Edição 302 | 03 Agosto 2009

Diálogo inter-religioso: uma questão de saúde pública e planetária

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Moisés Sbardelotto e Patrícia Fachin

Na opinião de Joe Marçal, a sociedade deve pensar o papel da religião na sociedade contemporânea e com isso, “sair dessa letargia de espectadora resignada diante de tudo”

“O tema do diálogo inter-religioso hoje não é um requinte especulativo, também não deveria visar a uma espécie de brechó religioso, em que cada tradição vai buscar ‘curiosidades’ de outras para usar como ‘próteses’ ou enfeitar suas lacunas”, escreve Joe Marçal em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, o verdadeiro diálogo entre as religiões e o espaço para trocas e negociações “se dão onde há um verdadeiro encontro entre alteridades”. Aprender a conviver com as diferenças religiosas não se reduz a respeitar as tradições, as verdades, vaidades, mas sim a “vida do planeta”.

Marçal reforça ainda que “a religião tem de se manter em sua função mediativa, sem fins lucrativos (...) e não ceder à pretensão soteorológica”. E enfatiza: “Se algumas tradições religiosas puderem nos ajudar a rezar com simplicidade e sabedoria enquanto nos ocupamos responsavelmente com a complexidade de nosso tempo, já seria grande coisa”.

Graduado em Teologia pela Faculdade Luterana de Teologia, mestre e doutor na mesma área pelo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, Marçal atua no Núcleo de pesquisa Teologia e Sociedade do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ele também coordena atividades da Secretária Permanente do Fórum Mundial de Teologia e Libertação e é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que aspectos históricos e culturais específicos o senhor destaca para a constituição, ao longo do tempo, dos valores centrais da ética do Cristianismo?

Joe Marçal - A idéia de “valores centrais” para mim remete ao que é originário. Nesse sentido, o Novo Testamento sintetiza os aspectos históricos e culturais mais importantes para a ética do Cristianismo, considerando-o como documento de um acontecimento que se dá sob condições singulares. Dessas condições, destacaria: primeiro, o Judaísmo do primeiro século, com sua identidade marcada pelo movimento profético, com sua tradição e imaginário messiânico – um judaísmo que aprende, ao longo de gerações, a se afirmar e lidar criativamente com sua tradição em meio a uma história marcada por espoliação, exílio e vassalagem; segundo, o Helenismo, com seu espírito também criativo e sua sensibilidade estética, sua visão de mundo universalista e, ao mesmo tempo, sua percepção trágica da condição humana; dadas as condições políticas do Império Romano, o Cristianismo nasce assim, híbrido e sincrético. Mas não nasce como “cristianismo”, e sim como um acontecimento, um movimento em torno de um preso político, como gosta de salientar Frei Beto. A pessoa de Jesus de Nazaré, seu carisma e o movimento messiânico que alçou em nome do “Reino de Deus”, tornou possível a experiência inusitada das primeiras comunidades – cuja comunhão eucarística sacramentava um compromisso de bem comum e cuidado mútuo entre pessoas. Ora, aqui vamos encontrar valores centrais, como o da justiça, da graça ou da aceitação da diferença, e mesmo a noção de “pessoa”. O que também vale destacar é que estas pessoas, a princípio, não comungavam de outra coisa que do fato de estarem à margem da sociedade ou de serem solidárias a quem assim se encontrava. No decorrer da história do Cristianismo, tudo o que verdadeiramente reforçou o que lhe é eticamente central, decorre disso.

IHU On-Line - O que o Cristianismo tem de específico ou “inegociável” em sua constituição interna que, sem isso, a religião se descaracterizaria?

