Edição 302 | 03 Agosto 2009

Chegamos ao topo da babel. É preciso retornar

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Graziela Wolfart, Moisés Sbardelotto e Patrícia Fachin

O homem pós-moderno avançou no desenvolvimento da técnica, da ciência, mas está enfraquecido na vida espiritual, defende Guershon Kwasniewski. Para ele, é preciso recuperar o autoconhecimento e aproximar-se das religiões

“A pós-modernidade oculta o lado religioso e não deixa os indivíduos enxergarem o que eles realmente são e devem fazer para ser”, diz Guershon Kwasniewski à IHU On-Line. Para ele, o crescimento tecnológico representa também um retrocesso religioso e espiritual, além de dúvidas em relação à existência. “O homem da pós-modernidade avançou tanto que está se perguntando aonde quer chegar”, argumenta. Mas isso, assegura, não representa o fim da religião, pelo contrário, “as pessoas, conforme o momento da história, tendem a voltar para a religião”.

Descendente de família judaica e seguidor dos costumes aprendidos ainda na infância, o professor argentino apresenta, na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, alguns aspectos da tradição, como a forte relação dos judeus com Deus e a identidade marcada pelos rituais de passagens, chamados ciclos da vida. Segundo ele, esses “estão engajados com preceitos e mandamentos da vida” que devem ser cumpridos.

Em Israel, Kwasniewski cursou o Machon Grimberg, o Ishtalmut Morim do Beit Midrash Lebrabanim na Escola Rabínica. Foi professor do Colégio Israelita Brasileiro, de Porto Alegre, e professor convidado pelo Núcleo de Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, atua na Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência (SIBRA).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que aspectos históricos e culturais o senhor considera importantes para a constituição dos valores centrais da religião e da ética judaica?

Guershon Kwasniewski - Dois fatos históricos são importantes. Um deles é a saída dos judeus do Egito, e o outro é a entrega da Torá, ou seja, da lei no Monte Sinai. Os judeus ganharam a liberdade e constituíram-se povo ao receber a lei. A partir desse momento, uma normativa passou a reger aquele povo: existe um líder, Moisés, e um único Deus. A liberdade e a crença em um único Deus marcam um momento único na história do povo de Israel.

IHU On-Line - Que ética rege o Judaísmo e como ela pode contribuir para a paz mundial?

Guershon Kwasniewski - A ética que rege o Judaísmo, aquela que legaram para nós, fala de Abraão, Isaac, Jacó, Raquel. Por isso, quando falamos de ética, não podemos esquecer os profetas de Israel e os juízes, pois eles marcaram um caminho, a ética e os princípios a serem seguidos pelo povo. A ética no Judaísmo se encontra nos mandamentos. O legado dos profetas foi justamente transmitir os valores aos mandamentos. 

O caminho da lei nos leva ao respeito, a considerar o nosso próximo. Portanto, cumprindo, estudando e aprofundando os princípios iremos construir o caminho da paz mundial. Mas quando falamos de paz global, estamos tratando de algo muito mais amplo. Devemos começar a construir a paz interna, individual. Baseados nisso, passamos a construir um mundo melhor.

IHU On-Line - O que o Judaísmo tem de específico ou “inegociável” em sua constituição interna que, sem isso, a religião se descaracterizaria?

Guershon Kwasniewski - Temos um ciclo de vida próprio e um calendário que rege esse ciclo. Mantemos as nossas festividades: o dia do perdão, a páscoa, as comemorações bíblicas e pós-bíblicas. O que caracteriza o Judaísmo é a circuncisão; circuncidarmos nossos filhos com oito dias de vida. Não podemos abrir mão desse mandamento, pois descaracterizaríamos a tradição judaica.

Outro aspecto forte é a relação dos judeus com Deus. Os nossos inimigos, quando tentaram aniquilar o povo judeu, queriam destruir o templo. Não podemos abrir mão da nossa instituição maior, a sinagoga, a nossa casa de encontro, onde realizamos o culto, respeitamos o calendário judaico e consagramos os momentos mais importantes da vida, como o nascimento, a maioridade religiosa - aos 13 anos para os meninos e aos 12 para as meninas -, o casamento judaico e o enterro. O judeu tem a sua identidade marcada por esses rituais de passagem, os quais estão engajados com preceitos e mandamentos da vida que devemos cumprir. Sem isso, ficamos completamente descaracterizados.

