Edição 301 | 20 Julho 2009

América Latina: mudanças politicas não são viáveis como outrora

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Patricia Fachin

Embasado na teoria de Marx, o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira diz que o socialismo só será possível quando se esgotarem todas as possibilidades do capitalismo

“O colapso financeiro dos Estados Unidos representou um golpe profundo no fundamentalismo de mercado de modo similar ao que representou para o comunismo stalinista o desmoronamento do Muro de Berlim e dos regimes instalados pela União Soviética nos países do Leste Europeu”, diz Moniz Bandeira à IHU On-Line, ao comentar a conjuntura internacional. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele é enfático e assegura que a crise financeira ainda não alcançou seu ápice e tende a aprofundar-se. O mais importante, garante, “é aplicar às condições do século XXI o método que Marx usou para analisar o capitalismo no século XIX, pois o capitalismo não permaneceu o mesmo, a história não parou”.

Ele faz ainda uma breve análise da América Latina e diz que as mudanças políticas no continente não são tão viáveis como outrora. Cita o caso de Honduras para exemplificar: “A derrubada do presidente Manuel Zelaya pelo Exército provavelmente pode ter contado com o apoio de setores da CIA e do Pentágono, que se opõem à política do presidente Barack Obama e querem criar-lhe dificuldades internacionais”. E dispara: “Tudo indica que os militares hondurenhos não se atreveriam a dar um golpe de Estado, em franco desafio à política exterior que o presidente Barack Obama pretende executar, sem contar com o respaldo dos setores militares dos Estados Unidos”.

Moniz Bandeira é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e professor titular de história da política exterior do Brasil, no Departamento de História da Universidade de Brasília (aposentado). Ele publicou mais de 20 obras, entre as quais citamos, Presença dos Estados Unidos no Brasil (São Paulo: Civilização Brasileira, 2007) e Fórmula para o caos. A derrubada de Salvador (São Paulo: Civilização Brasileira, 2008). Atualmente, vive na Alemanha, onde é cônsul-honorário do Brasil em Heidelberg/Karlsruhe.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as principais mudanças políticas, sociais e econômicas que o senhor percebe na América Latina?

Luiz Alberto Moniz Bandeira - São muitas as mudanças, tanto econômicas quanto políticas, porém, é difícil, senão impossível, falar da América Latina, como se fosse um todo homogêneo. É claro que a Colômbia não é igual à Venezuela, nem o Uruguai igual ao Paraguai, ou o Chile igual ao Peru. De modo geral, o que se pode dizer é que o modelo neoliberal inspirado pelo Consenso de Washington desmoralizou-se depois do colapso da Argentina em 2001-2002. E, politicamente, não são tão viáveis como outrora, embora não se pode descartar a hipótese de que ocorram tentativas, como em Honduras, onde a derrubada do presidente Manuel Zelaya  pelo Exército provavelmente pode ter contado com o apoio de setores da CIA e do Pentágono, que se opõem à política do presidente Barack Obama e querem criar-lhe dificuldades internacionais. Em Honduras, a presença militar dos Estados Unidos é marcante. Lá, na base aérea de Soto Cano (Palmerola), está sediada a Joint Task Force-Bravo, integrante do U.S. Southern Command (Southcom), com 350 a 500 soldados, do 612th Air Base Squadron e o 1st Battalion, 228th Aviation Regiment.

Nessa base, nos anos 1970 e 1980, foram treinadas as tropas hondurenhas, integrantes do Batalhão 3-6, acusadas de inúmeros sequestros, abusos e crimes contra os dissidentes hondurenhos. Tudo indica que os militares hondurenhos não se atreveriam a dar um golpe de Estado, em franco desafio à política exterior que o presidente Barack Obama pretende executar, sem contar com o respaldo dos setores militares dos Estados Unidos.

IHU On-Line - Como o senhor analisa o quadro político da América Latina? De que maneira os governos progressista, nacionalista e integracionista se relacionam?

Luiz Alberto Moniz Bandeira - A América Latina não é, e nunca foi, homogênea. Tampouco é latina, pois em alguns países, como Bolívia, Peru, Equador e na América Central há grande predominância de etnias indígenas. A América Latina é uma denominação que não reflete, propriamente, a realidade econômica, social, política e cultural da região entre o Rio Grande (divisa do México com os Estados Unidos) e a Patagônia. Os países aí existentes têm interesses econômicos e características sociais e políticas diferentes. E os governos, dependendo do que se possa definir como progressista, nacionalista ou integracionista, não têm nenhum padrão de relacionamento, apesar da criação da ALBA  pelo presidente Hugo Chávez.

IHU On-Line - O senhor diz que os Estados Unidos estão perdendo o domínio sobre a América do Sul. Nesse sentido, que leitura pode ser feita da possível aproximação do governo  estadunidense com o Brasil?