Joe Marçal - O específico e inegociável do Cristianismo não é uma idéia, um dogma, uma instituição ou documento, mas sim a comunhão com Jesus de Nazaré, o Cristo. Não por acaso, o apóstolo Paulo,  para explicar a dinâmica organizativa das primeiras comunidades, usa da metáfora do “corpo” para caracterizar o aspecto participativo e comunitário dessa religião. Entretanto já se disse tanto sobre isso que as palavras se perdem no vazio. É preciso ter em mente que antes de se conceber como “religião”, o Cristianismo foi “seguimento”, foi “discipulado”, foi “pertencimento” a uma causa de justiça e esperança, alavancada por um nazareno, à margem do império e da religião oficial. Mas quando ganha oficialidade, com Constantino, no século III, o Cristianismo sofre talvez a mais profunda descaracterização de sua história, perpetuada por outras tantas alianças imperialistas ao longo de vinte e um séculos. Simultaneamente, e graças a uma unidade não institucional, e sim mística, contra todas essas tendências de “normatização”, o Cristianismo manteve internamente sua vocação à diversidade, fazendo-se necessariamente uma religião multifacetada e híbrida. Não existe “Cristianismo”, mas uma pluralidade de cristianismos. Ora, não podia ser diferente: uma religião que confessa um preso político como Mestre e Salvador, e que torna símbolo de sua fé e esperança um dos piores instrumentos de tortura já inventados – a cruz –, para ser coerente, uma religião assim sempre manifestará uma dose significativa de subversão em sua constituição interna. No Cristianismo, o específico é a pessoa de Jesus, sua paixão, sua presença mística e espiritual naqueles e naquelas que testemunham sua causa. De resto, a história nos ensina: sectarismos, reducionismos, fundamentalismos e burocratização sempre estiveram presentes na história dessa religião, sem, contudo, ter conseguido apagar sua autenticidade, manifestada de forma surpreendente, escandalosa e contrária a toda expectativa.

IHU On-Line - Como o Cristianismo se relaciona com as demais tradições religiosas? Há abertura e espaço para possíveis negociações ou troca de valores?

Joe Marçal - Depende de que Cristianismo estamos falando. Há formas de Cristianismo por aí que se querem mais cristãs que o próprio Cristo. É triste, mas a maioria das igrejas não consegue unanimidade nisso nem em seus setores internos. Porém, de modo geral e positivamente, temos de apontar para um movimento que perpassa a história das igrejas, em prol da unidade entre cristãos e também pelo diálogo entre diferentes tradições religiosas. Esse movimento é representado por um Cristianismo histórico, do qual fazem parte igrejas também pentecostais e o cristianismo oriental. Essas igrejas se identificam umas com as outras ante a exigência de uma cultura de paz. O tema do diálogo inter-religioso hoje não é um requinte especulativo, e não deveria visar a uma espécie de brechó religioso, em que cada tradição vai buscar “curiosidades” de outras para usar como “próteses” ou enfeitar suas lacunas. O diálogo entre as religiões hoje é uma questão de saúde pública e planetária, e deve ser encarado como parte da responsabilidade social das igrejas. A abertura e o espaço para trocas e negociações se dão onde há um verdadeiro encontro entre alteridades: podemos e devemos discordar em questões teológicas, mas não sem aprender a viver essas diferenças com responsabilidade, pois o que está em jogo não são as tradições em si, suas verdades/virtudes/vaidades, mas a vida do planeta. Concretamente, há experiências muito significativas em curso. O Conselho Mundial de Igrejas, por exemplo, vem trabalhando o conceito de diálogo inter-religioso como um instrumento colaborativo das religiões para a missão que as igrejas cristãs reconhecem para si. Outra experiência que vale mencionar é o Fórum Mundial de Teologia e Libertação que, seguindo o processo inaugurado pelos Fóruns Sociais Mundiais, vem contribuindo para uma reflexão teológica identificada com essa intuição, de que a teologia cristã está, acima de tudo, a serviço do mundo em sua busca de paz e justiça.

IHU On-Line - Que contribuição específica as religiões monoteístas podem dar para uma possível solução à crise que vivemos hoje, econômica global, ecológica, política?