IHU On-Line - Como as religiões monoteístas dialogam com o pluralismo religioso e o “trânsito inter-religioso”, como vemos especialmente em países de grande sincretismo como o Brasil?

Guershon Kwasniewski - O diálogo é uma expressão natural do homem; o ser humano foi dotado da palavra. Temos uma boca e dois ouvidos: devemos ouvir, aprender com o nosso próximo, e falar o necessário. O respeito, a tolerância, o convívio e o diálogo ocorrem quando existe harmonia entre as religiões, sobretudo quando existe a possibilidade de entender e conhecer a cultura do outro. A partir do momento em que isso corre, consigo entender o porquê da história, do culto, do ritual, da tradição das outras religiões. Temos de trabalhar no campo cultural para esclarecer como são constituídas as identidades religiosas e transmitir para o próximo o que faz parte de cada essência.

Sincronismo

Temos a bênção de viver em um país onde existe muito respeito entre as religiões, a liberdade de culto e, portanto, um clima propício para trabalhar o campo espiritual. Mas, acima de tudo, precisamos esclarecer o que significa cada religião. Todas elas buscam verdades absolutas, assim sendo, o que muda é o caminho para chegar a essa verdade. Contudo, devemos ter cuidado para não tratar todas as religiões como se fossem iguais e pensar em um único modelo religioso. A riqueza está justamente na diferença.

IHU On-Line - Nessa sociedade contemporânea, como fica o papel da religião? O senhor concorda que vivemos em uma sociedade pós-religiosa?

Guershon Kwasniewski - Não vivemos numa sociedade pós-religiosa, porque as pessoas, conforme o momento da história, tendem a voltar para a religião. Se nos religamos, como a própria religião nos diz, estamos longe de uma pós-religião. A religião sempre vai ocupar o seu lugar.

O homem da pós-modernidade avançou tanto que está se perguntando aonde quer chegar. Parece que construiu uma torre de babel e ao chegar ao topo, pergunta: “Agora, o que faço?” É preciso descer novamente. Temos muitos avanços na ciência, na tecnologia, mas terríveis retrocessos na vida espiritual. O homem, quando se volta para a sua essência, acaba se autodescobrindo. As pessoas têm medo de se aproximar das religiões, porque não querem enxergar como são. A pós-modernidade oculta o lado religioso e não deixa os indivíduos enxergarem o que eles realmente são e devem fazer para ser.

IHU On-Line - Como os 10 Mandamentos de Deus recebidos por Moisés perpassam o Judaísmo e as demais religiões monoteístas? Qual a sua validade e pertinência hoje, após milhares de anos após sua apresentação ao mundo?

Guershon Kwasniewski - Nos mandamentos e nos preceitos está o sucesso do Judaísmo. A Torá se tornou um livro clássico, porque, mesmo com milhares de anos, continua atual. Está na contemporaneidade da mensagem e do recado o sucesso do nosso livro. Mesmo com o avanço dos tempos, a mensagem continua sendo atual e contemporânea: falamos do relacionamento entre as pessoas, da relação com a terra, com a natureza, o relacionamento do homem com Deus, pais e filhos etc. 

“Não faças aos outros o que não queres que te façam” é um princípio apresentado pelo rabino Hillel,  há muitos anos. Quando uma pessoa não judia perguntou a ele se poderia lhe ensinar a Torá no tempo em que apoiava o corpo sob uma perna, ele respondeu: “Não faças ao teu próximo o que não queres que façam contigo. Isso é a Torá. O resto é comentário. Estuda”.

IHU On-Line - Hans Küng sugere três fundamentos para que a ética mundial seja possível: um consenso fundamental básico com relações a valores obrigatórios, parâmetros inamovíveis e atitudes espirituais básicas. Como as três grandes religiões monoteístas podem chegar a esse consenso?

Guershon Kwasniewski – Todas as religiões querem o bem do homem. Se cada uma delas cuidar dos seus princípios, chegaremos ao consenso.

Saiba mais: Religiões do Mundo

>> Guershon Kwasniewski é um dos debatedores do evento Religiões do Mundo. Ele estará na Sala 1G119 na sexta-feira, 07-08-2009, às 16h, comentando o documentário sobre o Judaísmo. No dia 27-8-2009, o professor também comenta a exibição na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, às 19h.

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