorial da Rivista di Biologia. Graduou-se em Ciência Natural pela Universidade de Pisa, onde realizou pesquisas no Instituto de Zoologia e Anatomia Comparativa. Atualmente, trabalha com modelos de simulação matemática relacionados à evolução da biosfera e ecossistemas e a aplicação de técnicas de vida artificial. Um de seus temas de interesse contínuo é a Teoria da Evolução para explorar a possibilidade da teoria Bioesferocêntrica, cujo precursor foi o cientista jesuíta Teilhard de Chardin. Por essa razão, iniciou um projeto de pesquisa sobre Chardin e esse assunto. É autor das obras De Darwin a Teilhard de Chardin, Interventi sull’ evoluzione (1983- 1995). (SEU: Pisa, 1996) e Biologia (La Scuola: Brescia, 2000).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a principal contribuição de Teilhard de Chardin para o diálogo entre ciência, filosofia e teologia?

Ludovico Galleni - A principal contribuição de Teilhard de Chardin a esse diálogo foi precisamente a de admitir, do ponto de vista epistemológico, a legalidade do próprio diálogo: embora estejam se movendo paralelamente, ciência, filosofia e teologia convergem, como os meridianos que correm paralelos ao longo do globo terrestre, mas convergem nas vizinhanças do pólo. Isto quer dizer que há pontos de contato e que estes pontos devem ser objeto de indagação como instrumentos característicos das três disciplinas que se confrontam e se integram.

IHU On-Line - O que resume a reflexão de Teilhard sobre a natureza e sobre Deus?

Ludovico Galleni - Aqui é preciso ser muito claro, porque existe o risco de interpretar de maneira panteísta a obra de Teilhard. Na realidade, a natureza não é Deus, porém a mostra, através das indagações sobre os seus mecanismos, graças aos quais evolve um movimento geral, que, no final, ela conduz a uma humanidade que é capaz de uma aliança com o Criador, a qual faz com que o próprio cosmo se torne “hóstia viva”, como disse recentemente o Papa Bento XVI : “A função do sacerdote é consagrar o mundo para que se torne hóstia viva, para que no mundo se torne liturgia. É a grande visão que teve depois Teilhard de Chardin: no final, teremos uma verdadeira liturgia cósmica, onde o cosmo se torne hóstia viva.” Por conseguinte, o cosmo, a natureza e a matéria se tornam, não alternativas para a salvação, mas instrumentos necessários para a salvação da humanidade em sua inteireza. Não podemos deixar de sublinhar com alegria a referência do Papa a Teilhard e também a uma das partes mais controversas e difíceis de sua obra, a relação entre o cosmo e a Eucaristia. Isto nos recompensa de todas as dificuldades e das amarguras suportadas trabalhando sobre Teilhard de Chardin.

IHU On-Line - Quais são as características dadas por Teilhard de Chardin ao nosso universo em permanente construção e evolução?

Ludovico Galleni - É um universo imperfeito, no qual a ordem entra progressivamente e pouco a pouco, graças ao lento e contínuo processo de complexificação da matéria, graças aos efeitos limiares (ou de fronteira) como os da vida e do pensamento e graças à obra do ser pensante que reconhece e aceita a aliança. A ordem não se dá, portanto, num passado ao qual se deve retornar, mas num futuro a construir.

IHU On-Line - Qual é a herança deixada por Teilhard de Chardin no sentido da superação de modelos somente causais da evolução? O que ele nos sugere?

Ludovico Galleni - Teilhard escreve claramente que é preciso reinserir um fator preferencial no interior dos mecanismos casuais. Ele não nega, portanto, que, na evolução, existam também fenômenos estocásticos, mas emerge, com uma análise das grandes linhas evolutivas, a análise que faz parte dos instrumentos de indagação do paleontólogo, um mecanismo preferencial, um verdadeiro e próprio mover-se para a evolução, da matéria para a complexidade e da vida para a complexidade e a consciência. Portanto, o ser pensante é o resultado provável (mas, vistas as dimensões do universo) praticamente certo das linhas para as quais se move a evolução. Mas, para sermos claros, estas linhas são postas em evidência pela reconstrução dos fósseis.

IHU On-Line - Como podemos entender a necessidade, proposta por Teilhard, da emergência do ser humano dentro da natureza? Em que sentido esta necessidade tinha para ele particular importância do ponto de vista teológico?