Joe Marçal - A tipologia de “monoteísta” tem de ser usada com cautela. Desde que concebido em sua originalidade profética, o monoteísmo deu uma significativa contribuição ao mundo contemporâneo. Primeiro, porque, para os profetas, Deus não surge como solução de crise, mas é ele quem promove a crise: os profetas anunciaram o Deus zeloso, que põe termo a toda forma de agressão contra a vida e que definitivamente age em favor das vítimas. A violência ganha espaço quando falta zelo – uma capacidade sagrada de se deixar indignar por um ímpeto de justiça. Em segundo lugar, os profetas não falaram em monoteísmo, anunciaram sim o “Deus vivo”. É interessante que a intuição deles não era que deveria haver mais religião para que as coisas fossem para melhor, mas o contrário: eles clamam por uma economia de religião, denunciam a exacerbação religiosa e chamam a uma fé coerente e, digamos, “sustentável”. Ocorre-me o criativo título de um filme, “Fé demais não cheira bem”, estrelado por Steve Martin – acho que, em nossos dias, o monoteísmo profético poderia ajudar a sociedade a consumir menos religiosidade e se escandalizar de forma mais criativa e produtiva. Veja o primeiro mandamento: “Eu sou o Senhor teu Deus, não terás outros deuses diante de mim”. Pronto. A partir disso, como disse Agostinho, “ama, e faz o que quiser” – na dúvida, há outros nove mandamentos para ajudar nisso.

IHU On-Line - Em uma sociedade moderna (pós-moderna ou até mesmo ultramoderna), como fica o papel da religião?

Joe Marçal - Sempre me impressionam ocasiões em que pessoas falam sobre sua própria religião. As mais verdadeiras, via de regra, são aquelas que falam de uma fé simples. Assumem seus mitos, sua tradição, sem se preocuparem em saber se é mito ou tradição. É religião, e pronto. Quanto mais o discurso se sofistica, se “moderniza” arguindo em favor da crença, mais ouvimos sem entender, e se entendemos, não há sabedoria nas palavras, quando muito, argumentos. Sobre o papel da religião, Dietrich Bonhoeffer  recomenda a seu afilhado, numa carta escrita na prisão, pouco antes de ser assassinado pelos nazistas: “em dias como os nossos, a fé deve se voltar à oração simples”. É o caminho para a sabedoria, penso. Bastante arriscado, considerando especialmente a trajetória de Bonhoeffer, executado em função de sua oração simples, que o leva a comungar da resistência a Hitler  e a exercer seu cristianismo como tão somente serviço à sociedade. Curiosamente, enquanto lido com essas questões, assisto em minha televisão a uma enxurrada de religião midiática. Outro tipo de discurso religioso relativamente novo, mas de um mau gosto sem precedentes. É espantoso como a religião, nos veículos de comunicação de massa, se torna publicitária e não pública. Sintoma não cura. Aí, já não posso deixar de inverter a pergunta: na religião moderna, como fica o papel da sociedade? A sociedade é que tem de pensar seus papéis e, pensando-se, sair dessa letargia de espectadora resignada diante de tudo. E não digo isso por causa da teologia; mas porque é feio, é descaradamente enganoso e talvez seja mesmo inconstitucional. O problema é que no Brasil não se discute religião. Ao mesmo tempo, para pensar a sociedade no Brasil, temos de pensar a religião junto. Não ajuda seguir a linha de raciocínio importada da Europa, que polariza e isola ambas – a universidade brasileira, aos poucos, percebe que isso não dá conta de nosso contexto. Nossa laicidade, tão moderna, se rende fácil demais ao apelo religioso. Nessas condições, urge uma “santidade” social, um espírito profético de “resistência” à exacerbação religiosa. Uma resistência comedida talvez, mas que seja inteligente. O que cabe às religiões? A sociedade deve dizê-lo: as multidões, em momentos de crise e “passagem”, procuram as benesses de um moralismo fácil e pragmático. A religião tem de se manter em sua função mediativa, sem fins lucrativos, seja de fiéis, dinheiro ou qualquer valor simbólico, e não ceder à pretensão soteorológica. Veja que isso rende uma pauta de política pública. Em meio a isso, se algumas tradições religiosas puderem nos ajudar a rezar com simplicidade e sabedoria enquanto nos ocupamos responsavelmente com a complexidade de nosso tempo, já será grande coisa.

Leia mais...

>> Joe Marçal já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. O material está disponível no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Entrevista:

• Da ingenuidade ao cinismo: o Brasil de Sérgio Bianchi. Edição número 249, de 03-03-2008, intitulada Mulheres e a sociedade contemporânea. Conquistas e desafios.

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