Luiz Alberto Moniz Bandeira - Os Estados Unidos estão perdendo a hegemonia econômica e política sobre a América do Sul, conforme a existência de governos como o de Evo Morales, na Bolívia, e Hugo Chávez, na Venezuela, evidenciam. Isso seria impossível entre os anos 1950 e 1970. Sua hegemonia se desvaneceu em consequência, entre outros fatores, do fracasso das ditaduras militares e do insucesso das políticas neoliberais, implementadas por governos democráticos, de conformidade com o Consenso de Washington. E seu desvanecimento permitiu a emergência de forças de governos como o de Hugo Chávez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, do ex-guerrilheiro Daniel Ortega, na Nicarágua, e de Mauricio Funes, da Frente de Libertação Nacional Faribundo Martí, em El Salvador. Também o Brasil contrapõe-se à presença dos Estados Unidos na região. Ele tem seus próprios interesses nacionais, muitas vezes contraditórios ou mesmo antagônicos aos interesses dos Estados Unidos, porém os dois países, que representam as maiores massas territoriais, demográficas e, apesar da assimetria, econômicas, têm de manter relações maduras, quaisquer que sejam as tendências políticas de seus governos. Nenhum pode prescindir do outro. Naturalmente, relações maduras não significam subordinação do Brasil às diretrizes dos Estados Unidos, mas o reconhecimento de divergências e convergências existentes entre os interesses nacionais, tanto econômicos quanto políticos, dos dois países. E a maior importância internacional do Brasil está na razão direta da independência e autonomia de sua política exterior.

IHU On-Line - Evo Morales é indígena e foi eleito pelos indígenas. Esse fato, por si só, representa a formação de um novo movimento de força política no país e, de alguma maneira, no continente?

Luiz Alberto Moniz Bandeira – A eleição de Evo Morales para a presidência da Bolívia constituiu um importante acontecimento. Representa a ascensão das camadas indígenas, que eram oprimidas e exploradas há vários séculos. Mas não podemos esquecer que essa ascensão começou com a revolução de 1952, conduzida pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), então sob a liderança de Victoz Paz Estensorro. E o governo revolucionário, sustentado por milícias operárias e camponesas, promoveu a reforma agrária e nacionalizou as minas de estanho. Mas a Bolívia, dependente do mercado, não tinha condições materiais para avançar ainda mais, como os trotskistas e outras tendências de esquerda pretendiam. E, ao fim de dez anos, já estava em franco retrocesso. De qualquer modo, a população indígenas tornou-se um ator político, que não se podia desconsiderar. Isto analiso no meu livro De Marti a Fidel. A revolução cubana e a América Latina, cuja segunda edição será lançada em agosto pela Civilização Brasileira. Não se pode, entretanto, dizer que a eleição de Evo Morales tenha maior alcance no continente, ou mais precisamente, na América do Sul, dado que somente na Bolívia, Peru e Equador a população indígena tem maior peso demográfico.  Na Bolívia, os quechua representam 30% da população; os mestiços de branco e ameríndios, 30%; os aymara, 25%.  Os brancos não passam de 15%. No Peru, os ameríndios representem 45% da população; os mestiços 37%; enquanto os brancos também constituam 15% e os africanos, japoneses e chineses sejam uma pequena minoria de 3%. Evidentemente, esse não é o caso do Brasil nem da Argentina nem mesmo do Chile, onde os Mapuche não passam de 4% da população; 0,6%, as outras etnias somam apenas; enquanto os brancos e mestiços somam 95% da população. E na Colômbia, a população indígena é ínfima: 1% contra 58% de mestiços; 20%, brancos; 14%, mulatos; 4% africanos e 3%, cafusos. Até no Paraguai, onde a língua guarani é oficializada, a população indígena pura é muito pequena, pois predominam os mestiços, que são 95% da população.

IHU On-Line - Como o senhor percebe o movimento indígena nos diferentes países como Bolívia, Peru, Equador e na América Central? Em que medida podem se tornar uma nova força política?

Luiz Alberto Moniz Bandeira – Não se pode tratar, generalizadamente, a questão do movimento indígena. As condições desses países são diferentes. Para que representem uma força política é necessário que tenham certo nível de organização e liderança, como ocorre no Equador, onde os ameríndios constituem apenas 25%, muito menos que na Bolívia; os mestiços, 65%; contra apenas 7% de brancos e 3% de africanos. Quanto à América Central, também não se pode generalizar nem examinar a questão pelo ângulo da etnia. A questão é social. São as camadas mais pobres, exploradas e oprimidas dos países da América do Sul, bem como da América Central que estão a lutar por melhores condições de vida, e essas camadas, as mais atingidas, em alguns países, são indígenas.