Ludovico Galleni - Do ponto de vista teológico havia, para Teilhard, a necessidade do ser pensante na economia do Universo. Deus cria para a aliança e a aliança podia ser proposta somente a uma Criatura pensante e livre. Mas, esta necessidade teológica devia deixar vestígios experimentalmente indagáveis. Por isso, uma necessidade da teologia se tornou um instrumento para organizar um programa de pesquisa e isso não deve surpreender: atualmente a epistemologia contemporânea fala de metafísicas influentes... Por conseguinte, devem existir, na evolução, os vestígios ou sinais do “mover-se para”. E eis, portanto, que a indagação paleontológica vem sendo desenvolvida nesta direção. Seja que trabalhe sobre as Pró-símias Européias, ou sobre os Ratos Talpa do Pleistoceno chinês, Teilhard desenvolve uma linha de indagação que tende a pôr em evidência um “mover-se para”, demonstrado pelos paralelismos que caracterizam a evolução. E o mais importante é aquilo que Teilhard põe em evidência nos animais, o “mover-se para” estruturas cerebrais sempre mais complexas. Esses resultados são de uma linha de indagação científica precisa, da qual, no entanto, são bem visíveis e usadas de maneira correta as sugestões da filosofia e da teologia. Mas as excessivas referências ao acaso de outros autores, por exemplo, de Monod, são também o resultado de indagações endereçadas por sugestões filosóficas, daquela filosofia que Teilhard dizia ser “dos darwinistas radicais”.

IHU On-Line - Quais são os novos modelos sugeridos por Chardin para que possamos reconstruir as árvores da filogênese?

Ludovico Galleni - Para Teilhard, é preciso sublinhar principalmente os paralelismos e as convergências. E, no fundo, Teilhard propõe um novo instrumento: a árvore em lascas. De um núcleo central se separam várias lascas que, no entanto, ao invés de divergir, procedem por certo tempo paralelas. 

IHU On-Line - Como pode a questão da evolução ser analisada na ótica da Biosfera?

Ludovico Galleni - Este é o ponto-chave da contribuição teilhardiana sobre os mecanismos evolutivos: ele não se limita a descrever paralelismos e convergências, mas procura também questionar por pistas de indagação para entender suas razões e mecanismos. Nesse ponto (já nos anos 1920), ele propõe a biologia como a ciência do infinitamente complexo, estando cônscio que, mudando de escala, entram em jogo mecanismos que se perdem nas escalas mais baixas. É, portanto, aquela visão de conjunto que a indagação populacionista dos anos anteriores à segunda guerra mundial perdia. E é, portanto, uma via para a superação dos modelos reducionistas em biologia. Em Pequim, nos anos 1940, ele propõe uma nova ciência: a Geobiologia, a ciência que deve estudar a Biosfera como um único objeto complexo que evolui. São as leis gerais da evolução da Biosfera que darão a razão do “mover-se para”, “mover-se para” a complexidade, a vida, a consciência. E hoje, a ciência da Biosfera, como justamente havia indicado Teilhard, é um dos instrumentos-chave para entender a evolução.

IHU On-Line - Como se caracteriza o novo modo de ler o problema do pecado original proposto por Teilhard de Chardin?

Ludovico Galleni - Desenvolvendo o pensamento teilhardiano, o pecado original não é tanto uma queda, porque não há sinal de queda na história da vida, nem uma culpa de um casal originário, porque não há sinal de um casal originário nas origens da humanidade. É, quando muito, uma aliança que falhou no sentido de que Abraão, que aceita finalmente a aliança que Deus propõe, é figura recente na história do Homem. Há, então, um longo caminho distante da aliança, que é indicado pelo escritor bíblico com o termo de pecado original. Mas, o aspecto mais fascinante de Teilhard é não ver a perfeição no passado como uma perfeição alterada pelo pecado do Homem, mas, no futuro, na Terra construída com a aliança.

IHU On-Line - Para Chardin, onde reside a importância da segunda vinda de Cristo no processo evolutivo?

Ludovico Galleni - A segunda vinda de Cristo é o cume do esforço humano. A aliança leva a humanidade a construir uma nova Terra e nela uma nova humanidade. É, no fundo, a esposa preparada para o esposo, de que fala o Apocalipse. É a Terra a construir que, construída na aliança e, portanto, por uma humanidade caracterizada por ter aceitado a aliança, torna-se pronta a convergir no ponto Omega, no momento da segunda vinda de Cristo. Aqui nasce o fascínio da proposta teológica teilhardiana: a escatologia não se refere à salvação de cada um no Paraíso, mas de toda a humanidade sobre a Terra e no cosmo, construída na justiça. Partiu daqui aquela análise importante da Teologia latino-americana que circulou sob o nome de teologia da libertação e que entre infinitas dificuldades e problemas permanece, todavia, como um aspecto fundamental para construir a Terra e, talvez, seja um dos frutos mais fecundos da perspectiva teilhardiana.  

Leia mais...

>> Ludovico Galleni já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:

* Negar a historicidade do fenômeno evolutivo é um erro como elevar o darwinismo a um dogma – publicada na IHU On-Line número 245, de 26-11-2007.

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