IHU On-Line - Em que sentido a atual crise internacional oferece a possibilidade de discutir um futuro diferente para o continente? Que perspectivas o senhor vislumbra?

Luiz Alberto Moniz Bandeira - A situação internacional configura-se muito volátil, atualmente. A crise econômica e financeira, que tem como epicentro os Estados Unidos, tende a aprofundar-se. Ainda não chegou ao ápice. Naturalmente, o futuro será diferente não só para a América Latina como para todos os países. O colapso financeiro dos Estados Unidos representou um golpe profundo no fundamentalismo de mercado de modo similar ao que representou para o comunismo stalinista o desmoronamento do Muro de Berlim e dos regimes instalados pela União Soviética nos países do Leste Europeu.

IHU On-Line - Quais são as propostas da esquerda diante da crise? 

Luiz Alberto Moniz Bandeira - Que esquerda? Os pequenos grupos doutrinários existentes não têm nenhuma proposta, nem podem tê-la, porque ainda estão aferrados a conceitos que não mais correspondem à realidade econômica, social e política nos países industrializados. Falam de Marx, Lenin, Trotsky e Gramsci como se o que eles escreveram, no século XIX e na primeira metade do século XX, refletisse a realidade atual. O mais importante é aplicar às condições do século XXI o método que Marx usou para analisar o capitalismo no século XIX, pois o capitalismo não permaneceu o mesmo, a história não parou. Também a política imperialista, de competição armada entre as potências industriais, visando a reproduzir as relações de produção e impor seu domínio sobre vastas regiões do planeta, evoluiu, após duas ruinosas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), para o ultraimperialismo, com a formação de uma espécie de cartel de nações capitalistas, conduzido pelos Estados Unidos, como potência hegemônica, com alta capacidade estratégica de modelar a vontade das outras potências industriais e conduzir a política internacional, de acordo com seus interesses geoestratégicos. Sua expressão militar é a OTAN, que oferece garantias mútuas de não agressão e previa a cooperação na área de segurança, bem como ajuda mútua no caso de uma agressão por terceiros países, coletivizando a defesa, a fim de que ela não se torne assunto nacional, e sim de interesse do sistema global capitalista. Contudo, o cenário mundial está mudando com a emergência de outras potências, como a China, Rússia, Brasil, Índia. Diferentemente da maioria de outras potencias industriais, os Estados Unidos deixaram de ser exportador líquido de capitais e não mais lideram as compras ou o estabelecimento de firmas em outros países. O centro do mundo industrializado desloca-se rapidamente para a Ásia. O Império Americano já está em declínio e, econômica e financeiramente, será difícil sustentá-lo, a médio e longo prazo. Seu déficit orçamentário, no primeiro semestre de 2009, superou o montante de US$ 1 trilhão. Os bancos centrais de outros países detêm cerca de US$ 4 trilhões como reservas. Somente a China possui reservas no valor de mais US$ 2 trilhões. Tal situação não pode continuar indefinidamente. Haverá um momento em que a quantidade há de gerar uma nova qualidade no sistema econômico e político internacional.
 
IHU On-Line – Isso quer dizer que a esquerda está em crise? Se sim, quais são suas características?

Luiz Alberto Moniz Bandeira - O desenvolvimento científico e tecnológico, dos meios de comunicação e das ferramentas eletrônicas, aumentando a produtividade do trabalho e impulsionando ainda mais a internacionalização/globalização da economia, produziu profunda mutação no sistema capitalista mundial, na estrutura social das potências industriais e no caráter da própria classe operária. A dissolução dos regimes comunistas nos países do leste Europeu, a derrubada do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha, bem como a fragmentação da desintegração da União Soviética em quinze outros Estados independentes, e a adesão da China à economia de mercado de globalização assinalaram o começo de nova época histórica. Tais fatores econômicos e sociais produziram, sobretudo nas potências industriais, certo desvanecimento das contradições políticas e ideológicas entre os partidos políticos, cujas iniciativas, no governo, não muito discrepam, na Alemanha, França, Inglaterra, muito menos nos Estados Unidos, onde o Partido Democrata e o Partido Republicano, essencialmente, pouco se diferenciaram.

Como o grande historiador Eric Hobsbawm  claramente declarou em entrevista à agência de notícias Telam, da Argentina, “já não existe esquerda tal como era”, seja social-democrata ou comunista. Ou está fragmentada, ou desapareceu. As correntes que restam ainda não entenderam que não se pode instalar o socialismo em países atrasados, sem segurança alimentar e dependentes do mercado mundial capitalista. Conforme a teoria de Marx, o capitalismo é uma ordem econômica internacional e, sem que se esgotem todas as suas possibilidades de desenvolvimento o socialismo, não é possível. 

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